Politica

"Somos uma sociedade machista e preconceituosa", afirma Cármen Lúcia

A ministra acredita que o Dia Internacional da Mulher, comemorado hoje, é momento de reflexão para entendermos por que ainda estamos nesta situação de extrema violência

Correio Braziliense
postado em 08/03/2020 06:00

Do gabinete no quinto andar do Supremo Tribunal Federal, a ministra Cármen Lúcia enxerga muito mais do que o Palácio do Planalto e parte do Congresso Nacional. Dali, onde despacha há mais de 14 anos, a jurista sentencia: “Somos uma sociedade machista e preconceituosa”. Da visão panorâmica da Praça dos Três Poderes e com a larga experiência na mais alta corte do país, da qual já foi presidente e primeira mulher a quebrar o rígido protocolo e usar calças e não saia nas sessões, ela adverte que os homens públicos devem dar exemplo e não, em hipótese alguma, estimular o preconceito. “Quem está num cargo público tem de ter cuidado muito maior com o que diz”, ensina.

 

Nesta entrevista ao Correio, Cármen Lúcia também recomenda zelo das autoridades no combate à intolerância: “Vejo que comentários e brincadeiras demonstram preconceito”. Confessa que nem ela, que ocupa importante espaço de poder institucionalizado, está liberta do machismo. “É preciso que a gente também não permita que na sociedade se repitam os modelos de violência contra a mulher.” 

 

A ministra acredita que o Dia Internacional da Mulher, comemorado hoje, é momento de reflexão para entendermos por que ainda estamos nesta situação de extrema violência e o que cada um pode fazer para mudar a realidade. Com a Constituição sempre à disposição e a imagem do menino Jesus na mesa principal do gabinete, Cármen falou ainda sobre censura, partidos políticos e democracia.

 

As brasileiras têm motivo para comemorar este 8 de março? 

Não. Pode representar um ótimo momento para as mulheres terem um espaço de reflexão. Entender por que a situação está como está, e o que é preciso fazer para superar esse estado de tanta virulência, de tanto preconceito, de tanta crueldade  contra as mulheres. É preciso a gente valer-se desses momentos. No turbilhão da vida, às vezes a gente não para pensar, para trocar com outras pessoas, o que elas pensam. É certo que, sem um pensamento amadurecido, refletido, crítico sobre isso, não teremos uma superação. Até porque a gente acaba agindo ao sabor dos acontecimentos que se sucedem com uma rapidez muito impressionante.

 

Houve mais feminicídios ou aumentou o número de notificações?

O que se tem como apurado é que aumentou o número de feminicídios e dos casos de violência doméstica; e de preconceitos e de restrições que se impõem à participação da mulher. Este é um aumento.  Aumentou também o número de notificações, porque as mulheres passaram a saber cada vez mais que são titulares de direitos — e não se reivindica direitos que não se conhece. Quanto mais se tem a notificação, mais se conhece e se dá acesso para pedir uma resposta estatal. Mas o número de feminicídios na forma cruel como se tem mostrado — e a imprensa tem cumprido um enorme papel de ajuda nisso —  é fato que aumentou.

 

Qual seria a prioridade para combater tanta crueldade?

É trabalharmos no sentido de buscar primeiro as causas, que são genéricas: o preconceito, um certo vigor no sentido de achar que somos mais frágeis e, por isso, suscetíveis a atos de raiva, de que a competição, inclusive profissional, tiraria emprego de alguns homens em alguns setores. Tudo isso forma uma massa muito preocupante, que leva aos atos de violência. O primeiro dado é buscar os caminhos de conhecimento das causas e das formas de se resolvê-las de forma mais definitiva. Mas algumas medidas devem ser tomadas para fazer face a isso.

 

Por exemplo?

A Lei Maria da Penha estabelece que serão criados núcleos de investigação específicos para os casos de feminicídio. Se não se investiga, estamos falando de violência doméstica, principalmente, contra a mulher. Nesses casos, é preciso haver na investigação especialistas que tenham esse cuidado com os dados. Senão, você tem até o júri, mas cai esse agravante (feminicídio), porque a investigação não foi levada a efeito. Isso tem acontecido com muita frequência. 

