Politica

Escárnio e impunidade

Plácido Fernandes
postado em 02/04/2018 08:00
Diz, expressamente, o artigo 5; da Constituição: "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade". Não é bem assim. No Brasil, políticos com mandato, magistrados e afins são legalmente "mais iguais" que os outros cidadãos. Têm foro privilegiado e raramente, muito raramente, pagam pelos crimes que cometem. Um escárnio.

Encarregado de zelar pela Constituição, o Supremo Tribunal Federal deveria, há muito, ter feito valer para todos o artigo 5;, uma cláusula pétrea - isto é: que não pode ser mudada -, e acabado com essa aberração que divide o Brasil, perante a lei, em cidadãos de primeira e de segunda categorias. Infelizmente, o que se vê hoje é o STF na contramão da história, com ministros empenhados em aumentar a lista dos intocáveis. Para impedir que Lula seja preso, querem mudar a jurisprudência da própria Corte, o que estenderá a impunidade a todos os ricos e poderosos do país. Uma mina de ouro para uma casta de advogados que fazem biquinho ao falar francês no plenário do Supremo, enquanto a patuleia que assiste à sessão pela tevê não entende sequer o português das excelências.

Uma comparação: nos Estados Unidos não existe ninguém acima da lei. Lá nem o presidente da República, o cidadão mais poderoso do planeta, tem direito a tal prerrogativa. E é assegurado ao condenado à prisão o amplo direito de recorrer, mas já atrás das grades após a sentença em primeira instância. Também, na França, a prisão já é decretada após a primeira condenação. São países mais atrasados que o nosso ou mais rígidos no combate ao crime? Foi com argumentos como esses que, em fevereiro de 2016, Teori Zavascki liderou o 7 a 4 no plenário do STF e levou o Brasil a dar um passo adiante, igualando-se à maioria das nações democráticas. À frente da Lava-Jato à época, ele relatou o processo que pôs fim à farra da impunidade ao mostrar que, no ordenamento jurídico brasileiro, a análise das provas e os julgamentos que levam à conclusão de que um réu é inocente ou culpado se esgotam na segunda instância, desmontando a farsa dos que fazem leitura criativa do inciso LVII do artigo 5; da Constituição, em que se lê: "Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória".

Na prática, Teori provou que, à exceção das excelências protegidas pelo foro privilegiado, o "trânsito em julgado da sentença penal" se esgota após garantido ao réu o duplo grau de jurisdição, um segundo julgamento. É assim em praticamente todos os países civilizados. A partir daí, uma vez duplamente condenado - e por unanimidade dos juízes, como no caso de Lula -, não mais existe presunção de inocência, mas a confirmação da culpa. E os recursos existentes são meramente protelatórios. Contudo, os defensores da impunidade não se deram por vencidos. Desde então, principalmente depois da trágica morte do ministro, empenham-se dia e noite a favor do retrocesso. Na prática, querem desacreditar todas as demais instâncias do Judiciário e estabelecer que um bandido poderoso só pode ser posto na cadeia após expressa determinação do Supremo. Teori, certamente, exigiria que lhe mostrassem em qual ponto da Constituição está escrito que ninguém pode ser preso sem autorização prévia do STF.

Assim como a abominável Lei Fleury, imposta ao Congresso pela ditadura para livrar um torturador da cadeia, a legislação da impunidade, se for adiante no Supremo, deve ser popularmente batizada com o nome do petista. E, como no caso de Fleury, muito bandido se beneficiará dela. A começar pelos condenados da Lava-Jato.

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