Leonardo Cavalcanti
postado em 21/10/2018 08:00
Um relatório de mais de 200 páginas recém-produzido pelo Ministério das Forças Armadas da França detalha como países latino-americanos são um campo aberto para a manipulação das informações a partir de uma convergência de fatores econômicos e sociais. O documento inédito cita as eleições brasileiras como exemplo de ataques de mercenários contratados por partidos para atingir a democracia, a partir de fake news. O país, assim como outros da região, incluindo México e Colômbia, torna-se vulnerável, segundo o estudo, pelo uso maciço de redes sociais, incluindo Facebook e WhatsApp ; ;que permitem que comunidades circulem viralmente informações não verificadas entre conhecidos e pessoas de confiança ;, pelo uso intensivo de robôs, pela crise econômica e pela forte polarização política, ;resultando no aparecimento em apoios de candidatos populistas e de extrema direita;.
Concluído no último mês de agosto, o documento é intitulado Manipulação da informação: um desafio para as nossas democracias e foi produzido pela Equipe de Planejamento de Políticas do Ministério para Europa e Relações Exteriores e pelo Instituto de Pesquisa Estratégica das Forças Armadas, dois órgãos vinculados ao governo francês. O relatório analisa e propõe respostas para eventos ocorridos desde 2014 na Ucrânia, Alemanha, Reino Unido e Estados Unidos. ;Esses episódios mostraram que mesmo os maiores países ocidentais não estão imunes aos ataques contra a democracia;, diz um trecho do documento, conseguido com exclusividade pelo Correio. No caso dos países latino-americanos, o contexto socioeconômico desfavorável reflete no descontentamento e na insegurança ; para piorar, há um quadro normativo menos exigente do que na Europa e nos Estados Unidos em termos de direito à privacidade e ao marketing político.
Os estudos para a produção do relatório começaram ainda em setembro de 2017, a partir de um grupo interministerial francês, na tentativa de criar uma força-tarefa para combater a manipulação das informações nas redes. A partir daí foram estudadas causas e consequências das fake news, com o cruzamento de trabalhos acadêmicos de relações internacionais, guerra, inteligência, comunicação, sociologia e psicologia social. No Brasil, entretanto, as autoridades, principalmente as vinculadas ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), pareceram ignorar completamente o risco da manipulação das informações para a democracia. Apesar da criação do Conselho Consultivo sobre Internet e Eleições pela Corte, também em 2017, e de terem tempo para se preparar, os ministros reagiram tardiamente, depois que o território foi ocupado pelas fake news e pelo uso de robôs.
Investigação
Nas últimas 48 horas, partidos adversários ao presidenciável Jair Bolsonaro pediram ao TSE abertura de investigação eleitoral sobre o suposto envolvimento de empresários na contratação de agências para potencializar a campanha do deputado federal nas redes sociais. Apenas na noite da última sexta-feira o tribunal abriu investigação sobre a compra de mensagens em massa contra o Partido dos Trabalhadores, mesmo assim, sem pedir a quebra de sigilo das empresas citadas. Reportagem da Folha de S. Paulo afirma que contratos no valor de R$ 12 milhões foram firmados com agências especializadas em redes sociais. Na edição de quarta-feira, o Correio apresentou propaganda realizada por empresas que oferecem envio de mensagens para candidatos. A ação não é permitida pela legislação, com o objetivo de evitar o abuso de poder econômico. As empresas oferecem disparos a partir de base de dados própria, o que também é proibido pelo TSE. Os bancos com cadastros de eleitores só podem ser criados pelos próprios partidos, candidatos e coligações. O WhatsApp, por sua vez, anunciou o banimento de contas com movimentações atípicas ou suspeita.
Robôs em série
Levantamento da Diretoria de Análise de Políticas Públicas da Fundação Getulio Vargas (DAPP/FGV) mostra que, desde o início deste mês, foram contados 45 milhões de tuítes sobre Bolsonaro e Haddad (PT). ;Nesse cenário, a atuação de robôs em ambos os lados, que havia caído desde o fim de setembro, voltou a aumentar;, aponta o trecho do relatório da fundação. Entre os dias 10 e 16, foram registradas 852 mil publicações de robôs. A base de apoio ao candidato do PSL respondeu por 602 mil, enquanto o grupo do petista usou 240 mil.
"As plataformas de mídia social têm responsabilidade. Elas devem implementar regulamentos para proibir a disseminação de informações pelas agências de comunicação que não têm o direito de fazê-lo;,
disse, ao Correio, Dominique Cardon, professor-associado da Universidade de Paris
Cardon estará em Brasília em 31 de outubro para participar de um seminário sobre fake news promovido pelo Conselho Federal de Administração e pela Embaixada da França. O documento Manipulação da Informação: um desafio para as nossas democracias será lançado durante o evento. Para produzir o relatório, os autores ligados ao governo francês visitaram 20 países, entre eles a Áustria, a Bélgica, o Canadá, o Japão, a Letônia, a Rússia e Singapura, além daqueles que foram vítimas de ataques coordenados de fake news, como os EUA, a Alemanha e a Inglaterra. Ao todo, foram feitas 100 entrevistas com autoridades, agentes de inteligência, parlamentares, acadêmicos e jornalistas para tentar avaliar as ameaças existentes.
Entre as soluções apresentadas no documento, estão a regulação com base em episódios ocorridos em outros países, canais de denúncia governamentais e antecipação de autoridades policiais contra a ação de grupos de ataques coordenados.
No Brasil, por exemplo, segundo especialistas em marketing eleitoral na internet, existem apenas 50 empresas capazes de produzir disparos em massa, o que poderia facilitar as investigações. O trabalho de educação da população para isolar as notícias falsas a partir de informações de fontes jornalísticas é visto como a forma mais eficiente para o combate.
"Não creio que a livre circulação de mensagens do WhatsApp necessariamente signifique que notícias falsas não possam ser eliminadas. O importante é a variedade de diferentes fontes de notícias que as pessoas consomem e a confiança que elas têm nessas diferentes fontes de notícias;, afirma Patrick Le Bihan, PhD em ciência política na Universidade de Nova York.
;Se as pessoas receberem notícias falsas por meio de mensagens do WhatsApp, mas também receberem informações da mídia em que confiam que essas mensagens são falsas notícias, o efeito da mensagem de notícias falsas pode, na verdade, ser prejudicial à campanha que ela tenta apoiar;, disse Le Bihan, que também estará em Brasília no final do mês.