 

Qual a consequência dessa falha?

Quando isso (o feminicídio) não é julgado desse jeito, há meio que um amolecimento na sociedade de que isso não vai ser levado adiante com a firmeza que a lei penal impõe. Portanto, é preciso que se crie com urgência esses núcleos de investigação especializada, que são previstos mas até hoje não foram cumpridos. A lei é de 2006. É preciso que a gente também não permita que na sociedade se repitam os modelos de violência contra a mulher. 

 

E em relação aos cuidados com as crianças?

A Lei Maria da Penha faz previsão do cuidado que é preciso ter com as crianças que vivem nos espaços, nos lares, principalmente, onde se impera a violência. Essa é uma parte da lei que ainda não foi aplicada. Até a sociedade, em grande parte, ainda não deu visibilidade, ou talvez não tenha  nem sensibilidade, para essas crianças. Uma criança que vive e vê permanentemente a violência de um homem contra a sua mãe, ou ela se torna uma revoltada, ou se torna fragilizada, ou repete esse comportamento até como uma reação. Então, tudo isso está previsto em lei e ainda não foi concretizado. É preciso que a gente busque essa concretização.

 

Estimula-se muito a violência?

Em geral, a violência é estimulada e canalizada exatamente para aqueles que já são tradicionalmente os alvos principais: as mulheres, os negros, os gays, os índios. Cada vez mais isso é estimulado. É como se estivesse dado vazão a um alvo preferencial e que já se acostumou a aceitar que não vai ter a capacidade reativa — inclusive socialmente — nas mesmas condições que ocorreriam se fosse com um homem. Todas as formas de violência que contrariam um marco civilizatório de pacificação social, de paz social, ou de respeito às diferenças sociais são desconhecidas ou desprezadas no momento em que as formas de violências são priorizadas ou enfatizadas. 

 

O agressor brasileiro se acha impune? A lei é muito branda?

Não, a lei não é branda. Em 2014, eu pensava como o Poder Judiciário brasileiro teria que dar uma resposta a esse tipo de situação na nossa função. Convidei aqui os 27 presidentes de Tribunais de Justiça, porque já havia a determinação de criação nos tribunais de uma coordenadoria de combate à violência doméstica. Essa coordenadoria atua com maior ou menor ênfase, a depender das condições do próprio tribunal, das prioridades fixadas em uma ou outra gestão. Era um convite informal, na ocasião, eu nem exercia cargo de direção aqui. 

 

Qual era a ideia?

Minha proposta era de que a gente enfatizasse as coordenadorias, aumentasse o número de varas especializadas em violência doméstica, o que foi feito, nós aumentamos muito o número. Andei pelo Brasil todo e tive o apoio de todos os tribunais. E, com os desembargadores, coordenadores, ou juízes coordenadores, criamos, em 2014, a campanha da Justiça pela paz em casa. 

 

E o que aconteceu?

No início, era tudo informal, porque não havia nem previsão legal de que houvesse essa campanha. Ela seria durante três semanas no ano, esta de março, do Dia Internacional da Mulher; em agosto, que tem a promulgação da Lei Maria da Penha; e,  em novembro, que tem o dia internacional de combate a todas as formas de discriminação. (Nesses dias), o Poder Judiciário daria ênfase aos julgamentos dos casos de violência doméstica. Isso foi feito em 2015 e em 2016. Em 2017, eu institucionalizei a campanha no Conselho Nacional de Justiça. Em 2018, baixamos uma resolução. 

 

Ministra do STF Cármen Lúcia 

 

Como funciona atualmente? 

