Leonardo Cavalcanti, Ana Dubeux
postado em 18/05/2016 06:25
Riccardo Nencini, 56 anos, é um homem com múltiplas atenções. Vice-ministro de Infraestrutura e Transporte e secretário-geral do Partido Socialista Italiano (PSI), ele se interessa por política, mobilidade urbana, literatura, música e esportes, como ciclismo. Autor de livros sobre os costumes e a história europeia, ele é um crítico dos resultados da Operação Mãos Limpas, um das mais importantes investigações sobre propinas envolvendo autoridades públicas e empresários italianos, iniciada nos anos 1990, em Milão. ;O problema da corrupção era real, mas o resultado processual não correspondeu às expectativas. E não há dúvidas que a operação foi gentil com a classe empresarial do meu país;, afirma Nencini. Autor de destaque na Itália, tendo recebido prêmios literários europeus, Nencini escreveu Morir; in piedi (Edizioni Polistampa, sem tradução para o português), o relato de uma conversa com a lendária jornalista Oriana Fallaci, pouco tempo antes da morte dela por um câncer. Em visita a Brasília ; onde participou de um seminário, promovido pelo PSB, sobre propostas inovadoras de cidades ;, ele apresentou ações e leis postas em prática na Itália, como a nova legislação de trânsito, que pune de maneira dura motoristas sob efeito de álcool e drogas envolvidos em acidentes. Em São Paulo, Nencini se encontrou com empresários brasileiros para discutir parcerias de projetos de infraestrutura envolvendo companhias dos dois países. A seguir, os principais trechos da entrevista:
Vários teóricos afirmam que a Lava-Jato tem semelhanças com a Operação Mãos Limpas. Faz sentido?
Agora, na Itália, a Operação Mão Limpas é mais um assunto dos historiadores. Não é mais uma coisa jornalística. É mais uma questão de historiadores do que de jornalistas, porque é uma coisa antiga. Já se passaram quase 25 anos.
Então, é difícil fazer uma relação entre a Lava-Jato e a Mãos Limpas?
Quando a Mãos Limpas explodiu na Itália, havia uma variedade de causas diferentes. Pensavam que era um ataque dos Estados Unidos contra Itália. Ou que era um ataque de uma parte da magistratura contra os partidos que haviam governado a nação. E muitas outras motivações. Na verdade, agora é mais certo uma interpretação porque estamos mais longe e podemos interpretar com mais objetividade.
E qual é essa interpretação?
Ela está muito longe da tese do juiz (Sérgio) Moro. Primeiro, porque a Mãos Limpas explode em 1992. Três anos antes havia caído o Muro de Berlim. Caiu o Império Soviético. Acabou a divisão da Europa que foi determinada na Conferência de Ialta, em 1945. A localização da Itália era muito importante e estratégica, o fio entre Estados Unidos e União Soviética. Era um país que geograficamente era o último baluarte, fronteira, para o sul-leste soviético. Era considerado o aliado perfeito para os Estados Unidos. A fronteira entre o mundo ocidental e oriental. E o ministro Chamberlain tinha de ter a Itália como aliada. Caiu o muro de Berlim e acabou a divisão do mundo em duas esferas de influência. Assim, tudo o que era considerado legítimo antes, a um certo ponto, era ilegítimo. Como era o financiamento político na Itália, o financiamento na política, da parte de empresários e empresas, não era um mistério. Todos sabiam. Se sabia como os partidos eram financiados, mas isso não era tão importante na época quanto saber que a Itália era aliada dos Estados Unidos. Não se tocava nesse assunto. Ao acabar essa história que durou 50 anos, com o fim da Segunda Guerra Mundial, chegamos aos anos 1990, com a Operação Mãos Limpas. E aqui, no Brasil, não é o mesmo assunto. Não se pode comparar Mãos Limpas com a Lava-Jato, o Brasil com a Itália. Porque as causas e contextos são muito diferentes. A Operação Mãos Limpas criou na população um sentimento de grande esperança de renovação completa, e uma grande mudança na classe política diversa. Talvez uma política mais limpa. Mas o resultado não foi conquistado.
A classe política não se renovou?
O primeiro efeito das Operações Mãos Limpas foi o fim dos partidos, exceto a nova legenda de Berlusconi, mas que não era um partido tradicional. Era o primeiro partido com líder. Não se reuniu um Congresso, uma magistratura, o líder bastava. O outro que restou era um partido ex-comunista. O que se sucedeu é que a corrupção na Itália continua, e hoje na estatística internacional, está em uma posição ruim.
