Politica

Roberto Brant

Torço para que esta recente agitação, mesmo envolvendo ministros e o próprio presidente, acabe se revelando apenas mais um carnaval. E que, após as cinzas, o governo não desista de governar e volte ao trabalho de construir e de pacificar

Correio Braziliense
postado em 02/03/2020 04:04

Dois carnavais

Este ano o carnaval propriamente dito transcorreu sem maiores novidades. Milhões de pessoas nas ruas de todo o Brasil, muita fantasia, muita bebida e os desastres de trânsito de sempre. Na quarta-feira de cinzas tudo voltou ao normal e o ano de 2020 começou para valer, em meio ao cansaço e à ressaca.

Enquanto o Brasil real fazia uma pausa, o Brasil do poder e da política resolveu fazer o seu próprio carnaval. Parece que, para alguns, a agitação do carnaval comum não era suficiente, era preciso mais confusão e mais bagunça.

Os partidários mais extremados do atual poder, dentro e fora do governo, percebendo que, além dos discursos e das postagens nas redes sociais, pouca coisa efetivamente se modificou no país, resolveram investir mais uma vez contra o Legislativo e o Judiciário, atribuindo a eles a culpa pela imobilidade e a paralisia que são visíveis na economia e na sociedade em geral. A ideia desses grupos é que o governo tem o diagnóstico, as propostas concretas e a capacidade administrativa para mudar o país mas, ora o Congresso, ora o Judiciário impedem o Presidente de executar os seus planos, embora até agora o Congresso só tenha recusado mesmo coisas muito pequenas.

Nos regimes democráticos em todos os lugares do mundo, os governos passam a maior parte do seu tempo convencendo o Parlamento e as instituições de controle da justeza e dos benefícios de suas medidas. É sempre um processo tortuoso e cheio de conflitos, desgastante e um pouco demorado. Bons governos não são os que têm ideias muito boas, mas aqueles que conseguem implementar as suas propostas e vão reformando lentamente a sociedade.

O presidente Kennedy foi o autor dos mais belos discursos sobre a igualdade e os direitos civis dos americanos, mas morreu sem passar qualquer legislação relevante. Seu sucessor, o conservador político texano Lyndon Johnson, nunca fez um grande discurso ou uma grande promessa, mas aprovou toda a legislação de direitos humanos e os programas sociais de saúde e assistência para os pobres, que existem até hoje nos Estados Unidos, quase sem alteração. O que fez ele? Governou democraticamente, não convocando comícios, mas usando todas as horas do seu dia para conversar, seduzir e convencer. Assim funcionam as democracias.

O traço distintivo essencial das democracias é a separação e a independência dos poderes do Estado. Se o Legislativo não pode corrigir ou impedir os atos do poder Executivo, quando lhe parecerem errados ou prejudiciais à população, ou se o Judiciário não puder também se opor, com razões e fundamentos explícitos, aos atos do governo, certamente estaremos numa ditadura. Tal estado de coisas, entre nós, ocorreu durante o regime militar, que cassava mandatos parlamentares ou mesmo fechava o Congresso, quando este contrariava o governo e cassava ministros do Supremo diante de votações adversas.

Chamar de chantagem a ação do Parlamento quando este contraria o governo e pôr em dúvida perante a população a integridade do Supremo Tribunal Federal, são atitudes e comportamentos que flertam com a ditadura ou com as democracias farsescas que têm aparecido em alguns lugares do mundo.

No primeiro ano de mandato de Jair Bolsonaro, tanto o Legislativo quanto o Judiciário colaboraram com o governo mais do que em qualquer outro período pós-Constituição. A aprovação da reforma da previdência, antes tantas vezes tentada por sucessivas administrações, inclusive do PT, é a mostra da solidariedade institucional que prevaleceu até agora. Será que todos erram, menos o governo?

O fato é que governar o Brasil, com seus problemas, sua pobreza, sua falta de crescimento e suas injustiças, não é uma tarefa trivial. Empenhar-se em guerras culturais sem nenhum sentido, ou sair à caça de inimigos imaginários, é muito mais fácil. Anima as massas radicalizadas, mas não resolve nenhum problema.

Por isso torço para que esta recente agitação, mesmo envolvendo ministros e o próprio presidente, acabe se revelando apenas mais um carnaval. E que, após as cinzas, o governo não desista de governar e volte ao trabalho de construir e de pacificar.

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