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"Sem ajuste, inflação volta", garante o economista Samuel Pessôa

Para o economista e pesquisador do Ibre-FGV, o novo governo precisará cortar R$ 300 bilhões para conter o crescimento da dívida

Rosana Hessel
postado em 24/12/2018 06:00
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Se o próximo governo não atacar a questão fiscal, o país pode voltar a entrar em um abismo inflacionário, como está ocorrendo com a Argentina, alerta o economista Samuel Pessôa, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre-FGV). Pelas contas dele, o futuro presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, precisará fazer um ajuste de R$ 300 bilhões, ou seja, o equivalente a 4,2% do Produto Interno Bruto (PIB), para que as contas públicas se reequilibrem e voltem a registrar superavit primário (economia para o pagamento dos juros da dívida pública). Para ele, se esse ajuste for feito nos primeiros três anos de governo, ;será ótimo;.

E, para isso, terão de ser adotadas medidas de aumento de receita, como elevar as contribuições previdenciárias de servidores e até mesmo de impostos, além, é claro, de realizar as reformas estruturais e rever algumas políticas, como abono salarial. ;Ajuste fiscal dessa ordem é um problema político. Não é um problema econômico. Aumentar carga tributária é uma possibilidade pelo lado da política;, afirma.

Pessôa reconhece que em nenhum lugar está escrito que não se pode aumentar a carga tributária, apesar de uma medida como essa afetar a retomada da economia. ;Essa é uma decisão que terá que ser tomada pelo Congresso. A forma como o ajuste fiscal será feito e quanto ele será baseado em aumento de carga tributária e quanto será baseado em redução de gasto público é uma decisão que só o Congresso Nacional pode tomar. O que não pode acontecer é o Congresso nada fazer e deixar a dívida pública explodir;, alerta.

Na avaliação de Pessôa, o presidente Michel Temer não conseguiu adotar medidas de ajuste fiscal, mas ;ganhou tempo; para que as reformas estruturais sejam feitas, pois a economia estaria muito pior se a ex-presidente Dilma Rousseff continuasse no poder. A seguir, a entrevista concedida pelo economista ao Correio:

Qual o maior desafio do presidente Bolsonaro? Em um artigo recente, o senhor disse que o novo governo precisará encontrar R$ 300 bilhões no Orçamento para cortar e evitar um abismo inflacionário. Pode explicar?

Esse é o valor necessário para o país ter uma posição fiscal sólida o suficiente para que consiga estabilizar a dívida pública. Será ótimo se o novo governo fizer esse ajuste nos primeiros três anos de governo. E esse abismo significa que, se não arrumarmos a política fiscal, o país vai voltar para a inflação. A da Argentina está em 45% ao ano. Inflação não é alguma coisa que está perdida no passado. A qualquer momento, pode voltar.


Há consenso entre os economistas de que o maior desafio do próximo governo é o equilíbrio fiscal?

Sim. Entre os profissionais de economia, é consensual que o maior desafio do governo é o fiscal e esse desafio é de natureza política, não econômica. Não é uma questão que vai ser resolvida por técnicos. Por trás do problema fiscal, existe um conflito distributivo. No século 19, tínhamos a visão dos romances de Charles Dickens, de O Capital, de Karl Marx, nos quais o conflito distributivo era uma questão do capital versus trabalho no chão de fábrica. Vêm à cabeça os movimentos grevistas, as lutas por uma jornada de trabalho civilizada, contra o trabalho infantil, pelo salário mínimo. São todas as lutas da virada do Século 19 e do início do Século 20. Era um momento em que o conflito distributivo se dava no chão de fábrica. É uma realidade do passado.


E hoje, onde está esse conflito?

Nas democracias modernas, esse conflito distributivo se dá, principalmente e não exclusivamente, na discussão do Orçamento público, no interior do Estado. O Estado na forma de arrecadador de quem paga a conta, de quem paga os impostos, e na forma de ofertante de serviços públicos. Quando essa disputa é resolvida civilizadamente, significa que a política com ;P; maiúsculo funcionou e conseguiu arbitrar o conflito distributivo, estabelecendo obrigações do Estado na forma de programas sociais, de remuneração de servidores públicos, de serviços essenciais de saúde e de educação. Simultaneamente, ela dotou o Estado de receitas que consigam fazer frente a essas obrigações. Quando isso ocorre, o Estado é solvente, a dívida pública tem uma trajetória estabilizada. Ela não cresce ilimitadamente, e o conflito distributivo está bem solucionado, de forma civilizada. Agora, quando não se consegue fazer isso, ou seja, se estabelecem obrigações para o Estado sem dotá-lo de receitas que façam frente a essas obrigações, temos um conflito aberto.

Como o novo governo vai enfrentar esse desafio?

O conflito distributivo tem que ser solucionado pelo Congresso Nacional. O presidente é um mediador. Tem um papel de liderança importante. Mas não dá para o presidente propor saídas para o conflito distributivo à revelia do que o Congresso Nacional deseja. Ele tem que, em negociação, conjuntamente com os parlamentares, ver um desenho que vai implicar redução de gastos e reformas, como a da Previdência, e aumento de receitas que estabilize o sistema.


Pode acontecer o que houve com a reforma do governo Temer, que não conseguiu apoio para avançar, mesmo desidratada?

O governo Temer é uma situação diferente. Ele entrou no meio do caminho. É um governo fruto de um impedimento. Ele tinha legitimidade menor para realizar esse tipo de reforma, um horizonte menor que um mandato de quatro anos. Eu acho que precisamos esperar e ver o que o presidente Bolsonaro vai propor. Vamos acompanhar. Não está muito claro para mim. Acredito que ele vai propor alguma coisa razoável. A equipe econômica é muito competente e conhecedora da situação fiscal. Certamente, um presidente eleito, com quatro anos de mandato, é muito forte.

