Politica

Documentos produzidos após o golpe de 1964 revelam narrativa ufanista

A força da pesquisa acadêmica mundial, porém, mostra como ações do passado - retomadas por Bolsonaro - são frágeis

Marina Torres*, Leonardo Cavalcanti
postado em 31/03/2019 06:05
A força da pesquisa acadêmica mundial, porém, mostra como ações do passado - retomadas por Bolsonaro - são frágeis
Em 1; de fevereiro de 1971, o então coronel Octavio Costa, chefe da Assessoria Especial de Relações Públicas, enviou ofício circular a prefeitos brasileiros. No documento, de número 151, o militar detalha uma ordem do general Emílio Garrastazu Médici: ;Com a proximidade do dia 31 de março, cumpre-me transmitir a tônica que o senhor presidente apreciaria fosse dada às comemorações da data;, escreveu Costa. Em resumo, o Palácio do Planalto orientava os administradores municipais a inaugurarem alguma ; qualquer ; obra, ainda que, ;na modéstia de recursos, isso se limite ao gesto simbólico de plantar uma árvore;.

Levantamento do Correio feito no Sistema de Informações do Arquivo Nacional localizou pelo menos 40 documentos referentes às comemorações do golpe de 1964. Em comum, o tom ufanista utilizado pelo coronel Costa, que chega a propor a adoção de um slogan, ;Março - tempo de construir, ajude ainda mais sua comunidade;, aos prefeitos para, segundo ele, ;motivar a opinião pública;. Referências à comemoração da data aparecem predominantemente entre 1964 e 1985, segundo a pesquisa, em Brasília, Rio de Janeiro, Cabo Frio (RJ), Bom Jesus de Itabapoana (RJ), São Paulo, Itapeva (SP), São José do Rio Pardo (SP) e em Tabuleiro (MG).

Como que preso num túnel do tempo, na última segunda-feira, o presidente Jair Bolsonaro repetiu a ordem de Médici, que governou o país entre 30 de outubro de 1969 e 15 de março de 1974, quando a tortura, assassinatos de adversários do governo e a censura atingiram o ápice, sendo usadas de maneira sistemática pelo Estado brasileiro. É a farsa se repetindo na história. Médici, apesar de ter prometido, na posse, a volta da democracia, acabou responsabilizado político e institucionalmente pela Comissão da Verdade, em 2014, e teve o título de doutor honoris causa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) revogado, em 2015.


Rastros


O 31 de março marca o golpe que derrubou o presidente João Goulart e estabeleceu o início da ditadura, que se estendeu por longos 21 anos e deixou, no rastro de atrocidades, 434 pessoas mortas ou desaparecidas, segundo números da própria comissão da verdade. ;Ele (Bolsonaro) sempre fez isso, desde quando era deputado, em tom de provocação, para exacerbar os ânimos, mas isso é irrelevante do ponto de vista acadêmico, das pesquisas;, diz Carlos Fico, professor de história do Brasil da (UFRJ), um dos maiores especialistas do tema da ditadura no país. O pesquisador, autor de O golpe de 1964: momentos decisivos (Editora FGV), explica que há uma vigilância de pesquisadores em todo o mundo sobre a qualidade da produção acadêmica. ;Se alguém publica algo estapafúrdio, ou é desmoralizado, ou simplesmente ignorado.;

;Sempre houve iniciativas, que, a partir de determinado momento, ficaram restritas a grupos de militares, uma farsa restrita aos quartéis, mas não chegam a assustar, são insignificantes do ponto de vista da historiografia, formada a partir de estudos objetivos, com método, consultas, entrevistas;, diz Fico. ;A nossa preocupação é outra, está mais nas iniciativas pela mudança nos conteúdos dos livros didáticos. Esse tema, sim, caso tentem alterar, o assunto será judicializado. Mas essa comemoração do 31 de março é algo como uma opinião, todo mundo pode ter a sua, mas isso não representa conhecimento;, afirma o professor.

