Com a proximidade das eleições municipais, em outubro, e o jogo político se desenhando para 2022, a relação do presidente Jair Bolsonaro com governadores e prefeitos pode sofrer desgastes ainda maiores dos que os vistos em 2019, dizem especialistas. A tendência, na visão deles, é o aprofundamento de desavenças que ainda não foram resolvidas, como as corriqueiras brigas com chefes de Executivos do Nordeste e o afastamento de nomes que, até pouco tempo, eram aliados.
Do ponto de vista orçamentário, estados e municípios estão, agora, mais independentes do governo federal do que eram em 2019. A partir deste ano, os parlamentares poderão enviar as emendas individuais para os governadores e prefeitos sem intermediários, graças a uma proposta de emenda à Constituição (PEC) aprovada em dezembro. Também contribui para a autonomia dos entes o alívio trazido pelo Orçamento impositivo, que tornou obrigatório o pagamento de emendas coletivas, as elaboradas pelas bancadas estaduais.
A consequência das mudanças é que os governadores terão menos necessidade de chegar a Brasília “com o pires na mão” para pedir liberação de dinheiro. As políticas recém-aprovadas os descolam da caneta do presidente, afirma o analista político César Alexandre de Carvalho, da CAC consultoria. “Os parlamentares, em geral, são municipalistas, têm interesse na liberação de verbas. Levar recursos para as bases é muito importante, principalmente para quem está de olho em reeleição”, explica.
Os parlamentares aprovaram os instrumentos que facilitam o repasse justamente para formalizar o distanciamento entre Executivo e Legislativo, avalia o analista político Thiago Vidal, da consultoria Prospectiva. “As mudanças começaram em um período de muitas brigas entre os dois poderes. O parlamento enviou um recado de autonomia para o presidente”, frisa. Para ele, “não há nada no horizonte que mostre que, neste ano, a relação será melhor” com o Congresso e, consequentemente, com governadores e prefeitos.
Obstáculos
As garantias em relação às verbas e ao apoio de congressistas, porém, não são suficientes para que os entes percam interesse em melhorar o trânsito com o Planalto, pondera o CEO da consultoria Dharma, Creomar de Souza. “Mesmo com Orçamento impositivo e capacidade dos parlamentares de ter emendas, de fato, implementadas, há determinados tipos de linhas de crédito e benesses da União sobre os quais estados e municípios não são muito autônomos”, aponta. A dependência em relação ao presidente segue, portanto, relevante.
“De qualquer forma, tende a ter um aumento da temperatura neste ano”, acredita o especialista. A dúvida dele é se Bolsonaro vai criar dificuldades daqui para a frente. Um dos motivos é, naturalmente, a campanha eleitoral municipal, considerada uma espécie de “ensaio” para as nacionais e que mexe na organização dos partidos e das lideranças. Os candidatos escolhidos e os que foram descartados, sob comando de quem, são um ótimo termômetro para analisar a influência do governo federal no futuro.
Tanto brigas quanto resultado do pleito podem afetar a atuação das bancadas no Congresso e os projetos do governo. Em alguns casos, governadores bem posicionados no partido, que mostrem influência durante as eleições municipais, vão passar a ter mais poder nas legendas e, por isso, podem atrapalhar a agenda do Executivo federal. “Eles poderão solicitar que as bancadas tenham posicionamento mais favorável ou contrário ao governo em pautas”, explica Souza.
Brigas
Os interesses em candidaturas presidenciais também afetam o cenário. Até o início de 2019, Bolsonaro ainda contava com a simpatia dos governadores do Rio de Janeiro, Wilson Witzel (PSC), e de São Paulo, João Doria (PSDB). O cenário mudou. Focados nas eleições de 2022, a expectativa é de que eles se afastem ainda mais, analisa o cientista político Geraldo Tadeu Monteiro, professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj). “Se nada mudar, a tendência é que ele continue com as dificuldades, os embates e as acusações”, destaca.
Os desentendimentos não começaram agora. O primeiro ano de governo Bolsonaro foi cheio de alfinetadas a governadores, principalmente do Nordeste. A expectativa dos especialistas é de que a relação siga dessa forma. O problema foi sinalizado logo em janeiro, quando os nove representantes da região boicotaram a posse presidencial, mas piorou em julho, com o vazamento da gravação em que o presidente disse ao ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, que, “entre os governadores de 'paraíba', o pior é o do Maranhão”, em referência a Flávio Dino (PCdoB).
A declaração rendeu uma nota de repúdio assinada por oito governadores. Mesmo assim, dias depois, Bolsonaro disse que os chefes de Executivos da região se acham “os reis da área”. Ainda em junho, na inauguração do Aeroporto Glauber Rocha, em Vitória da Conquista, na Bahia, ele disputou com o governo estadual a paternidade da obra. O governador do estado, Rui Costa (PT), não foi ao evento e ainda afirmou que o presidente “odeia o povo do Nordeste”.
A mais recente divergência com representantes da região foi em outubro. Em postagem no Facebook, o chefe do Executivo federal chamou o governador de Pernambuco, Paulo Câmara (PSB), de “espertalhão” e criticou uma campanha sobre o pagamento do 13º do Bolsa Família com recursos do estado. Resultado: outra carta de repúdio dos governadores. “É profundamente lamentável que a missão confiada ao atual presidente seja transformada em um vergonhoso exercício de grosserias”, escreveram.
Com os prefeitos, o relacionamento também não é dos melhores. Um baque marcante foi quando o Ministério da Economia propôs extinguir municípios com menos de cinco mil habitantes e arrecadação própria inferior a 10%. A ideia, incluída na versão do Executivo da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) do Pacto Federativo, foi muito mal recebida. Centenas de prefeitos já estavam prontos para vir a Brasília fazer pressão pessoalmente para que o texto fosse barrado, quando o presidente recuou.
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