Hoje, a campanha é permanente. Três vezes no ano temos essa mobilização. Para se ter uma ideia, nessas 15 semanas que já aconteceram, tivemos quase 1.600 juris cujo foco é exatamente esses casos de feminicídio ou tentativa de feminicídio. Tivemos mais de 203 mil audiências, mais de 215 mil decisões e, me parece, que 138 mil medidas protetivas nesses períodos. Então, o Poder Judiciário se volta nessas ocasiões e prioriza nessas semanas esses casos. Isso é para tentar vencer essa sensação de impunidade. Penso que nenhum processo teria que esperar. Nenhum. Mas, num Poder Judiciário que tem mais de 70 milhões de processos, vamos combinar, com 18 mil cargos de juízes nem todos preenchidos, é claro que vai haver uma morosidade.

 

A senhora não enxerga essa morosidade?

Ouço falar de morosidade desde que eu era estudante e, quanto mais há possibilidade de judicializar e quanto mais o cidadão for ciente do seu direito, mais ele vai ao Judiciário. E isso é até um dado positivo no sentido de que ele não quer um mau acordo. Ele quer um bom acordo ou uma boa demanda. Ele acredita nos seus direitos e isto é um marco democrático. Porém, algumas situações não podem esperar. A criança está em risco, a mulher  está em risco. Vejamos uma situação: há um feminicídio. Se vocês, jornalistas, perguntam ao pai ou à mãe da vítima o que esperam agora, eles vão  dizer: justiça. Eles podem não saber conceituar a Justiça, mas sabem a injustiça que foi praticada. Então, eles esperam uma resposta do Estado, que não vai trazer a filha de volta, mas, pelo menos tem uma resposta. 

 

Essa cena é comum nos tribunais?

No interior, a gente vê isso com uma nitidez solar. Se não há essa resposta com rapidez, primeiro, as duas famílias, a do agressor e a do autor do feminicídio, se tornam inimigas. Não há como conciliar. Não conheço caso de conciliação, os que devem existir são raros. As pessoas tomam posição, lado. Fulano fez, a fulana isso, não podia e tal. Se você fizer um júri 14 anos depois, como em alguns estados eu achei essa situação, o menino que viu o pai matar a mãe tinha oito anos à época do crime. Ele agora tem 22 anos. A vida dele seguiu. Esse homem pode ter constituído outra família. As famílias são inimigas e é para sempre. O direito vai ser aplicado. Mas a Justiça que a mãe da vítima pedia, para ela não foi feita. 

 

Vem daí então a necessidade de se ter uma resposta do Estado.

Eu dizia aos juízes, e sei que os juízes brasileiros se tornaram muitos sensíveis a isso, que a resposta rápida compõe o conteúdo de Justiça. Daí a campanha ter se transformado, para mim, num degrau que a gente sobe. Ainda não é satisfatório, porque em muitos lugares não conseguimos fazer todos os júris: a testemunha não vai, o defensor diz que não vai ao júri porque o cliente já entra para sair condenado. Há caso célebre aqui (no STF), quando a Ângela Diniz foi assassinada, que o ministro Evandro (Lins e Silva), então advogado do autor da prática, conseguiu, no primeiro júri, ser absolvido. A imprensa, na época, não falava nada de campanha, de mulher. Era o rosto dela, da história, as pessoas, e ele conseguiu (a condenação do acusado). Então, quer dizer, não existe isso. Tem que fazer o júri, tem que dar resposta. E o júri não atua solto. Há padrões jurídicos a serem respondidos. 

 

A campanha não é insuficiente frente ao tamanho do problema?

Precisamos tomar atitudes, ainda que pequenas, como essa minha. É pequena, mas é a que está dentro do Judiciário, não ultrapassa os limites dos processos. Mas é uma resposta que a sociedade vê e que talvez caminhe no sentido de superar qualquer sensação de impunidade que fomenta realmente mais crimes e, principalmente, enfraquece a crença na ideia da Justiça. Não da aplicação do Direito, mas do sentimento de Justiça. Justiça é muito um sentimento que a gente tem.

 

A senhora mencionou o esforço do Judiciário. Vê esse empenho nos outros Poderes?

Na legislação, sim. A própria Lei Maria da Penha teve nove mudanças. Se for para melhor ou para pior, uns acham que em algum ponto não seria tão bom. Mas de toda sorte significa que há uma preocupação com o tema e nós, cidadãos, é que temos que discutir o que está sendo feito. Numa democracia, há duas coisas maravilhosas: a imprensa livre, podendo falar, explicar o que está acontecendo, e o Poder transparente. O Supremo, que é caso único no mundo, é transmitido ao vivo até nos debates, e isso é ótimo.

