Paloma Oliveto
postado em 28/10/2018 09:40
Quando, em 6 de julho, o juiz Milorad Masic apitou o fim da partida entre Brasil e Bélgica nas quartas de final da Copa do Mundo, aquela seria a última vez de 2018 em que os brasileiros se sentiriam parte de uma só torcida. Não que o país estivesse unido ; a ferida do impeachment permanecia aberta. Mas, dois anos depois da saída antecipada de Dilma Rousseff do poder, o muro separando ;petralhas; de ;coxinhas; parecia menos sólido. Em meio a denúncias da Lava-Jato, delações premiadas, greve dos caminhoneiros, condenação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva pelo Tribunal Regional Federal da 4; Região (TRF-4) e gritos de ;Fora, Temer; ecoando dos dois lados, o Mundial de futebol foi recebido sem muito entusiasmo, mas bastou a primeira vitória, em 22 de junho, para o sentimento de congregação reacender.
O país que hoje vai às urnas é bem diferente do Brasil cordial que torceu e sofreu junto ao ver a Seleção voltar para casa nas quartas de final, há menos de quatro meses. É uma nação dividida entre ;nós; e ;eles;, infestada por notícias falsas disseminadas por robôs nas redes sociais; que adotou, muitas vezes, a retórica do ódio, no qual ameaças, xingamentos e episódios de violência, incluindo o esfaqueamento de um candidato, tornaram-se rotineiros. No lugar de propositiva, é, hoje, a República do ;anti;.
[SAIBAMAIS]Essa fratura começa a ser exposta em meados de 2013, naquelas que ficaram conhecidas como as jornadas de junho. O que era uma manifestação de estudantes de São Paulo contra o aumento de R$ 0,20 nas passagens de ônibus acabou em uma catarse coletiva que tomou as ruas de todo o país. Frustrado com a atuação do Congresso Nacional, com denúncias de corrupção e com os gastos exorbitantes na preparação da Copa do Mundo no Brasil (2014) e das Olimpíadas do Rio (2016), o brasileiro saiu de casa em um movimento espontâneo, que demorou a ser compreendido pela imprensa e por cientistas políticos devido ao excesso de reivindicações ; muitas vezes, conflitantes.
Eleição das redes
;Ali, a direita viu uma chance;, observa o historiador Rodrigo Coppe Caldeira, professor da pós-graduação da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). De acordo com ele, trocas de informações nas redes sociais permitiram a muitas pessoas se identificarem com ideais liberais, ao mesmo tempo em que as esquerdas se distanciavam da nova pauta popular. ;Depois do Plano Real e, especialmente do primeiro governo Lula, houve um avanço no consumo, uma melhora, ainda que temporária, na vida financeira. As pessoas puderam comprar apartamento, carro, tiveram fácil acesso ao crédito. Esse ganho fez com que as exigências aumentassem. Com a incapacidade demonstrada de fazer uma autocrítica profunda e de se refazer, a esquerda perde o vínculo imaginativo com o povão, e a direita conservadora vai se consolidando;, analisa.
Caldeira destaca o papel das redes sociais nas mobilizações das jornadas de junho e nas discussões sobre as crises políticas e institucionais que se seguiram, como o escândalo do ;Petrolão; ; considerado o maior esquema de corrupção já desencavado na história do país. ;Até 2013, havia uma certa apatia política, quase ninguém falava sobre isso;, recorda. Twitter, Facebook e, depois, WhatsApp, ampliaram conversas que, antes, eram ouvidas por poucas vozes: o comentário que se fazia em casa ou na mesa do bar passa a ser compartilhado com centenas de pessoas, cada qual reivindicando para si a razão. ;Redes sociais são espelho no narcisismo contemporâneo. Todos têm de falar sobre tudo, o tempo inteiro. Não há mais a capacidade de ouvir o outro;, acredita.
