Leonardo Cavalcanti, Paulo Silva Pinto
postado em 18/12/2016 08:26
Rio de Janeiro ; A economista Maria Silvia Bastos Marques, 59 anos, repete uma espécie de mantra ao tentar escapar de perguntas sobre a gestão petista no Banco Nacional de Desenvolvimento (BNDES). ;Não estava aqui. Nesse caso, não gosto de pensar sobre o passado. É preciso pensar para frente.; Mas isso não significa que consiga evitar as críticas à política econômica do PT ao falar da crise que o país enfrenta hoje. ;O tamanho do rombo é muito grande. Infelizmente não vamos sair disso rapidamente ou com medidas milagrosas. O país quebrou de novo;, disse ela, em entrevista exclusiva ao Correio, na tarde da última sexta-feira, no 21; andar da sede do BNDES, no Rio de Janeiro. ;Na década de 1980, o Brasil era visto como um país sem credibilidade. Hoje o país está muito impactado em relação à credibilidade, sim. Isso não se recupera com discursos;.
Indicada pelo presidente Michel Temer em maio para presidir o BNDES, Maria Silvia afirma que não dá para distanciar a economia da política. ;Até porque vivemos fatos bastante graves, como o afastamento de uma presidente. Mas acho que o Brasil é muito forte, passar por tudo isso que estamos passando, óbvio que com protestos, tensões, mas, por mais que as questões estejam entrelaçadas, a dificuldade econômica é real;, afirmou. Maria Silvia tem um currículo ao mesmo tempo denso e eclético, que inclui posições de destaque na academia, no setor público e no setor privado. Formada em administração pública pela Fundação Getulio Vargas (FGV), instituição em que fez mestrado e doutorado, Maria Silvia foi também professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Integrou a equipe de renegociação da dívida externa brasileira, sob o comando do embaixador Jorio Dauster, em 1990 e 1991. De 1993 a 1996, foi secretária de Fazenda do município do Rio, sob o comando de Cesar Maia. Entre 2001 e 2002, presidiu a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN). Em 2007, tornou-se presidente da seguradora Icatu Hartford. Foi, ainda, presidente da Empresa Olímpica Municipal do Rio, da qual pediu demissão em abril deste ano.
Qual será o impacto para o país das medidas de estímulo anunciadas pelo BNDES e por outras áreas do governo?
Anunciamos terça-feira as medidas e, na quinta, foi apresentado o conjunto. São medidas que vão todas na mesma direção. Desde que estamos aqui no banco, há seis meses, temos buscado algumas diretrizes. A mais ampla delas é ampliar acesso, como conseguir capilarizar mais o BNDES. Embora o banco seja um grande emprestador para micro, pequena e média empresas, e ; para minha surpresa devo dizer ; o microcrédito. É algo que não sabia que o banco fazia, e alcançou a marca de R$ 1 bilhão. Não era só eu que não sabia: quem recebe o crédito também não sabe, porque ele não vai com a marca do BNDES, vai com a marca do repassador. Vivi muito essa situação quando estava na indústria de seguros. Fui presidente da Icatu Seguros durante cinco anos. E a Icatu, durante muito tempo, distribuiu por meio de parceiros, que colocavam a sua marca. A Icatu, assim como o BNDES, precisa dessa rede de distribuição, porque não tem a rede própria. Estamos trabalhando em várias direções, mas a questão da micro, pequena e média empresas tem total prioridade. São as que mais estão sofrendo com a conjuntura atual, são as que têm a maior dificuldade de ter garantia para os empréstimos, além das dificuldades de acesso. Uma das nossas frentes é a ampliação dos canais de distribuição. Temos trabalhado muito com a Federação Nacional dos Bancos, para desobstruir os canais existentes, e ter mais proximidade, e isso está funcionando muito bem.
Vai ajudar o país a superar a crise?
