Correio Braziliense
postado em 23/05/2020 04:04
Erro e crime na República
A mais alta corte de Justiça do país se debruçou, esta semana, sobre a distinção entre crime e erro nos atos cometidos por ocupantes de cargo público. Desde o início da semana, a República aguardava ansiosamente a decisão do ministro Celso de Mello de divulgar parcialmente ou na íntegra o vídeo da reunião ministerial de 22 de abril, na qual, segundo denúncia do ex-ministro Sergio Moro, haveria indícios de que o presidente Jair Bolsonaro tencionava interferir em uma instituição de Estado, a Polícia Federal, mediante a troca no comando da corporação conforme seus interesses particulares. No fim da tarde de ontem, Celso de Mello levantou o sigilo da fatídica sessão ministerial. Paralelamente à revelação de um suposto delito presidencial contra a autonomia e a independência da Polícia Federal, o registro da reunião pode trazer outras consequências judiciais ou políticas aos participantes do colóquio. Em diversas passagens, integrantes do alto escalão bolsonarista emitem impropérios aos borbotões, particularmente Abraham Weintraub e Jair Bolsonaro. Considerando-se que nenhum dos presentes imaginava que o encontro viria a público, alguns excessos verbais não chegam a causar espanto. Ou alguém esperava outro tipo de postura ao examinar as entranhas do círculo bolsonarista? Em diversos momentos, a sessão de cinema mais comentada do país representa tão somente um espetáculo tosco da política nacional. A questão é perscrutar o que há além de palavrões e frases raivosas no Palácio do Planalto.
O inquérito conduzido pelo ministro Celso de Mello tem como finalidade investigar se há conduta criminal nos atos do presidente da República. Desde o início da crise deflagrada com a saída de Sergio Moro do Ministério da Justiça, o mandatário insiste que a escolha do diretor-geral da Polícia Federal constitui prerrogativa do presidente da República. Na tese bolsonarista, não haveria problema algum — que dirá ilícito — em retirar do cargo um diretor-geral da PF para substituí-lo por alguém com mais “interação” com o presidente da República. Ora, não haveria problema algum se a ordem para efetuar a troca no comando da PF não partisse daquele que vem a ser o pai de filhos investigados em inquéritos sobre o esquema da “rachadinha”, bem como a respeito de ações extremistas nas redes sociais, que incitaram manifestações antidemocráticas favoráveis ao fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal e ao retorno da ditadura militar. Somente uma investigação poderá esclarecer se as acusações lançadas por Moro encontram respaldo em provas, ou se Bolsonaro tem direito ao benefício da dúvida quanto às suas intenções na Polícia Federal.
O envio da notícia-crime à Procuradoria-Geral da República, atendendo a pedido feito por partidos para a apreensão do celular do presidente, constitui um passo relevante na finalidade de averiguar a extensão dos supostos ilícitos do presidente da República. Em que pese a logorreia de Bolsonaro, que não estaria disposto a entregar o aparelho telefônico, e as ameaças veladas do Gabinete de Segurança Institucional, temendo “consequências imprevisíveis” e considerando “inconcebível” o confisco do telefone presidencial, é preciso entender que existe uma investigação em curso. E, como salientou Celso de Mello, é “dever do Estado” examinar a ocorrência de um delito, pouco importa o cargo circunstancial ocupado pelo investigado.
Contudo, não é apenas o inquérito decorrente das acusações de Moro que pesa sobre Jair Bolsonaro e ocupa o tempo dos integrantes do Supremo. Mais amplo e mais preocupante tornou-se o debate sobre a postura do chefe do Executivo em relação a uma catástrofe que afeta todos os brasileiros, ricos ou pobres, poderosos ou indigentes. A medida provisória que exime agentes públicos de responsabilidade na tomada de decisões durante a pandemia constitui clara tentativa de antecipar um salvo-conduto a quem tem o dever de encontrar a melhor solução possível para a sociedade brasileira em momento tão crítico. Em princípio, a discussão é pertinente, particularmente a prefeitos e governadores que vivem o drama de definir medidas de ordem sanitária, econômicas e sociais no enfrentamento à covid-19. Mas a MP esconde um estratagema do Planalto, pois tenta blindar os atos do presidente da República em relação à pandemia. O plenário do Supremo deixa claro que a responsabilidade administrativa também se aplica a Bolsonaro, contrário a todas as recomendações das autoridades médicas e científicas em relação à covid-19. Episódios como o deplorável “E daí?” e o protocolo da cloroquina, após a demissão de dois ministros da Saúde, são eloquentes de uma autoridade que ignora solenemente a ciência e politiza uma crise sanitária sem precedentes no país. Ao examinar a medida provisória, o Supremo entendeu que há uma enorme diferença entre “erro grosseiro” e crime de responsabilidade.
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