 

E o Executivo?

Depende muito da diretriz de quem está no comando. Nas décadas de 1990; a Lei Maria da Penha, de 2006; a Lei do Feminicídio, em 2013, que a presidente Dilma estabeleceu. Isso é um avanço. Claro, a sensibilidade do governante é a tomada de decisões que precisa ser impulsionada pela nossa atuação de cidadãos. Precisamos saber que uma sociedade que tem a maioria composta de mulheres não pode ser ignorada nos direitos básicos da mulher. Democracia é assim, funciona desse jeito. Queremos que os avanços e os direitos que conseguimos sejam respeitados  por todos. As políticas públicas são basicamente do Poder Executivo.

 

Há risco de retrocessos?

Não acho que tenha como reverter (as conquistas), até porque a Constituição é expressa quanto ao princípio da igualdade. O grande problema é que o Constituinte achou em 1987, 1988, a chaga da desigualdade que temos no Brasil em vários setores, incluída a questão da mulher. Para se ter uma ideia, há o artigo quinto — todos são iguais perante a lei — e, na sequência, homens e mulheres são iguais em direitos e deveres previstos nesta Constituição. Quando foi promulgada a Constituição, se dizia, já não tem a igualdade? Por que se precisou  chamar a atenção para a mulher? Porque o preconceito era tão grande contra ela que o constituinte procurou enfatizar. 

 

Na sua função, a  senhora sentiu preconceito? 

Sinto o tempo todo. No plenário, não há atuação de preconceito. Agora, o preconceito, não de violência, coisa e tal. Somos uma sociedade preparada para os homens. Quando, no final da década de 1990, se cogitou uma mulher para o Supremo, um dos argumentos contrários era de que aqui não havia toalete para mulheres. A ministra Ellen (Gracie), que foi a primeira, passou por situações como essa, desculpas tipicamente preconceituosas, de quem não quer a presença. Isso não é assunto para se cuidar em nenhum lugar. Somos uma sociedade machista e preconceituosa. E isso se passa sem nenhuma violência. 

 

Como assim?

Tenho certeza que a psicologia hoje, quando fala em machismo benevolente, refere-se àquele que se crê tão despido de preconceito que não tem preconceito nenhum. Mas aí solta uma brincadeira que nós, mulheres, não soltamos em relação aos homens. Não temos preconceito em relação aos homens. Queremos conviver bem com os homens, gostamos dos homens, achamos que a interação é necessária e boa. Para você ter uma ideia, não é tão longe, no meu concurso para procuradora de estado (em Minas Gerais), em 1982, um examinador da banca, foi expresso. Na prova oral, na qual você fica mais nervosa mesmo, ele me disse: dizem que você é muito boa. Se for muito melhor mesmo, como dizem, você passa. Mas se for igual a homem, preferimos homem. 

 

Ou seja, a mulher tem que ser muito melhor do que o homem...

Ele foi expresso. Depois, veio um tempo em que ninguém diria isso. Não porque não pensava, mas porque houve um avanço no sentido de que isso não ficava bem. Temo qualquer retrocesso, porque conquista de direitos se fazem todos os dias. 

 

Teme por que, ministra?

Porque a gente vê uma violência crescente contra a mulher, no plano físico, todos os dias. Todos os dias de manhã os jornais, os  noticiários dão notícias de casos e mais casos de violência. Por que vou achar que está superado qualquer preconceito?

 

Mas há um estímulo também em alguns comentários?

Vejo que comentários, brincadeiras demonstram um preconceito.

 

A senhora se refere ao presidente Jair Bolsonaro?