O Brasil se acostumou com coisas milagrosas, toda vez que vejo pessoas comentando medidas anunciadas pelo governo, está todo mundo esperando que venha um conjunto de medidas salvadoras. Que vá resolver tudo, e isso não existe. Então, vão continuar esperando. O que existe é uma sucessão de iniciativas para destravar o crescimento, melhorar o ambiente de negócios. Enfim, procuramos também canais alternativos de distribuição, não necessariamente rede bancária. Para, citar novamente o exemplo da Icatu, que distribuía os produtos de seguro por meio de redes de varejo, fintechs e diversas outras formas, que hoje já são até mais fáceis, porque há plataformas digitais e uma série de formas de você distribuir produtos. Estamos atacando isso. No próximo ano, acredito que vamos concretizar algumas dessas parcerias, que vão dar mais capilaridade ao nosso produto. Os bancos de desenvolvimento e agência de fomento estão nos ajudando a formatar melhor o nosso portfólio do produto, porque estão na ponta. Como não estamos, não conhecemos esse cliente. Pode ser que o nosso portfólio de produto não atenda ele. Paralelamente a isso, a gente está numa agenda, início do ano, vamos anunciar essa agenda, estamos finalizando internamente. Revisando todas as nossas condições de financiamentos e dos nossos programas. Estamos dando uma reolhada geral. O objetivo final é simplicidade, horizontalidade no sentido de incentivos iguais para todos os setores, tendo muito mais uma visão do projeto.
Quando a senhora fala que está criando não necessariamente setores, é uma crítica em relação ao que vem das últimas gestões?
Vou ser franca: nem sequer tenho tempo de ficar pensando em críticas ou sugestões. Estamos tentando resolver uma série de questões que aconteceram por conjunturas diversas, por exemplo, as concessões. E o nosso objetivo é de olhar pra frente, porque o Brasil do jeito que está, a gente realmente... Passado serve para aprender e fazer coisas diferentes no futuro, agora as decisões são tomadas em contextos diferentes. O mundo evoluiu, isso que é o mais importante. A coisa dos setores hoje não faz muito sentido. É difícil você definir hoje o que é comércio, indústria e serviço. Fiz uma reunião com o Instituto para Desenvolvimento do Varejo (IDV). Boa parte do que fazem é on-line, não tem loja física. Na indústria, hoje, o que agrega mais valor é o serviço. Isso é uma revolução. Da mesma forma que o telefone celular passou a ter todo tipo de convergência, da máquina fotográfica ao scanner, passando pelo que você quiser. Cadê o gravador de vocês? É um telefone. E isso está acontecendo no mundo. E o BNDES, assim como você e as outras pessoas, estava acostumado a ter essas caixinhas separadas. Elas não estão mais separadas. As fronteiras são cada vez mais difusas e isso reflete a nossa forma de apoio. Temos que pensar cada vez mais como vamos apoiar atividades, por exemplo, que não têm garantias reais para nos darem. O banco sempre trabalhou com garantias reais, isso quer dizer que vamos abrir mão das garantias? Não, tem que pensar de uma forma diferente.
Nessa nova visão de vocês, não cabe aquela história de campeões nacionais?
Gostaríamos de ter muitos campeões nacionais, porém eles vão resultar de políticas horizontais de incentivo. Um bom exemplo é a agricultura. A Embrapa é um fator de inovação horizontal que passa por toda a agricultura. Um grande desafio no Brasil não é nem inovar, é difundir a inovação. Você pega experiências de sucesso e consegue espalhá-las pela economia, esse é um foco nosso também. Não só o incentivo à inovação, mas a difusão da inovação porque só isso vai impactar a produtividade. Se quiser resumir tudo isso, é aumento de produtividade, aumento de competitividade. Portanto, exportação e inovação. É importante para a gente induzir as indústrias, empresas, setores a irem para o mercado exterior. Comércio, plataformas digitais, serviços, software, games, indústrias que tenham o componente de serviço cada vez maior. Quando pensamos em indústria no passado, ela era a maior empregadora. Hoje, a indústria é o setor que menos emprega. Comércio e serviço empregam muito mais. A indústria deixou de ser importante? Não. Ela mudou, se transformou, tem uma carga de inovação pesada, cada vez se junta mais ao serviço. O que diferencia o produto da indústria é a qualidade de serviço que ele agrega ao produto. Então a cabeça tem que ser diferente.