Em nota pública divulgada na terça-feira, a Procuradoria Federal do Cidadão, do Ministério Público Federal, apontou que ;festejar a ditadura é festejar um regime inconstitucional e responsável por graves crimes de violação aos direitos humanos;. Para a procuradora Deborah Duprat e três auxiliares, a ;iniciativa (de Bolsonaro) soa como apologia à prática de atrocidades massivas e, portanto, merece repúdio social e político, sem prejuízo de repercussões jurídicas;. Há poucas dúvidas sobre o estímulo de Bolsonaro. Ainda na quarta-feira, o general do Exército Lourival Carvalho Silva se sentiu à vontade de mandar um convite para uma formatura ;alusiva à revolução democrática de 31 de março de 1964;. Comandante Militar do Oeste, Lourival convidou a família militar para o evento realizado na sexta-feira, no Forte do Comando, na capital do Mato Grosso do Sul.

Os apoios se seguiram, vindos da ala mais folclórica dos apoiadores. Eduardo Bolsonaro, deputado federal e filho do presidente, divulgou nas redes sociais um filme sobre o golpe na lógica de parte dos militares. O chanceler Ernesto Araújo, mesmo que esvaziado entre os mais influentes no Planalto, entrou no coro dos festejos, e disse não ter havido um golpe em 1964. Para ele, o que houve na ocasião foi um ;movimento necessário; para que o país não se tornasse uma ;ditadura;. A declaração um pouco mais moderada veio do ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva: ;O termo aí, comemoração na esfera do militar, não é muito o caso. Vamos relembrar e marcar uma data histórica que o Brasil passou, com participação decisiva das Forças Armadas, como sempre foi feito;. A ordem do dia em referência ao 31 de março foi lido no Planalto na sexta-feira.

Na última sexta-feira, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e o Instituto Vladmir Herzog uniram-se para realizar uma denúncia à Organização das Nações Unidas (ONU), relativa à proposta de comemoração do Golpe de 64 por parte de Bolsonaro. A petição pede aos relatores do caso que se cobre explicações do presidente e de outros membros do governo, como o ministro Ernesto Araújo, quanto às recomendações do dia 31. De acordo com o presidente do Conselho Federal da OAB, Felipe Santa Cruz, o comentário do chefe de Estado fere o Estado Democrático de Direito.

;Na medida em que se idealiza para a juventude o movimento ditatorial e arbitrário, afronta-se a Constituição, que é a mais democrática da história brasileira. Todos os instrumentos que tivermos ao nosso alcance judicial serão utilizados para que evitemos medidas concretas. Enquanto for uma fala, é só uma fala equivocada de um presidente que deveria estar mais preocupado em reacender o Brasil do que reaver velhas feridas;, disse Santa Cruz em entrevista exclusiva o Correio na última sexta-feira. O advogado é filho de Fernando Santa Cruz, militante político desaparecido durante o regime militar, em 1974.

Para o professor Carlos Fico, há uma dificuldade básica na interpretação dos críticos aos estudos acadêmicos sobre o golpe de 1964. ;A estupidez é tão grande que eles (os defensores do golpe) não sabem que um dos principais pontos da historiografia brasileira é fazer uma análise crítica de militantes de esquerda, que romantizaram as narrativas. são importantes, sim, mas são fontes para a nossa pesquisa.; A farsa, por mais boba que seja, não deixa de ser uma farsa.


Cartas e "deboche"


Um dos documentos localizados pelo Correio no Sistema de Informações do Arquivo Nacional revela no Rio de Janeiro denúncias de alcaguetes aos militares. Em Cabo Frio (RJ), um homem enviou uma carta à Comissão de Investigações em 1971 afirmando que, pela primeira vez, a Câmara Municipal havia realizado uma sessão especial em comemoração ao 31 de março, mas que a data havia sido alvo de deboches por parte da bancada do MDB pela proximidade com o ;dia da mentira; (1; de abril).

Situação semelhante também ocorreu, em 1974, em Bom Jesus (RJ). Uma carta denúncia foi escrita por uma mulher que acusava um colega do prefeito e seu filho de participarem de um conluio contra os militares em um discurso feito na comemoração da data do golpe. Na parte dos documentos específicos das Forças Armadas, apareceram apenas dois documentos com citações de comemorações do golpe. Uma nota informativa enviada pela Presidência informou a agenda cultural prevista para o ano e, nela, no dia 31 de março, está marcado o ;Aniversário da Revolução de 1964.; A outra, do Conselho de Segurança Nacional, informa como a data foi relembrada em contexto internacional, em 1984.

* Estagiária sob supervisão de Leonardo Meireles

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