O que mudou depois das Mãos Limpas?
Antes, o financiamento privado servia para financiar a campanha eleitoral do partido. Hoje, a corrupção serve, sobretudo, para dar mais riqueza ao político e não ao partido. Foi desenvolvida uma forma de enriquecimento pessoal. Há um outro fator, complementar do enriquecimento de um único político, um enriquecimento da parte da burocracia, e de que há uma posição forte dentro da administração que cuida do ofício técnico.
Aqui no Brasil, o financiamento de empresas foi extinto. Mas alguns teóricos dizem que é possível que o crime organizado ou mesmo igrejas fundamentalistas passem a contribuir para as campanhas.
Eu espero que isso não ocorra, porque é um erro. Porque se essa gente com dinheiro sujo do crime organizado, do tráfico de drogas e do sectarista religioso prosperar, financiar partidos ou candidatos vai se eliminar a base da democracia e da liberdade.
Por que a Mãos Limpas falhou, então?
Ela eliminou todos os partidos históricos políticos que governaram a Itália, de 1946 a 1992, no pós-guerra, e toda a classe dirigente. Toda a liderança histórica que em 50 anos governou a Itália. Entretanto, eliminar o presidente, o secretário do partido, não impede que outro presidente ou outro secretário sejam postos no lugar. Alguns teóricos dizem que o objetivo da Mãos Limpas não era renovar a Itália, mas simplesmente substituir os políticos.
Como a Itália conseguiu resolver isso ao longo dos últimos 25 anos, e como está hoje?
Agora, houve uma renovação da classe política muito forte. O governo central, o governo regional. Eu tenho 56 anos e sou um dos mais velhos no governo. Isso é bom? Sim, pois há uma maior capacidade de compreender uma sociedade que está se mudando numa velocidade supersônica. Alguém capaz de entender a mudança da sociedade. Muitas reformas foram importantes como as do trabalho, a constitucional, a eleitoral, o código de licitações e da administração. E terceiro, a Europa está passando por um período em que está mais fraca. Com a posição hegemônica da Alemanha, de Angela Merkel, tem criado uma condição para que a Itália possa retomar sua posição dentro do trem europeu e assumir seu lugar importante.
No momento que o juiz Sérgio Moro diz que se inspirou na Mãos Limpas, ele está falando de métodos, investigação...
O mecanismo de magistrado é o seguinte: ;Se o criminoso não colaborar, vamos deixá-lo na cadeia. Se ele vai colaborar, vamos deixá-lo em liberdade;. Esse foi o mecanismo inicial, o da delação. Isso foi a largada dos magistrados de Milão. Mas, se for avaliar o número final da Mãos Limpas, o resultado entre as pessoas que foram presas e as que, depois, acabaram efetivamente processadas é um motivo de surpresa.
Porque o número é muito pequeno.
Sim. Foi tomado como espetáculo, teve visibilidade. Mas com resultados práticos e processuais muito pequenos. Isso não significa que não havia problema na Itália, já que o plano de financiamento partidário era real. O problema era real, o problema com os partidos era real, mas não correspondeu. O novo presidente da associação de magistrados é um juiz que participou da Operação Mãos Limpas. Há um ano atrás, ele concedeu uma entrevista ao Corriere della Sera, e uma das perguntas tratava sobre a corrupção em geral. E ele respondeu que, agora, comparada à época da Mãos Limpas, a corrupção está aperfeiçoada. Assim, a Mãos Limpas não serviu de nada.
E na opinião do senhor?
A minha opinião é que serviu para destruir líderes, uma classe política e substituir por outros. E os partidos, por outras legendas. Entretanto, a operação foi muito carinhosa e gentil com os empresários.
Como o senhor acompanhou o impeachment da presidente Dilma Rousseff?
Com atenção e preocupação que se deve ter, por ser um país importante. O Brasil é uma grande potência internacional, tudo o que acontece não fica apenas aqui. É um país que está no quadro político internacional. Estamos olhando com a atenção que é requerida.
O senhor concorda com a tese do governo de que houve um golpe?
Eu vou responder com uma resposta dada por Shimon Peres a um jornalista italiano, durante uma visita à Itália. ;Há problemas demais em minha casa que não me permitem discutir isso.;