Conta muito o que ficou em relação ao símbolo do BNDES, do governo anterior?
Isso é um fato, realmente não dedico meu tempo a isso, nem posso. Não fiz parte dessa discussão; nessa época estava cuidando das Olimpíadas, um mundo bem diferente. Mas, se você disser assim, como economista, e não é de hoje, o que sempre acreditei foi em incentivos horizontais. Acredito que todos os países fazem uma proteção em alguma medida à indústria, ou a algum setor do setor que eleja. Mas essas proteções são temporárias, têm data para terminar. É só isso que assegura a competitividade. Então, é importante o incentivo, mas é importante também o horizonte em que aqueles que são os verdadeiros campeões possam seguir sozinhos.
Ao propor o refinanciamento e o alongamento de dívidas, vocês estão trocando os juros altamente subsidiado do PSI (Programa de Sustentação do Investimento) pela TJLP. Obviamente, isso embute uma avaliação de que aquele tipo de taxa é inaceitável hoje. É isso?
Com certeza. As nossas decisões que foram anunciadas são bem pragmáticas, simples e que vão fazer diferença na vida das empresas, que era o que estávamos estudando e o que era pretendido. E, se perceberem, não anunciamos um conjunto de medidas, anunciamos um plano de trabalho, ali elencamos uma série de iniciativas que vão até dezembro de 2018, que é o que estamos trabalhando, entre elas, ter uma nova plataforma para o cartão BNDES, abrir o cartão para a pessoa física, que hoje não existe, só não é feito isso imediatamente porque infelizmente a tecnologia do cartão BNDES foi feita em 2003 e continuou, não houve atualização. Infelizmente é uma plataforma antiga, pouco flexível e, novamente, o mundo mudou. Isso é uma crítica ao que foi feito? Não, mas a realidade é essa, hoje as coisas são web, digitais e aplicativos. Então, o que anunciamos é tudo o que já começamos a fazer, mas que só matura no início do semestre do ano que vem, ou no segundo semestre do ano que vem e até dezembro de 2018. O que fizemos a curto prazo foi um conjunto de medidas que era possível implementar, que foi aumentar o limite do cartão BNDES, aumentar o limite de faturamento das médias empresas que estavam dentro da nossa definição de média empresa, que passou de R$ 90 milhões para R$ 300 milhões, uma mudança substantiva. E esse refinanciamento vem da constatação que nós temos diariamente do conjunto de empresas que estão em dificuldades. Da última vez que olhei, quase 1.900 empresas tinham entrado em recuperaçãojudicial só em 2016. Um número absurdo. E esse conjunto de medidas, embora direcionado a micro, pequena e média empresas, tem um impacto importante na grande empresa, porque eles são cadeia produtiva da grande empresa. Vamos refinanciar, pela primeira vez, não só o já vencido, para trás, como também uma parcela do que vai vencer. Estamos definindo que parcela vai ser essa. A partir de fevereiro, já poderão acessar esse refinanciamento.
[SAIBAMAIS]
Mesmo com taxas maiores, isso dará um alívio às empresas?
Hoje, o que eles estão precisando é de fôlego. Você vai trocar taxa por prazo. O Progeren é muito importante, um programa que existia no banco e nós reativamos. Vimos que a grande necessidade, hoje, é capital de giro. Nisso é que as empresas estão sufocadas. Esse programa passou de R$ 100 milhões em agosto para a expectativa de R$$ 800 milhões agora em dezembro. Ele está sendo muito demandado. É um programa indireto, e anunciamos neste conjunto de medidas na terça-feira.
O BNDES pretende restringir a distribuição de dividendos para empresas que estão financiadas pela TJLP a 25% do total. Já há uma data para isso?
Assim que as políticas operacionais entrarem em vigor. Há algumas exceções, que a gente entende que não impactam o objetivo inicial. Em uma fase de investimento a empresa, ela deveria se limitar a 25%, que é o mínimo legal. Ela se endividou para fazer seu investimento. Se está com recurso sobrando para distribuir mais dividendos, nossa expectativa é que ou que ela migre o empréstimo dela para custo de mercado, ou ela nos pague, para que possamos fazer um novo empréstimo a TJLP para outra empresa que precisa investir e que não tem capital. É muito.
