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'Governo não estava preparado para a crise', avalia Gilmar Mendes

Ao programa CB.Poder, ministro do STF critica o presidente Jair Bolsonaro por ter minimizado o poder do coronavírus, elogia a atuação do Congresso na crise e diz acreditar que uso da cloroquina será judicializado

Correio Braziliense
postado em 10/04/2020 06:00
Ao programa CB.Poder, ministro do STF critica o presidente Jair Bolsonaro por ter minimizado o poder do coronavírus, elogia a atuação do Congresso na crise e diz acreditar que uso da cloroquina será judicializadoO ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, disse acreditar que o Brasil teve tempo de se preparar para a chegada do coronavírus, mas “muitos acharam que seria uma gripezinha”. “Tenho a impressão de que o próprio governo Bolsonaro, sejamos honestos, não estava preparado para esta crise. Dá para ver pelas declarações múltiplas e contraditórias que os seus mais ilustres membros interpretam a cada hora”, destacou, em entrevista ao programa CB.Poder, parceria entre o Correio e a TV Brasília.
 
O magistrado também ressaltou a grande possibilidade de o uso da cloroquina ser judicializado. O remédio contra malária ainda não tem eficácia cientificamente comprovada no combate à Covid-19, mas é defendida, principalmente, por Bolsonaro. O ministro ainda elogiou o Congresso pela atuação diante da crise. Leia abaixo a entrevista.

O ministro Alexandre de Moraes proibiu qualquer pessoa do governo federal, inclusive o presidente Jair Bolsonaro, de revogar ações dos governadores contra a Covid-19, como o isolamento social. Como o senhor viu essa decisão?
 
A União, os estados e os municípios podem legislar sobre saúde. Também temos alguma perplexidade no que diz respeito à legislação sobre transporte. A União pode legislar também, os estados, em certa parte, e também os municípios, no que diz respeito ao interesse local. Parece que precisa ser devidamente harmonizado. Por isso, sugeri até que houvesse os comitês de crise, um comitê da Federação para tratar de sistemas.

O senhor acredita que o presidente pode adotar alguma medida? Há esse risco? Só essa decisão do ministro Alexandre de Moraes já é um preventivo?
Eu não vislumbro esse tipo de conflito, especialmente no que diz respeito ao isolamento social. Se houver, de fato, uma iniciativa do governo federal, muito provavelmente ela será questionada no Supremo Tribunal Federal, como já foi agora no despacho do ministro Alexandre. Nós temos visto de maneira muito clara.

Bolsonaro tem defendido o uso da cloroquina desde o início da doença, mas ainda não há um consenso da ciência sobre o remédio. Acredita que essa questão vai acabar sendo judicializada?
Certamente, vai. Nós já tivemos discussões no Supremo sobre, por exemplo, aquele medicamento fabricado pela faculdade de São Carlos, a chamada pílula do câncer. Certamente vamos ter algum tipo de judicialização. Mas eu acho que os médicos devem cumprir a sua função e prescrever esse medicamento para os casos em que haja necessidade e que haja o devido controle, porque todos têm advertido que uso sem necessidade desse medicamento pode trazer outras consequências. Nós estamos falando de um medicamento antimalária bastante testado, mas que traz consequências para hipertensos e cardíacos, para pessoas que têm problemas de rins ou fígado, então, nós devemos ter muito cuidado na automedicação em relação a esse medicamento.

Bolsonaro diz que há um debate ideológico em torno desse medicamento. Falou, inclusive, que é preciso ter uma condução mais clara, porque se ninguém atrapalhar, o Brasil teria condições de ir embora, de andar mais rápido. Como vê essa declaração?
A mim me parece que estamos diante da maior crise que a nossa geração e, talvez, até as gerações anteriores viram. Talvez os europeus tenham visto isso na Segunda Guerra Mundial, mas nós não vimos isso. Nossa participação na guerra foi para mandar soldados, portanto, não tivemos bombardeios aqui. Então, eu tenho a impressão de que o próprio governo Bolsonaro, sejamos honestos, não estava preparado para esta crise. Dá para ver pelas declarações múltiplas e contraditórias que os seus mais ilustres membros interpretam a cada hora.

O Brasil não teve um tempo para se preparar, uma vez que os casos começaram a ficar graves na China em janeiro?
Acho que sim, mas muitos acharam que seria uma gripezinha. E não foi só um problema brasileiro. Muitos países foram pegos de calças curtas. Veja o que aconteceu com a potência americana e as falas do Trump (presidente dos Estados Unidos, Donald Trump) minimizando o vírus. Veja o que nós tivemos com o debate na Grã-Bretanha, que tem um sistema de saúde exemplar, e veja o que está acontecendo, inclusive, com Boris Johnson (primeiro-ministro britânico, que está com Covid-19 e chegou a ir à UTI). Então, também nos trópicos, acabou por acontecer. Fomos pegos de surpresa e estamos pagando algum preço por isso. Felizmente, estamos tentando encostar o terreno e andar.