O que temos visto é um Congresso que está deixando bombas fiscais. Teremos um Congresso cooperativo?

Você tem razão. O presidente Temer perdeu a capacidade de centralização das decisões desde o dia 15 de maio do ano passado (com a denúncia dos executivos da JBS contra o emedebista). A característica da política brasileira é que, quando um presidente está enfraquecido, o Congresso, deixado aos seus próprios ventos, em geral, desorganiza a política fiscal. Porque cada deputado quer resolver o problema individual e da sua base eleitoral. Isso, no agregado, gera desorganização fiscal. De fato, tem várias bombas. O Tribunal de Contas da União (TCU) tem sido bem cooperativo e tem desarmado algumas delas. E o novo presidente, no início do mandato, vai ter de resolver isso. Acho que as bombas vão ser desarmadas. Temos experiências passadas de governos que fizeram ajustes fiscais. O governo de Fernando Henrique Cardoso, por exemplo, no primeiro ano do segundo mandato, em 1999, fez um ajuste fiscal de 3% do PIB. Há capacidade política para se arrumar a situação.


Cientistas políticos alertam para a falta de consenso na base do futuro governo. Qual sua avaliação sobre isso?

Se não tiver apoio político, aí não tem jeito. Há um desejo de mudar a forma de se processar a política. Ainda não está claro como isso vai funcionar. Vamos ver o jogo que vai ser jogado.


O senhor escreveu que Temer trouxe avanços, mas deixa um deficit estrutural. Pode explicar?

De fato, Temer não conseguiu aprovar medidas que mexessem no desequilíbrio do gasto obrigatório. Aprovou algumas medidas estruturantes e, além disso, conseguiu aumentar muito a reputação do Banco Central (BC) com a troca do presidente Alexandre Tombini por Ilan Goldfajn. E isso foi muito importante, porque reduziu o custo de desinflação. Os juros podem cair mais e ter um impacto sobre a dívida. O presidente Temer comprou tempo. Ele foi uma ponte para o futuro, porque conseguiu fazer algumas reformas importantes, como a trabalhista e a emenda constitucional que estabelece o teto de gastos. Fez a reforma do ensino médio. Mudou a governança do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), mas não conseguiu fazer reformas estruturantes na área fiscal. E esse será o trabalho do Jair Bolsonaro. E é natural que seja dele, porque foi eleito. Temer, não. Um governo politicamente fraco não consegue fazer essas reformas. Mas minha avaliação do saldo do governo Temer é muito positiva. Se a presidente Dilma tivesse ficado até o fim, a economia hoje estaria muito pior.


A condução da política monetária não foi relativamente fácil com a queda na demanda?

É verdade. O país entrou em uma crise brutal, com desemprego muito forte, e isso produziu a queda da inflação. Mas temos de lembrar que, antes da troca do presidente do BC, a inflação estava muito mais resistente, mesmo com a crise. O crescimento do desemprego ocorreu na Presidência de Dilma Rousseff. Havia resistência das expectativas. E isso acontecia por suspeita de que não havia independência do BC, entre outros motivos. A maneira como o então presidente Tombini operou a política monetária no primeiro mandato da presidente Dilma fez com que as pessoas perdessem a confiança na direção do BC. Quando ele saiu e entrou o Ilan Goldfajn, que tem uma reputação e uma biografia respeitadas, houve melhora das expectativas. Isso reduziu o custo de desinflação.


Na sua avaliação, o futuro presidente do BC, Roberto Campos Neto, pode manter essa credibilidade reconquistada por Goldfajn e dar continuidade à agenda atual?

Não tem nada na biografia do futuro presidente do BC que o desabone. É uma pessoa experiente. Ele recebe uma situação muito positiva do atual presidente.
Como Bolsonaro vai conseguir cortar os gastos na carne?
Ele vai ter que fazer reforma da Previdência. Vai ter que aumentar a contribuição do servidor público para o sistema previdenciário, porque o sistema próprio está atuarialmente quebrado. Essa questão vai ter que ser tratada pelo Supremo Tribunal Federal. Alguns programas podem ser reformulados. Gasto com abono salarial não faz sentido mais. E acho que haverá medidas do lado da receita também.


O senhor acha que vai ter aumento de imposto?

Aumentar carga tributária é uma possibilidade pelo lado da política. A gente sabe que a carga brasileira é a mais alta da América Latina e que o Brasil tem uma carga tributária muito alta para a renda que temos. Evidentemente, aumentar essa carga tem efeitos ruins para todo o funcionamento da economia. Dito isso, não está escrito em nenhum lugar que não se pode aumentar a carga tributária. Essa é uma decisão que terá que ser tomada pelo Congresso. O que não pode acontecer é o Congresso nada fazer e deixar a dívida pública explodir.


Como a União vai ajudar os estados se recentemente renegociou a dívida com os entes federativos?

A União não tem dinheiro. A melhor coisa que os governadores podem fazer é pressionar seus deputados para aprovarem a reforma da Previdência, porque isso ajuda os estados.


Analistas afirmam que a reforma da Previdência precisará ser mais ampla do que a proposta por Temer. O senhor concorda?

Claro. E isso precisará ser discutido. A nova reforma tem que tratar de policial militar, tem que repensar o regime especial dos professores, um monte de coisas. Se a gente não tratar disso, vai ter inflação e o Brasil vai virar Argentina. Como eu disse, a inflação argentina está virando o ano em 45%. Se a gente quiser uma inflação de 45%, a gente vai ter.

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