Politica

Aposta na impunidade encoraja protestos

Apesar de descumprirem a Constituição, policiais militares de várias partes do país acreditam que, nesta nova onda de mobilizações, serão anistiados, como ocorreu em ocasiões anteriores. No momento, seis estados enfrentam reivindicações da categoria

Correio Braziliense
postado em 23/02/2020 04:04
Policiais encapuzados cruzaram os braços em Fortaleza: movimento acendeu alerta sobre a dificuldade do governo  de enfrentar o movimento

O motim de policiais militares no Ceará, que fez explodirem os índices de criminalidade e desafia as autoridades locais, acendeu o alerta sobre a dificuldade de enfrentamento de um protesto que é, ao mesmo tempo, violento e ilegal. Com um crescente prestígio junto aos Poderes da República, PMs de várias partes do país estão mais encorajados a violar a Constituição para reivindicar direitos, nem que para isso tenham que deixar a população à mercê da violência. A categoria tem também a confiança de que, a exemplo de greves anteriores, pode voltar a receber a anistia do Estado.

O governador cearense, Camilo Santana (PT), rejeitou a proposta de perdão aos amotinados  apresentada por lideranças do movimento e determinou uma série de punições. Mesmo assim, a pressão pela anistia permanece presente nas negociações. Em 2017, uma lei sancionada pelo então presidente Michel Temer anistiou integrantes da segurança pública de diversos estados que realizaram paralisações. Na ocasião, o país havia se deparado com uma greve de policiais do Espírito Santo. Além de depredação do patrimônio público e da explosão do número de homicídios, houve denúncias do envolvimento de policiais em casos de assassinato.

Ao longo de 20 dias de aquartelamento, que teve início em 4 de fevereiro daquele ano, 219 pessoas morreram de forma violenta no estado. De acordo com o texto da lei, grevistas de 22 unidades da Federação receberam anistia concedida pelo governo federal.

Projeto

Na semana passada, o Senado aprovou regime de urgência para projeto que concede anistia aos policiais militares do Espírito Santo, Ceará e Minas Gerais que participaram de motins nos anos de 2011 e 2018. No caso de Minas Gerais, agentes penitenciários e policiais civis também são beneficiados.

O requerimento de urgência foi apresentado pelo senador Marcos do Val (PPS-ES). A expectativa é de que o texto seja votado depois do carnaval. Há dois anos, o Supremo Tribunal Federal (STF) entendeu que é ilegal qualquer greve de policiais, inclusive da Polícia Civil. No mesmo julgamento, a Corte definiu que o Estado é obrigado a participar de negociações com as associações que representam essas categorias.

O jurista Thiago Sorrentino, professor de Direito do Estado do Ibmec/DF, destaca que a concessão de anistia não é automática, e depende mais de uma vontade política do que jurídica. “Somente a União pode conceder esse tipo de anistia. Mas a iniciativa precisa partir do Congresso Nacional e, posteriormente, deve ser sancionada pelo presidente da República. Os governos estaduais podem atuar em alguns processos administrativos. Mas neste caso, não podem ter consequências penais envolvidas”, explica.
Sorrentino destaca ainda que a punição para o ato de greve ou motim está prevista no Código Penal Militar e pode ser aplicada independentemente de o agente de segurança participar de crimes mais graves, como dano ao patrimônio público. “Só o fato de parar já representa crime. Dentro da estrutura militar, há o princípio da hierarquia. E a violação desse item é extremamente grave. Para civis, às vezes é difícil entender, pois temos o direito de argumentar, de fazer um contraponto. No entanto, no meio militar, tem o sistema de hierarquia para garantir a ordem”, completa.

Incensada por prefeitos, governadores, parlamentares e, principalmente, pelo presidente da República, a instituição Polícia Militar passou a exercer forte influência política no país, ao mesmo tempo em que virou motivo de preocupação para a própria segurança pública. O prestígio dos agentes das forças de segurança foi fortalecido durante a campanha eleitoral de 2018, quando a bandeira do combate à criminalidade dominou os debates. O presidente Jair Bolsonaro foi um dos principais beneficiados com essa plataforma, ao lado de governadores como o de São Paulo, João Doria (PSDB), e do Rio de Janeiro, Wilson Witzel (PSC).

Sobre esses dois estados, políticos e especialistas apontam um aumento da ocorrência de casos de abuso de autoridade e de insubordinação. Segundo entidades representativas dos policiais, de nada vale o afago das autoridades se as demandas da categoria não são atendidas.

Líderes dessas associações admitem que o motim de policiais no Ceará pode ser replicado em outras partes do país caso os governadores insistam em não negociar os pleitos da categoria. Além do Ceará, pelo menos cinco unidades da Federação passam por processos de negociação de aumento salarial de policiais — incluindo os civis — e bombeiros militares: Paraíba, Espírito Santo, Santa Catarina, Mato Grosso do Sul e Piauí. Na Paraíba, houve uma paralisação de 12 horas na semana passada, e os manifestantes saíram às ruas para esvaziar pneus de viaturas da PM. Além disso, fizeram piquetes para impedir o trabalho de quem não aderiu ao protesto.
Apesar de reconhecerem que a Constituição proíbe os agentes de segurança de se sindicalizarem e de fazerem greve, lideranças de entidades representativas dizem que as paralisações são necessárias como resposta ao não atendimento às necessidades básicas desses profissionais. Marco Prisco Caldas Carvalho, presidente da Associação Nacional de Praças (Anaspra), afirmou, em entrevista ao Correio, que “o movimento no Ceará é ilegal, mas não é imoral”.