O pronunciamento de ontem (quarta-feira) de Bolsonaro não soou como um possível recuo dele? Não está tentando modular agora, falando da gravidade da crise? Pela primeira vez, se solidarizou com as famílias das vítimas, ou seja, o senhor acredita que ele entendeu a gravidade da crise?
Acho saudável que todos os governantes, todos aqueles que têm responsabilidade, se curvem a essa realidade. Nós estamos diante de um imenso desafio e não devemos aturar segundo elementos intuitivos ou segundo recomendações de charlatões ou curandeiros. Devemos seguir a medicina, os nossos cientistas. Temos instituições de credibilidade, de pesquisa, como as nossas universidades e também instituições como a Fiocruz.

O presidente está agora no caminho certo?
Acho que devemos saudar todos aqueles que vêm para a racionalidade. Nós temos um compromisso com a medicina por evidência, com valor à ciência, e devemos chamar os políticos para essa responsabilidade.

Na semana passada, o senhor suspendeu a ampliação do Benefício de Prestação Continuada, que o Congresso aprovou para atender maior número de pessoas. Por que tomou essa decisão agora, no momento em que as pessoas estão justamente precisando de mais recurso?
Porque, segundo o próprio Congresso e segundo também o governo, não estão atendidas as condições estabelecidas na Constituição. Isto é, a indicação de fontes de custeio. Tanto é que eu disse que se trata apenas de uma ineficácia da decisão legislativa. Tão logo resolva o problema da fonte de custeio, esse tema estará resolvido.


Mas, agora, com esses R$ 600 que muita gente vai receber, talvez não haja recursos para ampliar o BPC. Acredita que essa medida vai atrasar um pouco, então?
Pode ser, mas nós estamos neste ambiente, estamos discutindo agora o chamado orçamento de guerra. Talvez, haja recursos a partir daí para fazer esse tipo de atendimento. Eu acho que nós temos um compromisso agora. A crise é malévola, por muitas razões. Acho que ela tornou evidente algumas das nossas fraturas expostas, esse exército de pobres que nós temos, essa brutal desigualdade, péssimas condições de moradia, favelização das nossas cidades. Tudo isso precisa ser colocado na nossa agenda nacional.

Acredita que, terminada a pandemia, o Brasil vai ter de repensar, inclusive, suas medidas econômicas, para que a gente possa atender essa população mais carente?
Com certeza. Acredito que vamos ter de combinar responsabilidade fiscal com uma agenda de responsabilidade social.

Qual é a sua avaliação sobre a atuação do Congresso neste momento de crise?
Fico agradavelmente surpreso pela responsabilidade que o Congresso, pela maioria dos seus mais expressivos líderes, tem mostrado. De uns tempos para cá, sou um defensor no Brasil do semipresidencialismo, de uma ideia de parlamentarismo. Muitos poderão dizer que o Congresso não goza de prestígio junto à população para que se delegue a ele esse tipo de poder. O Congresso teria também o poder de ser governo, mas eu vejo hoje que, nesse bate cabeça, nesses desencontros que nós temos visto, o Congresso muito ponderado, muito responsável.

Aliados de Bolsonaro têm atacado direto tanto o Congresso quanto governadores e o próprio Supremo. Não acha que é hora de baixar as armas e ir à luta para combater os vírus?
Eu tenho dito isso. Nós temos de encerrar o ambiente de conflituosidade e nos organizarmos para esta crise. Nós não estávamos preparados para isso, é evidente que o governo não estava preparado para isso. Veja os desencontros todos que nós acompanhamos nos vários discursos.

Tem gente falando que é preciso reduzir salários dos congressistas e do alto escalão do Executivo. O senhor acha que é preciso fazer o mesmo em relação ao Judiciário?
Eu não tenho dúvida de que serão tomadas as medidas, e acho que já seria um grande progresso se nós impuséssemos o teto. Ontem (quarta-feira), a Câmara discutiu proposta de ajuda aos estados. Os estados, quando descumprem o teto de gastos, pagam R$ 60 mil, R$ 100 mil aos desembargadores, juízes e promotores. Não é razoável. Então, me parece que tudo isso precisa ser colocado na agenda. Se ainda é necessário cortar salários, eu não sei, mas isso precisa ser discutido de maneira bastante clara.