As empresas deveriam ter consciência disso e reduzir a distribuição de dividendos por conta própria?
Vamos para a vida real. Você tem uma fonte de financiamento abaixo da taxa de juros da economia, sem restrição. Dinheiro não tem carimbo, você faz o investimento e distribui o dividendo também. Ele coloca na conta do retorno dele, que você já vai captar um recurso e você pode distribuir livremente.
Mas, se quisessem realmente investir, não deveriam separar recursos para isso?
Não estou dizendo que são todas assim, mas é dá vida. Você já ia comprar um carro com seu próprio dinheiro, mas, de repente, um banco te oferece um recurso muito barato para comprar o automóvel. Você já compraria o automóvel, mas você pega esse dinheiro muito barato, compra o carro e ainda faz uma viagem.
A empresa faz o que já faria?
Não tenho a menor ideia do que muitas empresas estão fazendo. Vamos fazer duas reflexões, primeiro, de fato, quando você olha para o passado, mesmo com todo o recurso do PSI, não se aumentou a taxa de investimento da economia. Então esse é um princípio importante que está no nosso receituário básico: os empréstimos do BNDES precisam gerar adicionalidade de investimento. Na margem, fazer crescer o investimento. E realmente aprendemos. Veja, por exemplo, o setor de caminhões, com enorme desembolso do PSI. Houve até grande compra de caminhões e ônibus. Mas o que aconteceu? Excesso de capacidade. Os preços de frete despencaram e o setor hoje tem grande dificuldade e uma capacidade ociosa muito grande. O volume de investimentos despencou no ano seguinte. As coisas têm que ter sustentabilidade.
Houve erro?
Nas circunstâncias, lá atrás, eu não estava aqui, não posso saber as condições em que as decisões foram tomadas. Mas, olhando para frente, é importante que, nessa retomada, a gente assegure os nossos recursos que são escassos. O país está vivendo uma grave crise fiscal. Quando falo isso, parece que o BNDES não tem dinheiro para emprestar. Mas não é isso. É escasso no sentido de que a TJLP são recursos do FAT, que tem um referencial de taxa de juros, então são recursos nobres. É até melhor usar nobre do que escasso, porque tem que ser muito criterioso para com esse recurso. Ele realmente tem que ser destinado para investimentos adicionais, e a restrição é para que isso de fato aconteça.
Como se regula isso?
No contrato. Tem que cumprir as cláusulas contratuais. Tem auditoria, tem tudo. As empresas são todas auditadas, não emprestamos para empresas que não têm auditoria. Temos uma série de regras de governança, que estamos aperfeiçoando também. E desde cooperativas a grandes empresas têm que ter regras de governança que elas precisam cumprir.
Isso vai vigorar quando?
No começo do próximo ano.
A senhora tem reiterado mque a devolução dos R$ 100 bilhões ao Tesouro Nacional não vai causar impacto na capacidade do banco de emprestar. Como isso se explica?
Hoje em dia a verdade é que os empréstimos estão sendo restringidos pela demanda e não pela oferta. O banco tem em caixa hoje mais de R$ 200 bilhões. Vamos fechar o ano entre R$ 90 bilhões e 100 bilhões. Para o próximo ano, a gente espera uma retomada do crescimento, e não vamos gastar R$ 200 bilhões. E isso nós temos hoje, porque ainda temos o retorno dos empréstimos. Aqui ninguém é aventureiro, costumo dizer que sou ousada, mas não sou aventureira, nunca fui na minha vida inteira. Então não vai ser agora que vou começar a inaugurar isso. Essa decisão não foi tomada pela diretoria. Foi tomada depois da análise técnica do BNDES, jurídica e financeira. Primeiro, temos conforto com a decisão jurídica do TCU e, segundo, com o que os nossos números nos permitem fazer. Nós iríamos de qualquer forma devolver R$ 40 bilhões e avaliamos que, dada a nossa capacidade hoje de recursos, que poderíamos fazer essa devolução antecipada, sendo que isso tem um impacto fiscal importante. Eu te diria que isso melhora a nossa capacidade de nos alavancarmos no mercado. O banco nunca teve recurso do Tesouro. O BNDES sempre financiou o mercado e com FAT. Esses R$ 500 bilhões que vieram para o banco, pela primeira vez que estou explicando isso bem explicado, a sociedade passou a ver isso como uma possibilidade de alavancagem do banco. Mas esses recursos foram todos redirecionados, já vieram para cá com endereço, com uma destinação. Não vieram pra cá para o banco alavancar em projetos, vieram para o banco cumprir uma política de governo que foi predeterminada. A maior parte disso foi o PSI para ônibus e caminhões, por exemplo.
