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Nas entrelinhas

No momento em que a crise do coronavírus ainda não atingiu o pico no Brasil, o chefe do Planalto se mostra cheio de coragem e imodéstia. Enquanto isso, seu governo trabalha freneticamente para evitar uma tragédia sem precedentes na saúde e na economia

Correio Braziliense
postado em 28/03/2020 04:03
No momento em que a crise do coronavírus ainda não atingiu o pico no Brasil, o chefe do Planalto se mostra cheio de coragem e imodéstia. Enquanto isso, seu governo trabalha freneticamente para evitar uma tragédia sem precedentes na saúde e na economia
 
 
É a economia, estúpido?
A Itália alcançou, ontem, um recorde impressionante: em 24 horas, o país registrou praticamente mil mortos em razão da “gripezinha” do coronavírus. Em meio ao cenário apocalíptico, o papa Francisco comandou um ato insólito na Igreja Católica: celebrou uma missa em completa solidão, com a praça de São Pedro esvaziada de fiéis, na qual abençoou a humanidade contra o mal que a cada dia adquire proporções mais graves. Ao lado do ataque às Torres Gêmeas, que abateu três mil almas e deu início à história do século 21, a ameaça da Covid-19 espalhou um pânico global. Tal qual ocorre com o terrorismo, o inimigo é invisível, tem vítimas preferenciais, mas pode atacar em qualquer lugar. Ninguém está imune a sofrer as consequências de uma tragédia que já matou 26 mil pessoas, infectou outras 580 mil e não dá sinais de arrefecimento pelas próximas semanas em boa parte do mundo, em especial no Brasil. Para quem ainda não entendeu, convém alertar: o coronavírus é um capítulo trágico da história, que será lembrado pelas próximas décadas em razão das vidas que aniquilou e das consequências sociais, econômicas e políticas. Em relação aos governantes, é o momento de distinguir aqueles que agiram a tempo para evitar catástrofes ainda maiores daqueles que, por ignorância ou negligência, se omitiram ante o perigo universal.

Nesse sentido, convém notar a espantosa contradição entre os atos e os discursos de chefes de governo no enfrentamento do coronavírus. É sabido que políticos não têm muito apreço à coerência; agem de acordo com as circunstâncias, sempre atentos ao princípio de autopreservação. É precisamente o instinto de sobrevivência política que sustenta os atos e as palavras de Donald Trump, Boris Johnson e Jair Bolsonaro, governantes que se tornaram notórios pelo ceticismo, pela ironia e pela lentidão no enfrentamento ao avanço da Covid-19. Apesar da resistência dos mandatários em encarar a realidade, os fatos se impõem de maneira rápida e inequívoca, obrigando-os a tomar medidas emergenciais. O presidente norte-americano teve de trabalhar com celeridade para aprovar um socorro de US$ 2 trilhões à economia em ritmo acelerado de recessão. A medida foi necessária porque, em questão de dias, os Estados Unidos se tornaram o epicentro mundial da Covid-19, com mais de mil mortes e 80 mil casos confirmados, ultrapassando a China e a Itália nesse ranking macabro. Além da ajuda econômica, a Casa Branca anunciou outras centenas de bilhões de dólares no reforço do sistema de saúde nacional e em pesquisas científicas. No Reino Unido, a situação tampouco é trivial. A começar pelo fato de que o chefe de governo, Boris Johnson, e o herdeiro do trono britânico, príncipe Charles, estão com a doença. Somente um lunático poderia achar uma percalço banal o fato de o chefe de governo e o herdeiro do trono britânico estarem em isolamento. Na segunda-feira, Johnson determinou quarentena obrigatória para todo o país. “A partir desta noite, preciso dar ao povo britânico uma instrução muito simples: você precisa ficar em casa”, disse o primeiro-ministro em rede nacional.

E no Brasil? Bem, sem entrar no mérito de declarações a respeito da resistência imunológica do brasileiro que “pula em esgoto e não pega nada”, convém notar a flagrante contradição do discurso presidencial com as medidas adotadas pelo governo. Enquanto o chefe do Planalto insiste em minimizar os efeitos da Covid-19, ataca governadores pelas ações preventivas e afirma que a economia não pode parar, seus ministros na área de Saúde e Economia agem nas duas frentes mais atingidas pelo coronavírus. Desde o início do ano, a equipe de Mandetta se empenha em atualizar informações, orientar o público, ampliar serviços de informação (WhatsApp e aplicativo do SUS) e de atendimento, coordenar o esforço nacional de preparar o sistema de saúde ao ataque do patógeno. Ontem, o governo anunciou o pacote de R$ 40 bilhões para socorrer empresas em dificuldades com a folha de pagamento. Na véspera, a Câmara aprovou o auxílio de R$ 600 para trabalhadores autônomos, os mais atingidos no reino da informalidade da economia brasileira. Medidas desse porte não seriam necessárias caso estivéssemos lidando apenas com um “resfriadinho”.

O cálculo pragmático do bolsonarismo segue a lógica de que os mortos são o presente, enquanto os desempregados representam o futuro político. Mortos não votam, ao contrário dos atingidos pela crise. Por convicção, aconselhamento e adesão dos apoiadores incondicionais, o presidente mantém-se fiel ao alerta “é a economia, estúpido!”, dado por James Carville ao então candidato Bill Clinton. No momento em que a crise do coronavírus ainda não atingiu o pico no Brasil, o chefe do Planalto se mostra cheio de coragem e imodéstia. Enquanto isso, seu governo trabalha freneticamente para evitar uma tragédia sem precedentes na saúde e na economia. Nas entrevistas malcriadas que promove às portas do Alvorada, o mandatário desconsidera as consequências políticas e econômicas de uma calamidade sanitária jamais vista no Brasil, contando com o apoio de representantes do setor produtivo e de parte da opinião pública. É uma aposta alta, e o presidente está pagando para ver.

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