Não, nem falo de uma pessoa. Falo de uma sociedade na qual se vê, com muita frequência, grupos de homens com brincadeiras e piadinhas sobre as mulheres. Não é especificamente alguém, mas isso se espraia de uma maneira extremamente ofensiva muitas vezes. E quem está num cargo público, como o meu ou em qualquer cargo de agente público, de direção, tem que ter um cuidado muito maior com o que diz. Porque há uma simbologia no que é dito, tanto para afastar comportamentos quanto para fomentar comportamentos. 

 

É um problema que não se restringe a agentes públicos.

Acho que somos uma sociedade preconceituosa e machista, que não tem essa cordialidade com a mulher. Não sei na geração de vocês, mas na minha, cansei de ouvir meus tios apresentarem essa é “minha patroa”, porque fica lá em casa. Todos nós, servidores públicos — e isso não vale só sobre a mulher, temos até mesmo uma legislação que impõe urbanidade —, temos de oferecer um tratamento correto com todos, com o usuário do meu serviço. Essa é uma imposição de educação, de civilidade, de respeito, de respeito ao outro e de respeito a normas jurídicas. 

 

Como a senhora classifica o momento exacerbado que vivemos, com tanta dificuldade de relacionamento entre os Poderes?

As dificuldades vêm talvez do temperamento das pessoas que estão nos cargos. Talvez elas tenham que atentar cada vez mais ao que afirma a Constituição sobre a impessoalidade como princípio da administração pública. O artigo 37 dispõe que a administração pública tem como princípios a impessoalidade, a legalidade, a publicidade, a moralidade. A impessoalidade significa que agir como servidor, como agente público, impõe o dever de não trazer sua personalidade em primeiro plano sobre o interesse público. Eu vejo um momento em que é preciso ficar atento a isso, não deixar que isso se desfigure.

 

Tem sido assim hoje?

No caso dos poderes, a Constituição também é expressa quando diz que são independentes, mas têm de ser harmônicos; porque isso é que leva a uma sociedade justa, equilibrada e solidária. Está no preâmbulo da Constituição; não é sugestão, nem proposta. É a lei primária do Brasil. Tudo que for contra isso precisa ser cerceado. Vejo sempre com preocupação todo descumprimento de Constituição. Mas vejo com muito mais quando se acirram situações às quais precisamos ficar atentos para impedir qualquer coisa que vá além, que não possa ser refeito. 

 

O Brasil está fechando os olhos para a Constituição?

O Brasil, não.

 

E os governantes?

Governantes e governados não podem deixar de cumprir a Constituição. A qualquer excesso, o próprio direito responde.

 

Quando um agente público ofende uma profissional de imprensa, mulher, não está afrontando a Constituição?

A Constituição, não. Ele estaria afrontando, se fosse o caso, outras leis, e a pessoa que se sentiu ofendida tem de tomar providência. É o que eu disse: é preciso tomar em conta o comportamento que nós todos, agentes públicos, precisamos cuidadosamente observar, porque é dever jurídico e dever da própria civilidade.

 

O comportamento de Jair Bolsonaro se enquadra no que a senhora diz?

Não vou dirigir um ponto específico. Primeiro porque, sobre questão entre poderes, fala pelo Supremo o presidente, que já se manifestou nos casos em que ele tem que se manifestar. O presidente fala pela instituição, e as instituições é que precisam estar afinadas e harmônicas. Em segundo lugar, porque nossa preocupação maior tem de estar voltada para todas as pessoas. Um comportamento que sobressaia é que tem de ser respondido. Tudo que é contra a imprensa não vale em uma democracia. Sem imprensa livre, não há possibilidade de termos uma democracia forte. A imprensa é que dá voz e vez nos momentos em que as pessoas não têm voz e vez. No Brasil, vocês são exemplares. Para mim, se há profissionais que admiro são jornalista e comandante de voo (risos).

 

Ministra do STF Cármen Lúcia 

 

As mulheres ocupam menos cargos de chefia e ganham menos do que homens. O que acha disso?

