Correio Braziliense
postado em 27/01/2020 12:00
Organizados sob o discurso de uma força de segurança paralela para combater o crime, especialmente o tráfico de drogas em comunidades pobres da Baixada Fluminense, os grupos milicianos constituÃram domÃnio territorial em bairros do Rio, controlando não só a segurança, mas negócios como venda de gás, de água, de cestas básicas, de imóveis e de sinal de TV e internet. A ampliação desse leque de serviços gera empregos e influência polÃtica, traduzida no financiamento de campanhas eleitorais.
De "polÃcia paga", as milÃcias viraram reguladoras da economia local, monopolizando demandas que deveriam ser atendidas pelo Estado e, consequentemente, sobretaxando a população. A atuação desses grupos é um dos temas que já pautam a eleição para a prefeitura do Rio. Na disputa, o ex-vereador Jerônimo Guimarães Filho (PMB), o Jerominho, poderá enfrentar nas urnas o deputado federal Marcelo Freixo (PSOL).
Os dois lançaram pré-candidatura um ano antes da eleição e projetam um embate que tem como pano de fundo a atuação de grupos milicianos no Estado. Em 2008, Jerominho, um ex-policial que exercia o segundo mandato de vereador, foi preso acusado de homicÃdio e de ligação com uma das mais antigas milÃcias do Rio, a Liga da Justiça.
Seu nome apareceu naquele mesmo ano no relatório final da CPI das MilÃcias, na Assembleia Legislativa do Rio, que indiciou 226 pessoas, entre elas policiais, agentes de segurança, militares e polÃticos - com destaque para a famÃlia de Jerominho. Freixo foi o autor do pedido de abertura da investigação e presidiu a comissão parlamentar. "A milÃcia é o único grupo criminoso no Rio que transforma domÃnio territorial em domÃnio eleitoral. É uma máfia que se estrutura dentro do Estado, o crime organizado sempre está dentro do Estado, e, sem dúvida nenhuma, é a maior ameaça à democracia no Rio de Janeiro", disse Freixo.
Em agosto do ano passado, Jerominho afirmou, em vÃdeo postado nas redes sociais, que pretende concorrer neste ano. O anúncio ganhou destaque no noticiário porque o ex-vereador cumpriu pena de prisão de 2008 a 2018, condenado por crimes como homicÃdio e por integrar a Liga da Justiça - o sÃmbolo do morcego do Batman é usado para demarcar território.
O irmão de Jerominho, o ex-deputado estadual Natalino José Guimarães; o filho dele, Jerominho Luciano Guinâncio Guimarães; e o genro, Luiz Malvar, também já foram presos acusados de assassinatos e são apontados como lÃderes da milÃcia que domina a região do Campo Grande, zona oeste do Rio. Todos são ex-policiais.
Após cumprir pena, Jerominho poderá ter sua candidatura deferida se comprovar estar em dia com a Justiça. Filiado ao Partido da Mulher Brasileira (PMB), ele afirma que sua ficha é limpa - o Ministério Público ainda vai analisar os requisitos legais. À reportagem, ele negou ter pertencido à milÃcia e disse ser um "lÃder comunitário". Até a eleição, pretende abrir um centro social que leva seu nome para se destacar entre os eleitores. A promessa é de que o local tenha consultórios médicos e cursos profissionalizantes em uma planta com 765 m² de construção.
"Não fui acusado (de pertencer a milÃcia). São só coisas de 'ouvi dizer'. Miliciano para mim são pessoas que são bandidos também. Todo meu trabalho polÃtico foi feito aqui na zona oeste, onde eu tenho 96% das intenções de voto. Como um miliciano pode ter tantos votos? Eu atendo hoje 160, 200 pessoas por dia na minha porta. Como que as pessoas vão votar em mim, como vão me querer? Não sou esse bandido que a imprensa criou", afirmou, no vÃdeo.
Já Freixo busca apoio do PT e do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva para se tornar o nome da esquerda na disputa. E promete não deixar o tema das milÃcias fora do debate, como o assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL), que foi sua assessora parlamentar. A investigação levou à prisão de dois ex-policiais militares suspeitos de comandar milÃcias no Estado.
Influência
O controle polÃtico das áreas dominadas decorre dos interesses econômicos dos milicianos, da necessidade de blindagem de suas atividades ilegais e da perspectiva de aumentar seu poder. Escolhendo candidatos próprios, financiando candidaturas aliadas, controlando o voto dos eleitores e determinando quem pode fazer campanha nas áreas dominadas, as milÃcias são o tipo de organização criminosa com maior capacidade de se infiltrar na máquina pública e nas esferas polÃticas, dada sua aparência de inimiga da criminalidade e, principalmente, por ser constituÃda de agentes do Estado.
O domÃnio territorial imposto pelas milÃcias e sua interferência nas eleições podem ser enquadrados como "curral eleitoral", abuso de poder e financiamento ilÃcito, infrações passÃveis de prisão, multa e cassação de candidatura.
Segundo números da Coalizão Eleitoral, grupo formado por autoridades estaduais e federais nas eleições de 2018, no Rio, milÃcias e facções comandaram 12% das áreas de votação no Estado - o terceiro maior colégio eleitoral do PaÃs. Nessas áreas vive 1,7 milhão de pessoas, número equivalente à população do Recife e maior que a população de 18 capitais brasileiras.
Promotores do Gaeco, o grupo do Ministério Público Estadual do Rio que combate milÃcias, denunciaram 1.060 pessoas e prenderam 336 acusados em 2019. A legislação define milÃcia no Código Penal desde 2012, mas a tipificação está desatualizada, segundo a promotora Simone Sibilio, coordenadora do Gaeco. O artigo limita milÃcia a determinado grupo formado para praticar determinados crimes, deixando sem previsão legal parte das irregularidades.
Para o sociólogo José Cláudio Souza Alves, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), milicianos "não são qualquer um e têm informações privilegiadas". "É diferente do traficante, que nunca vai ser eleito." Na avaliação de Alves, a "prestação de serviço" facilita a entrada na polÃtica. "O miliciano ajuda as pessoas, vende terrenos à prestação, distribui gás. Ele tem uma face muito positiva. Nunca há a face só da violência. Ele é o cara que ajuda, que vai conseguir fazer favores. Essa face do assistencialismo, do clientelismo, é decisiva."
Exército
A primeira ofensiva contra milÃcias no Rio ocorreu nas eleições municipais de 2008. A Operação Guanabara levou 3,5 mil soldados do Exército e da Marinha para reforçar a segurança nas áreas mais problemáticas, como Rio das Pedras.
A comunidade é exemplo da fusão entre milÃcia e polÃtica. Em 2004, Josinaldo Francisco da Cruz, o Nadinho de Rio das Pedras, foi eleito vereador com ampla votação na comunidade, onde atuava oficialmente como lÃder comunitário e, clandestinamente, como chefe de milÃcia. Acusado de envolvimento com a morte de outro miliciano, Nadinho foi executado, em 2009, após prestar depoimento na CPI das MilÃcias. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
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