Politica

Golpe mais duro da repressão militar, AI-5 completa 50 anos

Há 50 anos, a mão pesada do AI-5 começava a cassar mandatos políticos, exilar artistas e aumentar a tortura. Em 1968, a onda de protestos contra ao regime deixou generais fragilizados, que não recuaram e aumentaram a agressividade de quem estava no poder

Otávio Augusto
postado em 09/12/2018 08:00
O então ministro da Justiça Luís Antônio Gama e Silva anuncia o ato AI-5 no Palácio das Laranjeiras, no Rio de Janeiro,  ao lado do locutor Alberto Cury
Manancial do poder por uma década, o Ato Institucional n; 5, conhecido como AI-5, deu ao presidente da República o direito de tocar os rumos do país como quisesse, sem ser questionado, inclusive judicialmente. O decreto completa, na próxima quinta-feira, 50 anos. Assinado em uma sexta-feira 13, o documento de oito páginas iniciou e validou o período mais antidemocrático da história política do Brasil. Para antropólogos e historiadores, a possibilidade da repetição de um período igual não encontra convergência.

Empregado contra qualquer forma de oposição, o AI-5 funcionava como mecanismo de intimidação pelo medo, com arcabouço jurídico. A ferramenta recrudesceu a censura e atingiu filmes, peças, livros, jornais e canções. Em nome da segurança nacional, o Congresso Nacional e as Assembleias Legislativas estaduais foram colocados em recesso. Os 12 artigos, 10 parágrafos e sete itens do documento davam ao presidente, à época o general Costa e Silva, poderes para cassar mandatos eletivos, suspender direitos políticos, demitir ou aposentar juízes e outros funcionários públicos, suspender habeas corpus em crimes contra a segurança nacional, legislar por decreto e julgar crimes políticos em tribunais militares.

Às 22 horas de 13 de dezembro de 1968, o então ministro da Justiça, Luís Antônio da Gama e Silva, fez um pronunciamento de menos de cinco minutos em rede nacional no Palácio das Laranjeiras, no Rio de Janeiro. Após sua fala, todo o texto do decreto foi lido pelo locutor oficial do governo, Alberto Curi. Anos depois, ele revelou o peso daquela participação. ;Quando terminei de ler, tive a sensação de que o teto desabou na minha cabeça;, contou, durante a redemocratização do Brasil, em 1985.

Observadores do período analisam que as consequências do AI-5 foram piores do que estava descrito no documento. Tortura, assassinatos e sequestros centralizam as críticas. Além disso, o cerceamento das oposições, com perseguição a lideranças políticas, sindicais e de movimentos sociais, como os estudantis. Na capital federal, professores e alunos da Universidade de Brasília foram perseguidos, demitidos e presos.

;Coisas pavorosas, cenas indescritíveis;, conta quem vivenciou o período. Em depoimento à Comissão da Verdade da UnB, o ex-estudante de administração pública Paulo Speller, 69 anos, lembrou os 14 meses do cárcere. Ele sentiu o agravamento do regime militar. ;Na madrugada da edição do AI-5, começaram a chegar os primeiros prisioneiros. A prisão se transformou em centro de tortura. Ouvíamos a sessões de violência. Víamos as vítimas sendo colocadas de volta nas celas;, detalhou, em julho de 2013. Hoje, ele é professor universitário e secretário-geral da Organização dos Estados Ibero-Americanos para a Educação, a Ciência e a Cultura.

Lembranças

As memórias de Speller servem como alerta para se evitar a repetição de equívocos, explica o historiador Paulo Parucker, pesquisador da Comissão da Verdade da UnB. ;Embora estejamos falando de futuro, olhar o passado ajuda a fazer algum tipo de previsão. Temos de pensar como chegou a acontecer esse ato tão brutal. Com ele, a barbárie foi instalada com um arcabouço jurídico que beneficiou áreas repressivas do governo;, avalia. Para ele, a sociedade ainda respira o decreto. ;Temos uma tradição de governo autoritário. O legado é essa cultura autoritária de perseguição à oposição que foi naturalizada. Naquela época, as pessoas eram presas e isso não era comunicado à Justiça. Elas simplesmente desapareciam. O AI-5 usou a força imposta pelas armas. Mandatos foram cassados, pessoas presas, sequestradas e servidores públicos demitidos;, lamenta.
Presidente Arthur da Costa e Silva preside reunião do Conselho de Segurança Nacional, no Rio, que aprovou o Ato Institucional nº 5
Ele enxerga espaço para posturas semelhantes, mesmo após cinco décadas. ;O limite do poder é dado pelo grande pacto assinado pela sociedade quando ela formula uma Constituição. O nosso pacto de 1988 vem sendo esfrangalhado. Tem se tornado mero papel sem valor, mas não é exclusividade brasileira. O caldo de cultura que nos trouxe aqui hoje é compartilhado em todo o mundo;, conclui.