Os R$ 500 bilhões não fizeram diferença nenhuma na prática para o país?
Eu não disse isso. Parcela relevante desses recursos foi direcionada. O mundo viveu uma crise em 2008 que foi absurda, foi feita uma política contracíclica. Só que essa política foi muito longe no tempo.
Inicialmente, ela era justificável na sua avaliação?
Acho que sim.
Como será a atividade do banco sem esses recursos?
Vamos desalavancar essa capacidade extraordinária que houve e estamos voltando para um patamar parecido com que o banco sempre teve. O BNDES nunca ficou restrito pela falta de recurso. Até porque ele sempre esteve presente no mercado de capitais e financeiro, coisa que, nos últimos anos, deixou de estar também.
E vai voltar?
Vai. Fui diretora financeira do BNDES por um ano (no governo de Fernando Henrique Cardoso), e fiz suas captações no exterior. Isso era uma coisa cotidiana da rotina do banco. O banco, depofis da União, talvez tenha sido o órgão que mais refletia as curvas de juros da própria União, sempre muito presente no mercado de capital. Acredito que estamos voltando para uma situação, entre aspas, de normalidade, de alavancagem e de presença nos mercados.
Como economista, e, considerando as dificuldades dos estados, a senhora acha que a população brasileira vai ter um certo respiro?
O tamanho do problema fiscal é muito grande. Não é só na União, mas em todos os estados. Não se deve ficar esperando soluções milagrosas, devemos esperar muito esforço, determinação e principalmente muito entendimento por parte da sociedade de que o problema é nosso. Porque, aqui no Brasil, falamos do governo como se fosse uma esfera totalmente autônoma e se fala de dinheiro público como se não pertencesse à sociedade. Ela tem um grave problema, que são as contas públicas, nas quais se inclui a Previdência. Infelizmente, não vamos sair dessa situação rapidamente e nem com medidas milagrosas, isso não existe. Existe, como está se fazendo, um trabalho cotidiano. O Brasil precisa se desburocratizar, precisa ter um ambiente melhor de negócios. As famílias sabem disso. Nenhuma consegue viver além do que ela tem. Ela pode se endividar um pouco, usar cartão de crédito, mas tem um limite. Quando se chega ao ponto em que você não tem mais a capacidade de pagar, ninguém te empresta mais. O país é a mesma coisa. Também não dá mais pra aumentar impostos porque isso está além da capacidade da população. O estado do Rio de Janeiro está aumentando agora o ICMS. Tenho dúvidas se isso é uma boa medida. As empresas também já estão com uma carga tributária muito elevada, estamos vivendo uma recessão muito grande e o cobertor é muito curto. Então vamos ajustar onde temos controle: com as despesas. A PEC dos gastos vem justamente nessa direção: fazer com que o orçamento seja uma coisa crível. O que queremos ser daqui a 10 anos? Um país que vai estar no primeiro lugar do Pisa ou um país que tem a saúde igual à do Canadá? Quais são as escolhas que temos para fazer? E vamos dedicar esforços e recursos para isso.
A senhora falou de reforma da Previdência, alguns especialistas, analistas e economistas acreditam que ela é muito dura. O que lhe parece?