O senhor vislumbra em termos de agenda legislativa após o recesso?
Eu acredito que o país e o mundo não serão mais os mesmos após esta crise. Nós vamos ter uma outra agenda. Certamente, as próprias eleições terão um tipo diferente de campanha eleitoral e, talvez, isso até anime os parlamentares a permanecerem em Brasília. Eu vejo que um legado que nós vamos ter nesse debate todo será essa comunicação que agora nós temos. A comunicação, talvez, se dê muito mais por intermédio desses recursos e, talvez, dispensem esse recesso branco que temos durante o período eleitoral. Eu acho que o Congresso deveria se debruçar sobre essa nova agenda tão logo passar o pico da pandemia.

Acredita que seja necessário adiar as eleições?
Eu acho que não será preciso. Espero que, até lá, tudo já esteja bem encaminhado e, certamente, nós vamos ter de continuar preservando essas cautelas que hoje nós estamos adotando, de distância, higienização e tudo mais.

E sobre o fundo eleitoral? Acha que será preciso destinar os recursos para o combate ao coronavírus?
Neste momento, se for necessário, pode se alocar recursos para essa finalidade. No momento da eleição, podemos realocar esses recursos de volta para a eleição. Até porque, nós sabemos hoje que já não temos mais aqueles recursos que vinham da iniciativa privada. Precisamos ter esse preço, que é o preço da democracia.

Como serão realocados recursos se o país já está falando em retração no deficit para combater a pandemia? Significa que não teremos recursos para fazer a eleição. O partido Novo já defende que cada um cuide da sua eleição, que busque o financiamento da população, de pessoa física. No fim, como vai ficar essa questão eleitoral? Não é hora de repensar se o orçamento público deve financiar as campanhas?
Isso soa engraçado. Quem disse que deve ter recursos só das pessoas físicas é porque tem recurso das pessoas físicas. O partido Novo me parece que é composto de pessoas bastante ricas e que podem se autofinanciar. Nesse caso, há uma desigualdade. É um problema que nós precisamos reparar. Antes discutia-se que nós precisávamos de um fundo público, agora temos fundo público. Nós estamos vivendo uma típica esquizofrenia. Primeiro, se faz um discurso no sentido do fundo público e, agora, se diz que nós devemos buscar recursos das pessoas privadas. Esses recursos viriam das empresas, e nós dissemos ao Supremo que isso era inconstitucional.


Na sua opinião, esse é um debate que o Congresso ainda terá de fazer?
Sem dúvida alguma. Vamos ordenar um pouco o debate. O que precisamos ter é a racionalidade. É preciso que haja adultos na sala. O país está enfrentando uma séria crise. A gente tem de encerrar com esses impulsos populistas, demagógicos. Precisamos ter responsabilidade.

O senhor disse que o ministro Sérgio Moro estava meio apagado, um ilustre ausente durante a pandemia. Ele respondeu falando que o senhor virou um comentarista político. Como vê essa resposta?
Não vou discutir com Sérgio Moro. O que disse e continuo afirmando é que o Ministério da Justiça, e não Sérgio Moro (porque o Ministério da Justiça é maior que o Sérgio Moro) está se revelando um ilustre ausente neste momento em que nós temos discussões importantes. Não estou falando sobre presos, sobre a Covid-19 em presos, que ele, inclusive, falou que os presos têm de continuar presos e, talvez, serem mortos nos presídios. Mas não é disso que se cuida. O que estou dizendo é que o grande debate que se trava hoje na nação é sobre a questão federativa, sobre o papel do presidente, dos governadores e dos prefeitos. Isso é um debate sobre a Champions League (maior torneio de clubes do mundo) e não um debate sobre um campeonato da terceira divisão do interior do Paraná.

O que a população pode esperar do Supremo neste momento de crise? O senhor é conhecido como o ministro que solta todo mundo, principalmente pessoal da Lava-Jato. O que a população pode esperar?
O Supremo Tribunal Federal tem decidido vários casos, inclusive que conservem as prisões, e tem feito as devidas avaliações a partir das recomendações do CNJ (Conselho Nacional de Justiça). Recomendações que foram elogiadas, inclusive, pela Corte de Justiça aqui na América Latina e Centro América, pelo Tribunal da Costa Rica. Agora, quanto a essa questão de soltarem ou não presos, nós temos debatido isso com muita seriedade e é preciso acabar com esse tipo de brincadeira. O país precisa aprender, e prender bem, não abusar das prisões. O populismo já deu péssimos resultados, e nós precisamos combatê-lo. (Colaborou Israel Medeiros, estagiário sob supervisão de Cida Barbosa)
 
 

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