O contexto histórico, avalia o antropólogo Lênin Pires, especialista em administração de conflitos e professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), era de extrema dificuldade entre as instituições. ;Até o próprio Exército tinha facções e muitas dúvidas de que rumo político o país tomaria. Uma das funções do AI-5 foi acabar com essa sensação com o uso do medo;, pondera. Apesar do ;autoritarismo estatal muito enraizado; no país, ele descarta uma nova guinada deste tipo. ;O mundo hoje é diferente. Temos de aprender com os erros. Não acredito que possamos ter uma guinada desse tipo. O risco sempre existe, mas não como aconteceu de forma deliberada e instituindo uma prática estatal legitimada. Sobretudo pelas instituições, que apesar de certa fragilidade, se mostram reativas;, conclui.


Getúlio Vargas

Na avaliação do filósofo Roberto Romano, professor de ética e política da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), o AI-5 veio como chancela de segurança ao governo. ;A censura não estava funcionando como eles queriam, por exemplo. O Estado se achava no direito de definir os limites de liberdade. As pessoas deveriam provar ao Estado que não eram culpadas. É uma inversão dos valores do estado democrático de direito;, acrescenta.

Estudioso do tema, ele resgata a participação de Francisco Campos, idealizador da ditadura de Getúlio Vargas, entre 1930 e 1945. ;Ele esteve presente na produção de todos os atos institucionais, inclusive o de número 5. Isso é uma espécie de continuidade autoritária da ditadura de Vargas. Temos uma memória jurídica autoritária no Brasil, que teve seu ápice na década 1930;, adverte.

Ele destaca que sempre haverá espaço para façanhas arbitrárias. ;A democracia é um regime muito delicado de ser mantido. A lei não tem braços, armas. Ela precisa imperar, mas, para isso, precisa ao mesmo tempo ser defendida. As eleições geraram tensões enormes, temos incertezas quanto à política. A democracia pode a qualquer momento desandar e não encontrar soluções e acabarmos com uma arrancada autoritária;, argumenta.

Capa do Correio no dia seguinte à promulgação do AI-5. Censura proibiu mancheteProfessor da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo e da Universidade de São Paulo (USP), Rui Tavares Maluf, frisa que o AI-5 significou mais a ameaça do que ações formais. ;Como símbolo maior do regime autoritário, ele tem o teor repressivo. O medo era uso para cercear;, indica. Para se ter ideia da repressão do regime, o assunto foi proibido de ser manchete nos jornais. Na edição de 14 de dezembro de 1968, o Correio publicou integralmente o texto do AI-5 na primeira página com uma chamada discreta: ;Atos do governo no Rio (veja fac-símile);. A mesma fórmula foi usada pelo Jornal do Brasil para informar os leitores. A partir deste momento, a censura ficou maior. O Correio, por exemplo, teve edições alteradas pelas Forças Armadas para excluir reportagens que mostravam a cassação de direitos políticos.

Tavares Maluf acredita que, por mais que se tenha elementos para comparações, hoje o jogo se dá dentro do regime democrático. ;Pode-se ter regimes democráticos com líderes com perfil autoritário. Permeia na sociedade brasileira uma visão autoritária. Isso combina com uma análise particularista, de grupos. A gente precisa superar isso para ter visão de conjunto e de igualdade. Uma coisa é certa: tudo aquilo que o Brasil vivenciou no regime autoritário deve ser motivo de repúdio;, completa.

Sinal verde para tortura

;O presidente da República poderá decretar a intervenção nos estados e municípios, sem as limitações previstas na Constituição, suspender os direitos políticos de quaisquer cidadãos pelo prazo de 10 anos e cassar mandatos eletivos federais, estaduais e municipais, e dá outras providências.; O preâmbulo do Ato Institucional n; 5 revelava como seria sua aplicação: implacável.

A justificativa dos militares para o mergulho do país na censura e na perseguição política seria o risco de uma guerra civil e a necessidade de se controlar a luta armada. Endurecer o regime e instituir medidas mais enérgicas foi o caminho. Umas das vítimas, o jornalista, político, professor universitário e ex-militante Cid Benjamin, hoje com 70 anos, sentiu na pele os efeitos do ato. Foi preso, torturado e exilado.

Cid, entre as décadas de 1960 e 1970, militou na frente da guerrilha urbana, organização contra o regime militar. Com os também jornalistas Franklin Martins e Fernando Gabeira, planejou e executou o sequestro do então embaixador norte-americano Charles Burke Elbrick, em setembro de 1969. A intenção do grupo era a libertação de 15 presos políticos. Cid passou 20 dias preso, sofreu tortura no Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI), no Rio de Janeiro, e viu as agressões serem resguardadas pelo AI-5.

;O AI-5 representou a vitória da linha dura da ditadura militar. A repressão já existia antes, mas ele significa um triunfo. Ele manteve todas as medidas antidemocráticas e repressoras de outros atos, mas não só isso: aumentou e deu sinal verde para que a tortura de presos políticos fosse uma política de Estado;, conta ao Correio. Para ele, o que mais marca o ato é sua validade indeterminada. ;Não tinha data para acabar, diferentemente de outros. Abre-se caminho para o terror, para a intimidação;, lamenta. Cinco décadas depois, Cid não descarta outra arrancada do tipo. ;A situação está em aberto. Temos líderes que defendem as piores práticas da ditadura militar numa sociedade que tem instituições muito fragilizadas;, arrisca.