A questão é de toda a sociedade. Democracia e direitos demandam cuidados permanentes. Quando acontece de uma sociedade não cuidar desses fatores de igualdade, nós teremos situações como essa. Mas vejam que, hoje, a preocupação com a igualdade das mulheres é tão grande. A gente vê o papa se manifestando; em Davos, o encaminhamento para que mais mulheres possam ingressar em organismos internacionais. Tudo isto é uma modificação, que vai acontecendo pouco a pouco. E nós, homens e mulheres atentos, para que a gente promova essa mudança, que é imprescindível. O fato de as mulheres ganharem menos e trabalharem mais, em parte, talvez, tenha sido um momento que a gente precise deixar para trás. Uma única vez que falei sobre isso foi com um grande professor e chefe meu. Eu disse: “Não sei porque eu recebo mais”. Ele respondeu: porque a senhora trabalha mais e melhor. E é fato: se você recebe e responde, as pessoas acham que já é direito adquirido. Nós, mulheres, fomos em grande parte, quando chegamos aos cargos, coniventes com isso.

 

A senhora conheceu muito cedo o preconceito contra mulher. O que diria a uma jovem brasileira no Dia da Mulher?

Eu diria: vá à luta. Primeiro porque o direito à igualdade é possível e necessário. Segundo: direito não cai do céu, se conquista. A própria democracia é uma conquista diária permanente, sobre a qual devemos nos manter vigilantes. Não adianta ficar imaginando que alguém vai bater na sua porta e dizer “Olha, aquilo do passado foi superado”. Ou nós conquistamos esse direito, ou esse direito não vai acontecer. Portanto, nós temos é que lutar mesmo. Eu sempre vejo mulher entrar em trabalho de parto; nunca vi uma mulher sair do trabalho de parto. Trabalho é sinônimo de vida. O parto acaba; o trabalho, não. Trabalho faz parte, lutar faz parte. A única coisa que acho é que, se não for feito algo no sentido de superar esse tipo de violência, ela não vai passar. Porque violência contra mulher não tem nada a ver com amor. Tem a ver com poder, com comando, com força. O homem bate na mulher para ela saber quem manda.

 

Mas a situação está difícil. Como incentivar as mulheres a irem mais à política diante de tantos ataques?

Talvez parta da visibilidade que se dá da necessidade do trabalho delas e de como ela pode trabalhar somando seu olhar ao olhar do homem e fazendo com que a gente tenha a pluralidade  — que é própria da democracia — em uma sociedade como a brasileira, então, nem se fala. Nós vivemos muitas humanidades: pessoas em condições muito precárias, e pessoas que são dotadas das melhores condições materiais, intelectuais, etc. Em segundo lugar, acho que a circunstância de a mulher ir para a política se mostra e projeta novas realizações para indicar que é possível realizar seus ideais, seus valores, dentro do que é interesse de toda a sociedade. A educação é essencial no Brasil, sempre. Educa-se também para isso. Política é essencial na vida das pessoas; não se vive fora da política, na tentativa de um viver harmônico e civilizado. É preciso incentivar jovens, homens e mulheres, a participar ativamente da política. Acho que isso se faz muito com a educação cívica e com uma educação plural, democrática. Acho que as mulheres não têm mais medo — pelo menos as mais jovens — do que os homens. O que há é talvez uma dificuldade maior mesmo. Até as cotas, que foram estabelecidas em 1996, não foram providas da forma devida. Então, é preciso fazer um trabalho permamente. Temos um eleitorado maior de mulher do que de homens, e temos uma representação mesquinha no sentido de números. Porém, as mulheres são eleitoras. 

 

Mas votam nos homens.

Então, nós precisamos saber o porquê e descobrir se isso é uma repetição de comportamento, de que o preconceito existe e acaba nesse resultado. Mas acho que essa situação também tende a mudar, porque vejo as jovens com uma participação em diretórios acadêmicos. Tudo isso é resultado de um trabalho, de um movimento da sociedade, que tem de crescer. Por exemplo, este ano teremos uma situação que não tínhamos desde a primeira década deste século. Desde que a ministra Ellen (Gracie) foi ao TSE — lembrando que é preciso haver coincidência de datas para exercer mandato no TSE — nós passamos a ter sempre mulheres na representação do STF e do STJ. Em 2018, durante um curto período, chegamos a ter no TSE quatro mulheres e três homens. Este ano, nós teremos sete ministros homens — todos de excelente qualidade. Não teremos mulheres nem para juízes substitutos este ano. 

