Politica

Proposta de regularização fundiária desagrada a setores da sociedade civil

Sociedade civil, ONGs e até os parlamentos britânico e alemão alertam para projeto de lei que concede títulos fundiários a quem invadiu terras na região da Amazônia. Relator denuncia a pressão de setores interessados em enfraquecer o combate ao desmatamento

Correio Braziliense
postado em 21/05/2020 06:00
Operação do Ibama para conter o desmatamento na região dos índios kayapó: comunidade internacional em alerta com projeto de lei na CâmaraA proposta de regularização fundiária que tramita no Congresso e desagrada vários setores da sociedade civil pode ficar pior. Após mobilização intensa de ambientalistas, artistas e até organizações internacionais, o Projeto de Lei 2.633/2020, que estava previsto para ser votado ontem, acabou não entrando na pauta da Câmara dos Deputados. Mas o adiamento não foi motivo de comemoração para os ativistas, que se manifestaram contra o texto por considerarem que institucionaliza a grilagem e estimula o desmatamento, sobretudo da Amazônia. Segundo o relator do PL, deputado Marcelo Ramos (PL-AM), “alguns setores do governo desejam um projeto mais flexível e com limites maiores”.

“Não tenho como avalizar isso, razão pela qual não aceitarei mudança no meu relatório porque tenho compromisso com a garantia de titulação, crédito e adesão a programas governamentais aos pequenos produtores e agricultores familiares, com proteção ao meio ambiente e travas à grilagem. Como amazonense, não posso me afastar disso”, explicou o parlamentar. O PL 2.633, cujo texto remete à Medida Provisória 910/2019, que perdeu validade na terça-feira passada, pode entrar na agenda de votação da Câmara na semana que vem.

Entre outras medidas, a MP, que vigorou até caducar, concedia títulos fundiários, a preços abaixo do mercado, para quem tivesse invadido terras até 2014 e permitia vistoria por sensoriamento remoto de áreas de até 15 módulos fiscais (na Amazônia, o módulo fiscal tem 100 hectares). O PL estabeleceu como marco 2008 e limitou a 6 módulos. Ainda assim, a tentativa de votar rapidamente o projeto, durante uma pandemia, provocou muita polêmica.

Cartas dos parlamentos britânico e alemão foram endereçadas ao presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), lamentando o conteúdo do PL 2.633, que, se aprovado, ameaçaria as relações comerciais entre os países. Nas redes sociais, postagens de personalidades com milhões de seguidores, como a cantora Anitta e o ator Bruno Gagliasso, também criticaram a proposta. O premiado fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado promoveu uma campanha internacional para captar assinaturas contra a aprovação do PL 2.633.

“Nós vamos continuar atentos e pressionando, para garantir que a sociedade brasileira seja respeitada. Os deputados eleitos pelo povo devem estar dedicados a enfrentar a triste crise sanitária que vivemos e não se valendo da menor participação e debate no rito legislativo para aprovar medidas que vão beneficiar criminosos”, declarou Luiza Lima, da campanha de Políticas Públicas do Greenpeace. “A bancada ruralista e o governo Bolsonaro seguem convictos de que, em meio à pandemia, é hora de aumentar desmatamento e grilagem”, acrescentou.

Os aliados do governo contestam as queixas contra o projeto de lei. “Não votar o projeto significa que não terá regularização. As queimadas, desmatamentos e invasões ilegais continuarão por não haver segurança jurídica e todos permanecerão na ilegalidade. Perde a sociedade mais uma vez quando não discutimos tecnicamente um assunto”, afirmou o deputado Zé Silva (Solidariedade-MG). Ele era relator da MP 910, que antecedeu o PL 2.633. O líder do governo na Câmara, deputado Major Vitor Hugo (PSL-GO), disse que continuaria trabalhando para aprovar o projeto.

Em reunião virtual ontem, antes da retirada do projeto de pauta, várias lideranças de movimentos pelo meio ambiente pontuaram os perigos do PL 2.633. Marcio Astrini, secretário executivo do Observatório do Clima, disse não existe acordo e tampouco é o momento para votar. “O desmatamento está aumentando, estamos às vésperas da temporada de fogo, com mais violência às populações locais. Além disso, a sociedade quer debater a questão e a Câmara está remota”, enumerou.

Segundo Astrini, mais de 40 empresas estrangeiras da cadeia da soja e da carne estão dizendo que a votação do PL 2.633, e o descaso ambiental do governo Bolsonaro são ruins para a imagem do país, tanto que ameaçaram boicotar os produtos do país. “A simples entrada da MP, que ficou válida por muito tempo, incentivou o aumento da grilagem dentro de áreas indígenas e de unidades de conservação. A repercussão internacional é muito grande”, explicou Astrini. Maíra de Souza Moreira, assessora jurídica da ONG Terra de Direitos, alertou que o Legislativo não poderia votar o PL neste momento. “O ato conjunto número 2, que estabeleceu que seriam votadas prioritariamente as pautas relacionadas à crise do novo coronavírus, está sendo descumprido.”

O presidente do Conselho Nacional de Direitos Humanos, Renan Sotto Mayor, disse que o tema não pode entrar em votação a toque de caixa. “O PL representa a possibilidade de regularizar terras públicas que foram invadidas. Na visão do conselho, é uma grave violação aos Direitos Humanos possibilitar que pessoas que invadiram terras, cometendo crimes, sejam premiadas com os títulos das terras”, afirmou. Dom Roque Paloschi, arcebispo de Porto Velho e presidente do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), levantou a opinião da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil: “A CNBB é contra a votação neste momento.”

Terra produtiva
Embora tenha dito que não defenderá o PL 2.633 se o seu relatório for alterado, como pedem setores do governo, o deputado Marcelo Ramos (PL-AM) sustentou que o texto original não permite a grilagem, ao vedar a possibilidade de titulação para quem comprou a área de quem ocupou antes de 2008 e a vendeu. “
Estabelece que só pode ser titulado quem está no módulo de forma mansa, pacífica e produtiva. Tem que provar que está plantando na terra”, pontuou.

Sobre o segundo argumento, de que o PL que vai estimular a devastação ambiental, Ramos destacou que as áreas tituladas têm 130% menos desmatamento. “É condição para titular provar que vai recompor a reserva legal e reflorestar o que foi desmatado. Hoje, o que estimula a queimada é o fato de os órgãos prenderem quem está na ponta, sem saber quem é o dono da terra”, justificou. O parlamentar sustentou que o PL não estimula invasão em terra indígena, quilombola ou unidade de conservação, “porque se estiverem em processo de regularização, a titulação é suspensa e bloqueada”, ao que ambientalistas rebatem alegando a demora no reconhecimento das terras a esses povos.

Para quem sustenta que o PL não pode ser votado na pandemia, o deputado também tem uma justificativa. “Quem defende (o adiamento) ignora o pequeno agricultor, para quem a legislação se destina. Eles também são vítimas da atual crise. Se ajudamos o pequeno empresário e os informais, por que não podemos ajudar o pequeno agricultor? Só com título da terra eles terão acesso ao crédito e aos programas governamentais”, completou.

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