A iniciativa do Senado de aprovar o fim da prerrogativa de função para quase todas as autoridades do país reacendeu a esperança de que a ideia, que estava engavetada havia anos no Congresso, saia do papel. A inesperada vontade de parlamentares, muitos deles investigados na Operação Lava-Jato, em acabar com o privilégio de serem julgados somente no Supremo Tribunal Federal teria motivo específico: desestimular o STF de seguir com o julgamento, agendado para o fim de maio, que deve restringir o foro privilegiado no país.
Como se trata de uma proposta de emenda à Constituição (PEC), independentemente da vontade dos parlamentares, o caminho até a promulgação é longo: precisa ser aprovada em segundo turno pelos senadores e na Câmara dos Deputados, que ainda fará uma análise em comissão especial. De acordo com uma liderança no Senado, diante do andamento da tramitação, o que se espera é que o Supremo adie o julgamento para esperar a proposta que sairá do Legislativo.
Para o presidente da Associação Internacional para a Administração da Justiça (Iaca), o ex-desembargador Vladimir Passos de Freitas, esse deve ser o exatamente o comportamento da Suprema Corte. "O Supremo não vai assumir uma mudança constitucional como essa. Até hoje se entendeu que o foro é para todos os crimes. Aí, agora, o STF vai dizer que não? Acho muito difícil. Eles devem cancelar o julgamento, pedir vista e esperar pra ver como vai reagir o Legislativo", acredita. "A obrigação de acabar com o foro é do Legislativo. Já existe uma tensão muito grande entre os Poderes e isso poderia agravá-la", acrescenta.
Entretanto, esse não é o sentimento entre os magistrados. De acordo com o ministro Marco Aurélio Mello, que prefere não antecipar o voto, mas já se declarou contrário ao foro em outras ocasiões, o fato de o Senado ter dado andamento à proposta não influencia a análise da matéria pelo STF. "Vamos de qualquer forma decidir a partir da Constituição. Não podemos reescrever a Constituição. Nosso dever é interpretá-la e vamos fazê-lo", comentou.
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A presidente da Corte, ministra Cármen Lúcia, também afirmou, após a aprovação no Senado, que o julgamento "em princípio" está mantido. "O fato de haver um projeto em tramitação no Congresso não é motivo para paralisar um julgamento no Supremo", comentou um magistrado que prefere não se identificar. E, se depender do levantamento do Correio, com informações de declarações públicas já mencionadas por integrantes da Corte, a maioria está disposta a alterar a forma como a prerrogativa é aplicada hoje no Brasil.
Ação
Marcado para 31 de maio, o julgamento da Ação Penal n; 937, relatada pelo ministro Luís Roberto Barroso, analisa o caso do prefeito de Cabo Frio (RJ), Marcos da Rocha Mendes (PMDB-RJ), acusado de compra de votos em troca de R$ 50 e pedaços de carnes nas eleições municipais de 2008. A ação vem, desde então, mudando de instâncias. Em 2015, Marquinhos assumiu mandato como suplente na Câmara e o caso foi remetido ao STF. Um ano depois, deixou o cargo e, cinco meses depois, retornou para substituir o ex-deputado cassado Eduardo Cunha. Eleito em outubro, reassumiu a prefeitura.
"O sistema é feito para não funcionar. Mesmo quem defende a ideia de que o foro por prerrogativa de função não é um mal em si, na sua origem e inspiração, não tem como deixar de reconhecer que, entre nós, ele se tornou uma perversão da Justiça", afirma Barroso no despacho. No texto, o ministro sugere uma alteração na interpretação da Constituição para que o foro passe a existir somente para crimes cometidos durante o exercício de um mandato e que digam respeito estritamente à função.
"Vamos de qualquer forma decidir a partir da Constituição. Não podemos reescrever a Constituição. Nosso dever é interpretá-la e vamos fazê-lo" ; Marco Aurélio Mello, ministro do Supremo
Placar provável
Confira a tendência de voto de cada ministro do Supremo baseada em declarações dadas à imprensa e em palestras sobre o assunto:
Contra o foro
; Cármen Lúcia (presidente)
; Celso de Mello
; Marco Aurélio Mello
; Luiz Fux
; Rosa Weber
; Roberto Barroso
; Edson Fachin
A favor do debate e até restrições à prerrogativa
; Dias Toffoli
; Gilmar Mendes
; Ricardo Lewandowski
; Alexandre de Moraes
Memória
Começo em 1889A primeira vez que se instituiu o foro privilegiado no Brasil foi na Constituição de 1889. Ali, eram contemplados os integrantes do Supremo Tribunal Federal (STF) nos crimes de responsabilidade (julgamento pelo Senado), os juízes federais de penúltima instância, o presidente da República e os ministros pelos crimes comuns e de responsabilidade (julgamento pelo STF). Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, a lista de beneficiados se expandiu: prefeitos, deputados estaduais e outros cargos designados pelas Constituições estaduais são julgados em segunda instância (Tribunais de Justiça); governadores, desembargadores dos TJs, membros dos Tribunais Regionais Federais, Eleitorais e do Trabalho, em terceira instância (Superior Tribunal de Justiça); e presidente e vice da República, ministros, integrantes de tribunais superiores, senadores e deputados federais, em última instância (Supremo Tribunal Federal). Ao todo, estima-se em 38 mil as autoridades com foro privilegiado no país.
Lentidão é um problema
Um dos principais motivos que especialistas destacam para que o foro privilegiado seja extinto é a impunidade gerada pelo tempo que o Supremo demora para julgar as ações contra políticos. Desde 2001, mais de 60 casos, entre inquéritos e ações penais, já prescreveram. O advogado e professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) Daniel Falcão diz que a extinção da prerrogativa de função é essencial para acabar com a impunidade e a desigualdade. "O foro não respeita a igualdade entre as pessoas. O julgamento no Supremo é muito mais demorado porque é um tribunal que não tem estrutura para isso. É uma Corte recursal e constitucional", comenta.
O ministro Luís Roberto Barroso detalha em números a morosidade do STF em analisar os processos. "As estatísticas evidenciam o volume espantoso de feitos e a ineficiência do sistema. Tramitam atualmente perante o Supremo Tribunal Federal, um número próximo a 500 processos contra parlamentares (357 inquéritos e 103 ações penais). O prazo médio para recebimento de uma denúncia pelo STF é de 565 dias. Um juiz de 1; grau a recebe, como regra, em menos de uma semana, porque o procedimento é muito mais simples", destaca no despacho da AP 937.
Hipóteses
A maior preocupação atualmente não é a redução do foro privilegiado, que, na análise de especialistas, está cada vez mais perto de se concretizar. A questão que se discute agora é o que fazer a partir do fim do foro, um debate que tem de ser feito pelo Legislativo. Três hipóteses são estudadas: todas as autoridades serem julgadas na Justiça estadual ordinária; uma vara especializada ser criada para analisar exclusivamente o caso de parlamentares, com direito a recurso ao STF; e a competência responsável ser da Justiça Federal nos estados. Em uma aula inaugural ministrada no mês passado na Universidade Federal de Minas Gerais, o ministro Barroso definiu a situação: "Matar o elefante é fácil. Difícil é remover o cadáver", citando o líder russo Mikhail Gorbachev.