“Os salários são baixos; não há uma carga horária, o regime é escravo. Esses policiais militares estão fazendo um bem à sociedade cearense ao alertarem que não dispõem das condições necessárias para proteger a vida das pessoas”, diz Prisco. Segundo ele, muitos governadores se aproveitam do fato de os policiais serem proibidos de fazer greve para adiar as negociações com a categoria.

Limite

“O que está acontecendo em vários estados no país, com policiais mobilizados para assegurar os seus direitos, não é uma ação em bloco, mas o reflexo de que a situação chegou ao limite do insuportável. Os policiais militares dedicam sua vida ao próximo diariamente. Mas qual é o preço da vida do policial?”, questiona o representante da Anaspra. Ele também reclama do fato de o Código Penal Militar, editado à época do Ato Institucional nº-5 (AI-5), durante a ditadura militar (1964-1985), continuar em vigor após a promulgação da Constituição de 1988.

“Todas as outras categorias foram beneficiadas com a Constituição, e apenas nós continuamos proibidos de pleitear os nossos direitos”, diz Marco Prisco. Entretanto, ele comemora a sanção, pelo presidente Jair Bolsonaro, no final de dezembro, da lei que extingue a prisão disciplinar para policiais militares e bombeiros. A lei havia sido aprovada pelo Senado.

Já o presidente da Associação Nacional de Entidades Representativas de Policiais Militares e Bombeiros Militares (Anermb), sargento Leonel Lucas, afirma que a falta de uma abertura ao diálogo dos governadores não é de agora. “Para se ter uma ideia, na Paraíba, onde houve recentemente uma paralisação de 12 horas, a promessa do governo de negociar vem desde junho de 2019. Em Santa Catarina, os policiais estão há seis anos sem reajuste. Não podemos descartar, diante desse termômetro, a ocorrência de novos motins no país”, diz Lucas.  “Os governadores não estão tendo sensibilidade para tratar de um tema altamente sensível como a segurança pública”, critica.

“Só o fato de parar já representa crime. Dentro da estrutura militar, há o princípio da hierarquia. E a violação deste item é extremamente grave. O sistema de hierarquia é para garantir a ordem”
Thiago Sorrentino, professor de Direito do Estado do Ibmec/DF

“Não podemos descartar a ocorrência de novos motins no país. Os governadores não estão tendo sensibilidade para tratar de um tema altamente sensível como a segurança pública”
Leonel Lucas, presidente da Associação Nacional de Entidades Representativas e Policiais Militares


 
Campanha intensificou politização da segurança

Para Rafael Alcadipani, membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, “o movimento dos policiais militares é uma bomba-relógio que pode explodir a qualquer momento”. Ele condena a atuação dos PMs do Ceará, por “se valerem do fato de serem o braço armado do Estado para fazer a sociedade refém”.

O especialista observa que, ao contrário de outros países, o setor de segurança é altamente politizado no Brasil, em um processo que foi fortemente impulsionado durante a campanha eleitoral de 2018. “É um absurdo que, no Brasil, um agente de determinada força de segurança precise se desincompatibilizar apenas meses antes de concorrer a um cargo eletivo”, afirma.

O representante do Fórum Brasileiro de Segurança Pública avalia que a plataforma do combate à criminalidade, durante a campanha de 2018, resultou no reforço do lobby dos policiais no Congresso e também na eleição do presidente Jair Bolsonaro. Segundo ele, esse apoio de peso acabou inflando o ego da categoria, abrindo espaço para o aumento dos casos de insubordinação e de abuso de autoridade.

“O presidente Bolsonaro, durante a campanha, participou de formaturas de turmas de PMs em todo o país. No ano passado, durante uma solenidade da PM de São Paulo, o governador João Doria foi vaiado, enquanto o presidente da República foi ovacionado”, lembra Rafael Alcadipani.

“Esse sinal de insubordinação é altamente perigoso. Um governador não pode perder o controle sobre as polícias”, afirma o estudioso, frisando que alguns atos e declarações de Bolsonaro, bem como de seus filhos políticos, também podem servir de estímulo para que PMs ultrapassem os limites da lei. Um exemplo é a defesa, pelo chefe do governo, do excludente de ilicitude, que isenta de penalidade o agente de segurança que, em determinadas situações, vier a causar a morte de terceiros. Para Alcapadini, isso pode favorecer o cometimento de excessos.

Na opinião de Ricardo Caichiolo, professor e coordenador da pós-graduação dos cursos de direito, gestão e negócios internacionais do Ibmec/DF, a situação é ainda mais preocupante pelo fato de o governo federal não ter condenado o motim no Ceará. O presidente Bolsonaro e o ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, limitaram-se a atender ao pedido do governador Camilo Santana pelo envio, ao estado, de contingentes da Força Nacional de Segurança Pública e do Exército.
“Apenas ministros do Supremo, como Alexandre de Moraes e Ricardo Lewandowski, criticaram as violações à Constituição no Ceará. O presidente da República, que exerce grande influência entre os policiais militares de todo o país, deveria ter feito mesmo, mas, infelizmente, não o fez”, diz o docente, alertando para a possibilidade de a greve no estado nordestino, governado pelo PT, estar relacionada também à proximidade das eleições municipais de outubro.
 
 

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