Correio Braziliense
postado em 21/03/2020 04:32
Mortos de guerra
É guerra, diz o presidente da França, Emmanuel Macron. E todas as guerras exigem milhares de vidas. O agravamento do coronavírus impõe ao Brasil o desafio de se lançar na batalha contra um inimigo que desconhece fronteiras, e é capaz de provocar catástrofes como a que vemos diariamente na Itália. No nosso caso, a sociedade começa a se comportar seriamente na prevenção contra o vírus, após episódios deploráveis, como o acinte do chefe do governo, que, ignorando todas as recomendações sanitárias, cumprimentou uma aglomeração de apoiadores e distribuiu selfies desbragadamente, na frente do Palácio do Planalto. Dois dias após o ato que formou o ambiente propício para a disseminação do coronavírus, em uma espécie de penitência pelo absurdo cometido nas ruas, as autoridades do governo federal se protegeram sob máscaras e soaram o alerta: o Brasil estava entrando em calamidade na luta contra o coronavírus.
Na linguagem burocrática de Brasília, decretar o estado de calamidade pública significa autorizar o Executivo a dispender o que julgar necessário para lidar com situações emergenciais. É evidente que o acionamento desse dispositivo constitucional se justifique ante a realidade dos fatos, apesar das insistentes críticas palacianas de que há histeria e exageros nas ações contra a Covid-19. Não é por simples retórica que os 26 governadores fizeram apelo em carta aberta para a União intensificar a ajuda federal no front dos estados, aumentando os recursos para as ações sanitárias contra o vírus e –– item crítico nesse debate –– a suspensão por 12 meses do pagamento das dívidas estaduais com a União e os bancos públicos. Não é por mera conveniência ou cortesia que o Congresso procura sublimar as barreiras legais para permitir ao Executivo romper os limites de gastos, lançar-se em ações nacionais e oferecer socorro aos entes federativos. Tampouco são fortuitas as previsões de que o PIB brasileiro, tão combalido em 2019, caminhará rapidamente para zero ou mesmo para níveis de recessão em questão de meses. Em um punhado de semanas, o coronavírus mostrou que tem potencial de exaurir os recursos do Estado brasileiro, acuado pela óbvia constatação de que está por vir uma tragédia de proporções jamais vistas no país. E a calamidade nem começou ainda, cansa-se de advertir o ministro Mandetta.
Onde o dano será maior
Como se sabe, em todas as guerras, a morte não se limita aos soldados. O sangue da população civil sempre escorre no fogo cruzado das partes em conflito. E é precisamente a população brasileira, notadamente aquela que mais depende dos serviços públicos, que está em posição mais vulnerável ante a progressiva marcha fatal do coronavírus. Corre mais risco de morte a parcela da sociedade que historicamente é sacrificada pelas injustiças e mazelas da realidade brasileira. Trata-se dos milhões que vivem em precaríssimas condições sanitárias; que passam horas de calvário nos hospitais públicos para receber atendimento médico; que se aglomeram em um transporte público obsoleto; que formam 40% da mão de obra a trabalhar na informalidade; que há décadas sofre as consequências de uma elite política desprovida de espírito coletivo, obcecada em acumular ganhos, vantagens e influência nas esferas de poder, e responsável direta pela chaga da desigualdade social e econômica a sangrar a sociedade brasileira.
É precisamente essa elite política, protegida sob máscaras em entrevistas coletivas e em autoisolamento, que faz um apelo para as massas se protegerem do inimigo invisível. A guerra do coronavírus está testando a competência dos homens públicos e nossa capacidade de mobilização coletiva no contexto socioeconômico precário que conhecemos. Nesse conflito real, os comandantes que deveriam ter preparado a nação para momentos de crise como este, encontram-se aflitos porque veem a precariedade da armada no teatro de guerra. A nós, soldados, resta-nos ir ao combate. E fazer o possível para sairmos vivos da luta.
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