Politica

Artigo: A Alang brasileira

Fernando Cesar Costa*
postado em 28/07/2019 15:43
O porta-aviões Minas Gerais, antiga nave-mãe da esquadra naval brasileira, motivo de orgulho para uma geração de militares, terminou sua trajetória em uma pequena faixa de areia no estado de Gurajat, na Índia, local do maior desmanche de navios do mundo. Ali, nas praias de Alang, cerca de 600 a 700 naves por ano terminam seus dias reduzidos a uma tonelagem incomensurável de sucata. Com esses navios de guerra, de cruzeiros e cargueiros, alguns deles joias de países e empresas, se vão também o suor de seus marinheiros e o importante papel que desempenharam para o desenvolvimento mundial.

Ao rasgar a letra da lei em uma decisão monocrática que submete a atividade do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) à cláusula de jurisdição, o Ministro Dias Toffoli, em uma canetada, transformou o Supremo Tribunal Federal (STF) em uma verdadeira ;Alang; a serviço do crime organizado, desmontando o principal ;navio de guerra; do combate a organizações criminosas, à corrupção e à lavagem de dinheiro obtido com crimes graves e por vezes violentos.

Pilar nacional de um macrossistema mundial de combate à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo, o Coaf contribuiu nos últimos anos, de forma contundente, para o desbaratamento de organizações criminosas que faziam transações ilegais com recursos obtidos nos mais variados crimes. O sucesso desse trabalho se deve à simples coleta e análise de informações sobre operações financeiras e de aquisição de bens considerados suspeitos e, por isso, repassados a órgãos de investigação.

A canetada ; desculpe-me o leitor por não achar outro substantivo publicável para o ato ; abre as portas para que o que deveria ser uma corte constitucional venha agora a se transformar no estaleiro de desmonte para todos os processos criminais por delitos de lavagem de dinheiro que tiveram como ponto de partida a atividade da Unidade de Inteligência Financeira (UIF) brasileira.

E isso, independentemente da natureza do delito antecedente, se tráfico de entorpecentes, explosões de bases de valores ou a corrupção endêmica que assola o país e subtrai de todos nós, cidadãos, saúde, segurança, educação e infraestrutura. Longe de ser um ataque a uma operação de combate ao crime organizado de forma específica, a decisão de Toffoli é um atentado a toda a sociedade. Permanecendo sua validade, as autoridades encarregadas da investigação de crimes graves deixarão de receber informações sobre transações financeiras suspeitas de forma imediata, combalindo a já sofrida proatividade do sistema de repressão criminal.

Mas o estrago vai além. Como bem lecionado pelo ex-diretor da Unidade de Inteligência Financeira do Ministério da Economia e das Finanças Italiano Giuseppe Maresca, em palestras ministradas na Universidade de Teramo, ainda em 2010, o regime de combate à lavagem de dinheiro ; do qual as UIFs, como o COAF, são o ponto nevrálgico ; não tem como objetivo único a repressão criminal.

Em todo o mundo, o combate à lavagem de dinheiro visa à proteção do sistema financeiro e à prevenção à falência de Estados que, por se constituírem em verdadeiros paraísos para o dinheiro sujo, passam a sofrer sanções internacionais e se tornam pouco atrativos para negócios lícitos, sendo seus bancos, inclusive, proibidos de operar internacionalmente.

A canetada de Toffoli mostra ainda a precisão de uma outra observação feita por Maresca em suas aulas: a supressão da atividade de organizações criminosas e a proteção do sistema financeiro serão tão maiores quanto maior for o incremento das atividades das UIFs. Foi isso que parece, de fato, ter incomodado o ministro.

Quanto mais notificações de transações suspeitas forem feitas ao Coaf, quanto mais essas informações forem analisadas de forma global, quanto mais relatórios de inteligência financeira com dados sobre possíveis delitos de lavagem de dinheiro chegarem às mãos de delegados de Polícias Civil e Federal, promotores de Justiça e procuradores da República, menos criminosos terão sucesso em suas empreitadas.

Haverá menos acesso a drogas e a mercadorias falsificadas, menos imigrantes ilegais serão escravizados e menos dinheiro público acabará desviado e investido em armamento ; e agora até em ;hackers; ; que
atuam contra as próprias instituições encarregadas da repressão criminal. Quanto menos dinheiro proveniente de crime circula em uma economia, mais saudável é o estado financeiro de um país, mais próximo da realidade fica o custo de suas operações, mais sólida se torna sua economia, posto que baseada em indicadores reais de produção e prestação de serviços.

Se algum leitor tiver dúvidas dessa assertiva, procure conversar com empresários que atuavam em seus ramos de negócios após os escândalos desvelados pela operação Lava-Jato e ouvirão relatos uníssonos de como parte dos bilhões de reais desviados por políticos corruptos, lobistas e empresários envolvidos nos esquemas sumiram da economia local levando alguns negócios a ruínas. Essa é a abrangência da decisão de Dias Toffoli: sucatear o país, conduzindo-o de volta ao fim dos anos 1980, quando teve início toda a estruturação do regime mundial de combate à lavagem de dinheiro. Resta a pergunta: em benefício de quem, ministro?

*Delegado de Polícia da Polícia Civil do DF



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