Não sou especialista da reforma e muito menos sou grande entendedora de política. Mas a situação é muito grave, acho que terá que ser o que o parlamento e a sociedade entenderem que é possível. Porém, temos de dar um passo largo, disso, não tenho a menor dúvida. A expectativa de vida da sociedade aumentou, as pessoas continuam se aposentando muito cedo. Essas coisas são emocionais. Claro que mexe com a gente, e mexe mesmo com todo mundo, mas tem uma questão aritmética de matemática, de cálculo atuarial. Se não quisermos fazer esse ajuste agora, será feito por nossos filhos e netos.
As medidas apresentadas pelo governo buscam maior produtividade, o que não terá efeitos imediatos. Quando o país vai sair da recessão?
Minha bola de cristal está meio nebulosa. Não concordo que essas medidas tenham impacto só a médio e a longo prazos. O conjunto de medidas são coisas do dia a dia. A maior parte começa a valer agora, em dezembro e janeiro. A economia vive de expectativas também. Ouvi as declarações dos economistas e houve uma unanimidade: o caminho está certo. Todos disseram: isso não vai resolver o problema. Acho até incrível que alguém diga isso. Se bastasse um conjunto de medidas para para resolver o que estamos vivendo, estava muito fácil. Outra coisa: Essas pessoas falam é que foi pouco ousado aqui e ali. Entretanto, não estou vendo ninguém dar alternativas. Não tem. Nós quebramos novamente, o país quebrou. Deixamos de ser investment grade, o que nós duramente conquistamos. Vivi na década de 1980. Tinha acabado de me formar no doutorado e vi uma moratória da dívida externa. Foi um período horrível. Parece muito o que estamos vivendo hoje. Nunca vou me esquecer, porque participei da negociação da dívida externa, a falta de credibilidade que o Brasil tinha. Fiquei afrontada da forma que a mesa de negociação falava com a gente. Se entrevistarem o embaixador Jório Dauster, com quem trabalhei, ele dirá isso. As declarações que os países faziam, a falta de seriedade do Brasil, que tinha deixado de honrar o pagamento de juros. É horrível isso.
Voltamos a esse ponto?
Acho que o Brasil está muito impactado na sua credibilidade sim. E precisamos recuperar isso. E não se recupera isso com discursos, se recupera com ações.
De qualquer forma, tem algumas pessoas que avaliam que essa crise é econômica, mas tem um forte componente político. Como a senhora avalia isso?
Não sou cientista política e não tenho a mínima ideia. Óbvio que não dá para distanciar uma coisa da outra, até porque vivemos neste ano fatos bastante graves do ponto de vista político. Não é tão simples o afastamento de uma presidente, tudo isso que estamos assistindo no país. Ao contrário. O Brasil é um país muito forte, capaz de passar por tudo que estamos passando, com todo mundo de pé trabalhando, e as coisas acontecendo. Óbvio: com protesto, distensões e opiniões contrárias, mas isso é natural. É um processo muito traumático que estamos vivendo. Embora estejam entrelaçados, a questão econômica é real, concreta. Nós hoje estamos com recessão fiscal. O Brasil tinha virado essa página. Isso que é terrível. Nós implantamos a Lei de Responsabilidade Fiscal. As pessoas se esquecem de olhar para trás. Sempre que eu me desespero porque tem muita coisa para fazer, eu gosto de olhar para trás. Você se lembra o que foi o Proer? O trauma que foi fazer aquilo, a dificuldade política terrível. Aquilo ali foi um avanço, vocês já imaginaram, na situação de hoje, se nós tivéssemos bancos frágeis e bancos estaduais, onde nós estaríamos? O tamanho do buraco que ia ser. O Brasil virou essa página, viramos a página da dívida externa. O Brasil vivia de crise em crise, com FMI, dívida externa. Passei meus anos de mestrado e doutorado acompanhando as cartas de intenção. Viramos essa página, mas não foi de um dia para o outro, foi tendo uma estratégia, fazendo a negociação dos juros atrasados, depois do principal. Isso passou de governo: Collor, Fernando Henrique. Mas teve continuidade, perseverou. Inflação: quantos planos econômicos tivemos?
No entanto, o país caiu de novo em uma crise. Qual a explicação?
