Alessandra Azevedo
postado em 29/10/2019 06:00
[FOTO1]A onda antiliberal vista nas últimas semanas na América Latina, com os protestos no Chile e a eleição da chapa de esquerda para presidir a Argentina, retomou, no Brasil, discussões sobre efeitos da capitalização do sistema previdenciário e eventuais prejuízos de privatizações de estatais ; para citar alguns dos assuntos que levaram os chilenos às ruas. Apesar da dimensão dos protestos, o que acontece no Chile serve de alerta ao governo brasileiro, mas não ameaça a agenda econômica em curso, avaliam especialistas ouvidos pelo Correio.Apesar da repercussão em discursos políticos inflamados e das naturais comparações entre os modelos econômicos adotados, ;os protestos no Chile não mudam o voto de ninguém no Congresso;. O governo, muito menos, tira alguma proposta da lista de prioridades. Segundo especialistas, reformas administrativa e tributária e privatizações não correm o risco de ser atingidas pelos problemas ao redor.
O principal impacto político do que acontece no Chile é de chamar a atenção para que a pauta não seja exclusivamente de privatizações e reformas. O importante, segundo especialistas, é que haja uma agenda social para compensar as medidas liberais que forem adotadas no Brasil. ;A situação no Chile serve como alerta para a importância dessa pauta paralela, mas não é uma ameaça à agenda em andamento;, avalia o economista Robson Gonçalves, professor da Fundação Getulio Vargas (FGV).
No atual governo, avançar com essa agenda social é papel do Parlamento, explicou o analista político Thiago Vidal, da Prospectiva. Com perfil ;extremamente liberal;, o objetivo do Ministério da Economia é, claramente, cortar gastos. ;A preocupação não é com qualidade de serviços públicos ou diminuição de desigualdades;, explicou. Já o Congresso tem foco no social e assume a responsabilidade de complementar a agenda fiscal. ;Tem que, eventualmente, dar alguma coisa em troca, algum ponto positivo;, disse Vidal.
;Todo presidente tem as duas agendas, econômica e social. Cada um privilegia uma. No caso do presidente Jair Bolsonaro, a preocupação com o social é muito tímida, ele quase não fala disso. Depois de mais de 10 anos de governo petista, em que essa agenda era muito forte, a minha impressão é de que as pessoas começam a cobrar;, afirmou Vidal.
O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), refletiu esse pensamento nesta segunda-feira (28/10), ao declarar que ;precisamos ter a agenda que destrava a economia e na qual possamos ter a redução da pobreza;. Para o economista Robson Gonçalves, professor da FGV, a declaração, acertada, tem influência do que ocorre no Chile. É uma forma de o Congresso se antecipar a uma possível demanda das ruas. Pelo menos para o Parlamento, as manifestações acenderam o sinal de alerta.
Negligenciar a importância dessas medidas pode levar o Brasil a precisar fazer uma agenda compensatória de última hora, sob pressão, como aconteceu no Chile. Na semana passada, o presidente Sebastián Piñera anunciou uma série de mudanças que inclui, entre outros pontos, aumento nos valores de aposentadorias e redução de salários no alto escalão do funcionalismo público.
Limites
Com a configuração política brasileira, mesmo que o governo insista nas pautas liberais, na prática, elas são limitadas, avalia Vidal. ;Os ideais de Guedes não vão para a frente no Brasil. Politicamente, o brasileiro não é liberal na economia como ele é, e isso é refletido no Congresso;, explicou. A diferença de direcionamento entre os dois Poderes ficou clara, por exemplo, na votação da reforma da Previdência, pauta usada pela oposição como exemplo das intenções pró-mercado do governo.
A tentativa de capitalizar o sistema e adotar um modelo parecido com o que falhou no Chile ; com a criação de contas individuais geridas por bancos, em vez de contribuições solidárias ; foi um dos primeiros itens barrados no Congresso, sem nenhuma dificuldade. A rejeição foi tamanha que o tema não passou nem pela primeira fase de discussão e sequer foi votado.
Depois da tentativa fracassada, o assunto, que poderia inflamar os ânimos da sociedade e, como consequência, gerar pressão para que o Congresso rejeitasse outras pautas econômicas, saiu do radar. Embora endureça as regras, a reforma da Previdência aprovada na semana passada não tem o principal componente liberal. ;A proteção social foi mantida. É um ajuste no sistema, mas não muda o modelo;, explica o analista político.
Para Vidal, a derrota evidencia que o Brasil não corre o risco de ;exagerar; no liberalismo. ;Não existe chance de acontecer uma grande revolução liberal no Brasil. O país já tem características estruturais muito fechadas, que torna a liberalização muito difícil;, observou. Nenhuma das pautas no radar do Executivo, na avaliação dele, tem potencial para render manifestações suficientes para mudança nos rumos da política econômica.
Além do equilíbrio garantido pelos parlamentares, a intensidade das pautas liberais defendidas pelo Ministério da Economia é bem mais suave do que as mudanças implementadas no Chile, que contribuíram para a convulsão social, ressalta Gonçalves, da FGV. Não se fala no Brasil sobre a privatização de serviços básicos, como saúde e educação, por exemplo. Passar o comando de universidades públicas para a iniciativa privada também é um assunto que dificilmente seria discutido pelo Congresso. Fazer um paralelo entre a agenda do governo brasileiro com a implementada no Chile ;é um exagero;, afirmou o especialista.
Pelo mesmo motivo, a economista da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Margarida Gutierrez não acredita que a situação dos países vizinhos possa atrapalhar a agenda econômica do governo. ;Não tem como comparar o Chile com o Brasil. Não tem nada de liberal nas pautas que são propostas pelo governo brasileiro. Não é uma agenda liberal, é um ajuste fiscal para tentar organizar as contas públicas;, explicou.
O governo e o Congresso, na opinião dela, não estão dispostos a mudar os rumos das pautas no radar. ;Hoje não vejo esse risco. É fórmula para dar tudo errado. Acho que nosso Congresso está muito consciente da necessidade de continuar na agenda fiscal. Deve continuar indo por esse caminho;, acredita Margarida Gutierrez.