O documento foi seguido por mais 12 atos institucionais, 59 atos complementares e oito emendas constitucionais. Somente em 1969, tornou-se responsável pela cassação de 333 políticos ; 78 deputados federais, cinco senadores, 151 deputados estaduais, 22 prefeitos e 23 vereadores. Neste período, 66 professores acabaram expulsos das universidades. O Congresso Nacional permaneceu fechado até outubro. Reabriu para eleger Emílio Garrastazu Médici, iniciando um período de tortura ainda maior.

O ministro Gama e Silva, autor do decreto,  é recebido pelo então prefeito de Brasília, Wadjô Gomide: repressão na UnB

O jornalista e escritor Fernando Gabeira, 77 anos, também sofreu com as medidas do ato. ;A decisão endureceu a repressão para se evitar que houvesse mais manifestações contra o governo. Também bloqueou a possibilidade de oposição política. Isso fortaleceu a tese de luta armada. Mas o aspecto que mais me tocou foi ter censores dentro das redações;, lembra. Cinquenta anos depois, o Exército informa pregar ;um espírito de conciliação entre todos, civis e militares;. ;Temos como ideal a superação desta fase, bem como a reconstrução de nossa pátria. Com esse espírito é que a instituição continuará cumprindo suas missões constitucionais, contribuindo para o desenvolvimento do país;, diz, em nota.


;Precisávamos;

Dos grandes nomes, quando a ditadura baixou o decreto, como os ministros Luís Antônio da Gama e Silva, Hélio Beltrão, Jarbas Passarinho e Antônio Delfim Netto, somente esse último está vivo. Delfim tem ressaltado que assinou o ato e, ;se as condições fossem as mesmas e conhecimento fosse aquele que a gente tinha naquele momento, assinaria outra vez;.

Um dos maiores defensores do AI-5, o ex-ministro Jarbas Passarinho, morto em 2016, intercedeu até o fim da vida pelo ato, considerado um dos mais brutais da ditadura. Há uma década, ele contou ao Correio detalhes daquele 13 de dezembro. ;Houve uma reunião em que poucos participaram. Eu não participei. O Costa e Silva já havia preparado um esboço do que ele queria para o AI-5;, revelou, em 2008.

É de Passarinho uma das frases mais marcantes daquele dia. ;Às favas, senhor presidente, com os escrúpulos de consciência;, disparou, durante a reunião que amarrou o decreto. A repressão aumentou e aquele período é encarado como um dos mais sombrios da história do Brasil. Ainda assim, ele não mudou sua concepção. ;Precisávamos de um ato forte;, resumiu, há 10 anos. A justificativa: a necessidade de cassação de habeas corpus e a necessidade de combater com mais eficácia a oposição ao regime.

Bastidores e articulações

Somente mais de 30 anos após a abertura política de 1985 é que fragmentos de documentos do período foram revelados. Até hoje, muitos papéis estão em segredo, por exemplo, os arquivos do Exército. Antes do decreto, militares estavam preocupados com a oposição. A cinco meses da editar o Ato Institucional número 5 (AI-5), generais monitoravam preocupados às manifestações estudantis de 1968 e debatiam seus riscos.

Atas das reuniões do Conselho de Segurança Nacional (CSN) revelam que a linha dura do regime acusava Cuba de organizar um movimento para derrubar generais e implantar o comunismo no Brasil. O presidente Arthur da Costa e Silva mirou na repressão como um modo de conter a ;subversão;. Para tanto, adotou discurso legalista e defensor do ;livrinho;, referindo-se à Constituição, como mostra o registro das reuniões de julho de 1968.

Naquele período, a onda de protestos contra a ditadura deixou a cúpula fragilizada. ;É nítida a existência de uma campanha dirigida para fazer crer que o povo está sendo reprimido por um regime ditatorial, entreguista, ultrapassado, que nada faz em favor dos brasileiros;, argumentou, durante uma reunião, o então secretário-geral do CSN, general Jayme Portella de Mello. Para ele, havia apoio financeiro externo ao movimento. ;Sem dúvida, há uma coordenação dessas ações com atividades de intelectuais, artistas, compositores e outros elementos de esquerda, cada vez mais audaciosos;, reclamou.

Reações duras

O general Emílio Garrastazu Médici, que assumiria a Presidência em outubro de 1969, cobrava reações mais duras. Ele era chefe do Serviço Nacional de Informações (SNI), órgão de espionagem. ;Está em curso um plano com o apoio de políticos e cassados para a tomada do poder. Houve uma manifestação em Brasília, senadores e deputados abraçados a subversivos e nada aconteceu;, apontou.

Costa e Silva, apesar de ter entrado para a história como propulsor do período mais sombrio dos anos de chumbo, inicialmente não queria a radicalização. ;Qualquer ato fora da Constituição no momento será uma precipitação. Será, como se diz, um avanço no escuro sem necessidade. Mais uma vez, serei acusado de imobilismo, mas a situação continuará como está;, ponderou. Ele não recebeu apoio dos aliados militares e se viu obrigado a decretar o AI-5. (OA)


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