O cientista político César Alexandre Carvalho, da CAC Consultoria, lembra que, se é natural e importante para a democracia as oposições de ideias, especialmente em tempos de eleições, o que se vê no Brasil é um acirramento do discurso radical da direita e da esquerda pelas redes. Segundo ele, isso reflete o próprio extremismo do PT e de Jair Bolsonaro (PSL). ;Os dois lados dessa disputa são muito radicais;, diz. Com o brasileiro passando nove horas por dia na frente da web, como constatou um levantamento da agência We are Social, trocas de farpas políticas incorporaram-se à rotina diária. ;Uma coisa é encontrar um parente e discutir. Outra é discutir o tempo inteiro, com todo mundo;, ressalta Carvalho.
Fake news
Nessa guerra de nervos, uma arma em particular chamou a atenção de Laura Chichilla, ex-presidente da Costa Rica que veio ao Brasil acompanhar o processo eleitoral como chefe da missão de observadores da Organização dos Estados Americanos (OEA). Na quinta-feira, ela afirmou que a utilização do WhatsApp para disparar fake news não encontra precedentes em lugar nenhum: ;É a primeira vez que, em uma democracia, observamos o uso do WhatsApp para difundir maciçamente notícias falsas, como no caso do Brasil;. No país, essa é uma artilharia particularmente poderosa, diz César Alexandre Carvalho, porque, de acordo com ele, o ;brasileiro tem uma tendência de só ler aquilo que o interessa;.
Os usuários de WhatsApp, no entanto, não acreditam que a influência tenha sido tão forte assim, pelo menos em pesquisa divulgada pelo Ibope na última semana. De acordo com o levantamento, 18% dos entrevistados afirmaram ter recebido algum conteúdo crítico a Haddad ou a Bolsonaro durante as eleições ; o número sobe até 23% quando se fala nas capitais. E 73% não viram ataques a nenhum dos 13 candidatos à Presidência no primeiro turno. Dos que receberam conteúdo eleitoral pelo aplicativo, 75% disseram que isso não os ajudou na hora de decidir o voto, enquanto 24% responderam que a influência ocorreu e 2% não souberam opinar.
Não é só o WhatsApp, porém, que se destacou na corrida. As eleições presidenciais de 2018 trazem outra particularidade. Em oposição ao PT, partido desgastado por graves denúncias de corrupção, pelo impeachment de uma presidente e pela prisão do principal líder, Luiz Inácio Lula da Silva, despontou o fenômeno Jair Bolsonaro (PSL), que de incipiente deputado federal do chamado baixo clero, é, hoje, o favorito nas pesquisas de intenção de voto. O capitão da reserva, que no segundo turno adotou um tom menos incendiário, tem histórico de posicionamentos polêmicos contra minorias e de incitação à violência, como dizer que uma deputada não ;merecia ser estuprada;, afirmar que ;minorias têm de se curvar às maiorias; ou que vai ;varrer; os petistas se eleito.
Luto e ressentimento
;Ele não se vê como o cara mau, mas como um herói fora da lei. E, como ;guerreiro do bem;, acaba autorizando seus seguidores a serem extremamente violentos, física ou verbalmente;, diz André Azevedo da Fonseca, professor da pós-graduação do Centro de Educação, Comunicação e Artes (CECA) da Universidade Estadual de Londrina (UEL) e pesquisador de cultura política. As polêmicas levantadas por Bolsonaro deixaram o debate ainda mais passional, despertando reações como manifestos de acadêmicos e intelectuais que enxergam no candidato do PSL uma ameaça à democracia.
O psicanalista Christian Dunker, professor do Instituto de Psicologia da USP e autor do livro Mal-estar, sofrimento e sintoma: Uma psicopatologia do Brasil entre muros, premiado com o Jabuti em 2016, não acredita que os estragos do processo eleitoral, que levou ao rompimento de amizades e a situações de conflito entre familiares, serão apagados. ;O pós-eleição será um período como de um pós-guerra. Teremos um período de luto, seguido pelo ressentimento. O brasileiro não sabe ganhar, vai humilhar o derrotado, o que aumentará esse ressentimento. É uma bomba de efeito retardado;, prevê. ;A minha preocupação é com o que virá no terceiro tempo. Não será fácil.;