 

O olhar feminino, no contexto partidário, ajuda do ponto de vista eleitoral?

Ajuda muito no sentido de ter um chamamento às mulheres de participação em todos os setores. O esforço que precisa ser feito para a igualação, para se chegar a um quadro de igualdade — a igualação é dinâmica; a igualdade é o quadro estático de conquista apurada, aperfeiçoada. Esse movimento tem de ser da sociedade, com a educação e a participação de todos os cidadãos. Isso não pode ser entregue ao Estado; o Estado não pode ser o detentor. Ele tem que liderar, chamar para que se propiciem as condições para cumprir a igualdade. É o nosso papel, compromisso de todos nós, cidadãos. Acho que isso é que não conseguimos apurar, por ora. Eu conheço prefeitas excelentes, como conheço prefeitos excelentes. Ou seja, nós temos pessoas com boa capacidade de administração.

 

A senhora critica os partidos mais pragmáticos do que programáticos.

O partido político tem que ter programas para seguir, se adequar a eles, realizando um conjunto de ideias, valores e propostas do interesse do povo. No entanto o que gente vê é a presença de 36 partidos, 33 com representação no Congresso, 21 com representação no Senado, 76 pedidos de novos partidos no TSE. A pergunta é: há programas realmente muito diferentes? Alguns são idênticos. 

 

É copia e cola.

E o problema não é nem o programa. O problema é: você se comprometeu a cumprir o que ali foi programado? Ele é tão diferente, então para que cria outro? Não pode continuar assim. Este quadro de atomização tão grande leva ao descrédito da sociedade em partidos. Mas a Constituição estabeleceu que a representação democrática no Brasil se faz pela via partidária. Logo, é preciso que a gente tenha muito apreço pelos partidos; mas é preciso que os partidos cumpram o que a Constituição determinou.

 

A senhora se considera feminista?

O que é isso mesmo? (risos). Já vi tantos conceitos de feminismo... Eu me considero uma mulher com compromisso com meu tempo, principalmente com os valores humanos de realização igual e digna de homens e mulheres numa sociedade que busque viver com paz e com solidariedade. 

 

No seu voto sobre a censura, a senhora falou “Cala a boca já morreu”. O que sentiu quando tentaram censurar Machado de Assis, Euclides da Cunha?

Acho tão fora de qualquer propósito, porque a Constituição é taxativa: não se admitirá censura em qualquer caso. Machado de Assis é universal. Honra a nós, brasileiros, mas honra o pensamento humano. Sou incapaz até de entender a causa, mas sou capaz de entender as consequências se não tivesse imediatamente havido a reação, desde a Academia Brasileira de Letras a todos os lugares. Censura é inconstitucional. Censura não vale. O ser humano tem a garantia da dignidade e a liberdade de pensamento. A liberdade de expressão de pensamento tem de ser garantida exatamente em benefício da manifestação de todas as formas de liberdades, mais ainda de expressão. 

 

Acredita que a democracia está em risco?

Nunca acredito nisso. A democracia é um compromisso da sociedade brasileira. Eu que sou, na minha função, uma das responsáveis pelo cumprimento da Constituição — todo brasileiro o é — repito e acredito no que disse Ulysses Guimarães: essa Constituição viverá enquanto viver a democracia no Brasil. Descumprir a Constituição é trair o Brasil. Trair a Constituição é trair a democracia. A Constituição está em vigor e será aplicada permanentemente. Tenho certeza de que o poder Judiciário tem dado demonstração de que nós não deixamos de fazer cumprir a Constituição e de dar resposta a qualquer descumprimento. 

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  • Ministra do STF Cármen Lúcia
    Ministra do STF Cármen Lúcia Foto: Carlos Vieira/CB/D.A Press
  • Ministra do STF Cármen Lúcia
    Ministra do STF Cármen Lúcia Foto: Carlos Vieira/CB/D.A Press

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