Correio Braziliense
postado em 10/04/2020 04:02
A cadeira e o homem
Dizem que a cadeira é uma invenção dos antigos egípcios, que adicionaram um encosto aos assentos. Faraós reinavam em cadeiras de madeira dourada, adornadas com ébano e marfim. Daí em diante, o trono seria a representação da ambição e do poder dos monarcas. Somente com a Revolução Industrial e o capitalismo passaram a ser produzidas em série, como as cadeiras Thonet, famosas pelo curvamento das madeiras, que foram as primeiras numeradas e vendidas por catálogos. No começo do século passado, o ferro passou a ser utilizado para reforçar as cadeiras, como no caso da Hil House de Charles R. Mackintosh, em 1928. Logo surgiram peças mais arrojadas, como a cadeira Wassily, de Marcel Breuer, inspirada nos tubos das bicicletas.
Com o modernismo, as escolas de Bauhaus e Milão passaram a dar o tom na produção do mobiliário mais arrojado. As cadeiras do Palácio da Alvorada, por exemplo, são peças autênticas do modernismo brasileiro, especialmente desenhadas a pedido do arquiteto Oscar Niemeyer. Foram recuperadas pouco antes de Jair Bolsonaro assumir o governo, por uma comissão cuja curadoria ficou a cargo da própria designer dos sofás, poltronas e cadeiras. Anna Maria Niemeyer cuidou pessoalmente da restauração e do posicionamento de móveis, quadros, tapetes, estátuas e outras obras de arte do acervo, que retornaram aos locais que ocupavam no projeto de interiores original, a partir de rigorosa pesquisa. A primeira coisa que o presidente Jair Bolsonaro fez ao chegar ao Alvorada foi mandar substituir as cadeiras vermelhas por cadeiras azuis da grande mesa do Salão de Estado, com 18 lugares.
Com seis metros, base de jacarandá e latão e tampo de pau-ferro, estava em péssimo estado quando foi reconstituída a sua base, com polimento do metal dourado oxidado e a fabricação de um novo tampo. A despesa de R$ 5 mil recuperou uma peça avaliada em R$ 300 mil, devido ao seu valor artístico e histórico. No painel de madeira que reveste a maior parede do ambiente, destaca-se uma tapeçaria assinada por Di Cavalcanti, cuja limpeza havia removido 1kg de pó. A reforma foi realizada no governo de Michel Temer, que assumiu a Presidência, mas preferiu continuar morando no Palácio do Jaburu, que considerava mais aconchegante.
Essa visita ao mobiliário do Alvorada tem uma motivação política: um comentário do ex-presidente José Sarney, durante uma entrevista ao jornalista Roberto D’Ávila, na GloboNews: “A cadeira é maior do que o presidente, não é ela que deve ser adaptar”, disse o veterano político conservador. Sarney governou o Brasil num momento difícil, a transição à democracia, enfrentando um período muito conturbado, com milhares de greves, hiperinflação e uma Constituinte que estava acima de tudo, sob comando do líder da derrotada campanha das Diretas Já, o deputado Ulysses Guimarães, presidente do então PMDB.
Além disso, Sarney havia assumindo em razão da morte do presidente Tancredo Neves, ou seja, como vice de um presidente eleito por via indireta, embora com amplo respaldo político e social, mas que nem chegou a tomar posse. Mesmo depois de encerrada sua longeva carreira parlamentar, continua sendo uma espécie de oráculo dos cabeças brancas do MDB e do DEM, porque se mantém lúcido e tem memória privilegiada, às vésperas de completar 90 anos, no próximo dia 24 de abril.
A referência à cadeira foi a única crítica velada que Sarney fez a Bolsonaro durante toda a entrevista. Disse que não gosta de comentar a atuação de seus sucessores.
Imprudência
Nos bastidores, porém, Sarney sempre foi um interlocutor privilegiado, levado em conta no Congresso, sobretudo nos momentos de crise, como a que estamos enfrentando. Suas principais características são a prudência, a moderação e a capacidade de adaptação às circunstâncias. Esses não são o forte do presidente Jair Bolsonaro. Talvez a principal causa da deterioração do atual cenário político esteja sintetizada no breve comentário de Sarney: Bolsonaro não respeita a liturgia do cargo, se acha maior do que a cadeira que ocupa. Não se dá conta de que o simbolismo da liderança está muito mais no poder de articulação do presidente da República, quando conversa com alguém, do que na caneta cheia de tinta para assinar exonerações, nomeações e medidas provisórias.
A articulação transborda para os demais poderes e níveis de governo, enquanto a caneta se limita às atribuições do governo federal, que pode muito, mas não pode tudo que Bolsonaro gostaria. É óbvio que essa questão comportamental reflete uma concepção de mundo e de exercício de poder, mas está aquém das mudanças em curso no mundo e de uma pandemia que pôs tudo de pernas para o ar. Ontem, pela primeira vez, num passeio pela Asa Norte de Brasília, quando resolveu confraternizar com comerciantes e populares numa padaria, Bolsonaro sentiu a chamada voz rouca das ruas criticando seu posicionamento em relação à política de distanciamento social preconizada por Ministério da Saúde, governadores e prefeitos.
Ao estimular as pessoas a saírem do isolamento e voltarem ao trabalho, contrariando a orientação das autoridades estaduais e municipais, Bolsonaro parece não levar em conta que todos os que procederam dessa maneira estão enfrentando grandes dificuldades. É o caso de Donald Trump, nos Estados Undos, em risco de inviabilizar sua própria reeleição. As nossas dificuldades podem ser ainda maiores. Nas últimas 24 horas, houve 141 mortes e 1.930 casos confirmados. Olhando os gráficos, parece que não estamos conseguindo achatar a curva da epidemia na medida necessária para evitar o colapso do sistema de saúde. Se isso ocorrer, Bolsonaro será o principal responsável perante a opinião pública.
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