Caiu em uma crise, não: o país destruiu o que tinha feito que: a responsabilidade fiscal, uma conquista que, infelizmente, nós vamos ter que construir de novo. E foi em todos os níveis, municípios, estados e governo federal.
A que se deve esse processo, na sua avaliação?
Eu acho que uma falta de prioridade a isso, acreditar que se podia negligenciar ou viver sem essa restrição, e que o mundo estava crescendo. Não sei qual é a lógica. Hoje, o resultado disso tudo é que as famílias e as empresas estão altamente endividadas, então, retomar o crescimento passa por essa desalavancagem. Você precisa resolver sua vida, renegociar o passivo, ter um prazo crível de pagamento, para você poder tomar crédito de novo. Existe muita capacidade ociosa, isso também leva tempo. Temos que começar a reverter o processo, acho que é isso que todos nós estamos empenhados em fazer. Se tivesse uma medida simples, seria muito bom, a gente anunciaria amanhã e estava tudo resolvido.
O que todos os brasileiros querem é ver a recessão para trás, não?
Eu faço parte das pessoas, todo mundo que está no governo são pessoas, a gente mora no Brasil, faz parte da sociedade. Fica parecendo que as pessoas querem e o governo não quer.
E quando podemos contar com isso? Há algumas projeções, certo?
Recolha todas elas e me fale, porque também estou querendo saber. O quanto antes, né? Isso depende de tantas variáveis. Existe a questão política, tem o próprio mundo, que está mais incerto, piorou nesse sentido. Os Estados Unidos começaram a elevar a taxa de juros. O Brasil tem uma janela de oportunidades hoje, porque existe dinheiro no mundo procurando bons projetos, bons investimentos. O importante é andar todo dia.
A gente está na maior recessão da nossa história, maior até que 1930/1931. Como se explica: a derrapada foi maior ou o mundo está mais difícil?
Nós falamos aqui dos pressupostos que foram abandonados, recessões fiscais, realidade fiscal. O mundo sempre foi o mundo. Assim como em uma casa, em uma empresa, quando você gerencia uma empresa, a única coisa que alguém pode controlar é a sua despesa, ninguém controla receita, nem pessoa física, você está empregado hoje e pode estar desempregado amanhã. A única coisa que você tem sob seu controle são as suas despesas e as despesas dos governos como um todo, isso é fato conhecido, estão fora de controle há muito tempo e se ampliaram nos últimos anos.
Quando o governo Temer montou o ministério, faltou uma mulher ali na foto principal. A senhora acabou como protagonista em relação a isso. Como vê esse episódio?
Eu me sinto muito honrada de ser a protagonista e representar as mulheres, agora dividindo com a ministra Ellen Gracie e a Ana Paula Vescovi (secretária do Tesouro) que está lá também. Pelo menos esse trio aí é bem guerreiro. É que a gente vale por muitas.
Mandando desde pequena
Eu sempre gostei de resolver coisas. Segundo meus irmãos, eu gostava de mandar desde que era pequena. O que me motiva sempre, em todas as coisas, é poder mudar um pouco a realidade, contribuir com o que eu posso fazer, tanto no setor público quanto no privado. Eu fui trabalhar no governo por acaso. Fiz minha graduação em administração pública e depois mestrado e doutorado em economia. Queria ser acadêmica: dar aula e fazer pesquisa. Comecei um pós-doutorado em economia matemática no Instituto de Matemática Pura e Aplicada (IMPA). Descobri que gosto mais de ser executiva depois que eu experimentei. Mas ter sido pesquisadora e professora foi fundamental na minha vida. A capacidade de pensar, me adaptar, de refletir, saber quem procurar, é fundamental até hoje. Dei aulas sete anos. A primeira vez em que eu entrei em uma sala de aula foi um nervoso louco, fiquei passando mal. Você aprende a lidar com isso. Para explicar, tem que entender, tem que fazer a garotada prestar atenção. Talvez o mais peculiar da minha carreira tenha sido participar de setor público e de setor privado, ter experiência municipal e federal. Tudo consiste em gerir processos e pessoas. É preciso ter boa equipe, porque, sem isso, a gente não faz nada.