Quando o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Dias Toffoli, anunciou, em 14 de março do ano passado, que abrira procedimento para apurar ataques e fake news contra a Corte, não era possível imaginar a dimensão que as diligências tomariam mais de um ano e três meses depois. No entanto, algumas dúvidas já pairavam nos debates do mundo jurídico e críticas na imprensa: a ausência de delimitação sobre os alvos e os objetivos da investigação. Após identificar ameaças de atentados a bomba e assassinatos a tiros de ministros da Suprema Corte, o inquérito atingiu em cheio as bases do governo do presidente Jair Bolsonaro. As ações elevaram a temperatura em Brasília — ontem, em uma rede social, Bolsonaro avisou que “tudo aponta para uma crise” (leia mais na próxima página) — e podem ter impactos até mesmo em ações que pedem a cassação da chapa presidencial. No horizonte, não se desenha uma solução jurídica breve para o tema.
Eram as primeiras horas da manhã da última quarta-feira, quando equipes da Polícia Federal saíram às ruas em três unidades da federação. Os agentes tinham, na mira, blogueiros com larga influência e milhares de seguidores nas redes sociais, capazes de pautar, em poucos minutos, os assuntos que ficam em alta entre milhões de pessoas. Segundo o inquérito das fakes news, sob relatoria do ministro Alexandre de Moraes, eles são acusados de espalhar notícias falsas e de atacarem o Supremo. Em outra linha de investigação, empresários de grandes redes do país tiveram computadores e celulares apreendidos. O objetivo é identificar como funciona e é financiado o esquema de propagação de mensagens deliberadas com alvos específicos. Deputados federais também foram alvo das ações. O apoio irrestrito ao governo e ao presidente da República é o elo comum de todos os investigados.
É justamente por atacar a base política e de disseminação social das informações do governo que o inquérito do Supremo entrou na mira do Poder Executivo. Horas após o cumprimento de 29 mandados de busca e apreensão em Brasília, São Paulo e Rio de Janeiro, e da intimação de parlamentares, o Planalto convocou uma reunião com todos os ministros. O que poderia ser a realização de um gabinete de crise de emergência para discutir a pandemia de coronavírus, que já chega a ceifar mil vidas por dia e a infectar ao menos 25 mil pessoas, era na verdade uma força tarefa para discutir medidas reativas ao Poder Judiciário. Na mesa, entraram opções como descumprir ordens dos ministros do Supremo, nomear Alexandre Ramagem para o comando da Polícia Federal e afrontar uma decisão do próprio ministro Alexandre de Moraes, e até mesmo fazer discursos públicos contra a Corte.
Após horas de conversa, o governo chegou ao consenso de que todos os ministros deveriam rebater as ações, mas sem citações diretas ao Supremo e seus integrantes. A intenção é dar um recado para a Suprema Corte de que as diligências incomodaram o governo, e na visão de quem frequenta o Palácio do Planalto, alcançaram o limite de atribuições do Judiciário perante os interesses do Executivo. No entanto, as aspirações do presidente, seus ministros e apoiadores não encontram respaldo nas intenções e trâmites da Justiça. Os ataques de integrantes do governo contra os magistrados criaram um consenso de apoio no Supremo. As ameaças de partir para rupturas ou objetivos autoritários passam a ideia da necessidade de proteger a democracia. As opiniões controversas em relação ao inquérito deram lugar à preocupação com as ferramentas disponíveis para lidar com novas crises, ataques ou com uma eventual escalada autoritária, embora esta última possibilidade encontre pouca credulidade entre os ministros.
Ao decidir pela quebra de sigilo telefônico, bancário e de e-mail, o ministro Alexandre de Moraes autorizou que os dados colhidos retrocedam até o segundo semestre de 2018. Com isso, as autoridades podem ter acesso a conversas e transações financeiras que ocorreram durante as últimas eleições. Se ficar caracterizado que pessoas próximas ao presidente, ou apoiadores financiaram correntes de fake news, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) pode entender que o pleito ficou prejudicado e decidir anular a eleição presidencial, o que resultaria na perda de mandato do presidente Jair Bolsonaro e do vice, Hamilton Mourão.
A análise do caso no TSE caiu na gestão do ministro Luís Roberto Barroso, que ficará à frente da Corte pelos próximos dois anos. Em entrevista ao Correio, Barroso declarou que vai pautar as ações de acordo com o pedido dos relatores. As que pedem a cassação da chapa vencedora das eleições estão sob relatoria do ministro Og Fernandes, que deu prazo, até amanhã, para que Bolsonaro e Mourão se manifestem sobre um pedido do PT para unir informações do inquérito das fake news com as ações que estão em seu gabinete.
Durabilidade
O fato é que o processo de investigação ainda tem um longo caminho pela frente. Moraes já dispõe de novas informações que levam à participação de outras pessoas e até a autoridades nos atos criminosos. Peritos da PF colhem provas nos materiais apreendidos para fundamentar novas ações. Novamente, estão na mira pessoas próximas do presidente Jair Bolsonaro. O ministro Edson Fachin levou ao plenário do Supremo uma Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) apresentada pela Rede, e uma manifestação do procurador-geral da República, Augusto Aras, para que o inquérito seja suspenso. Em nova manifestação enviada à Corte na sexta-feira, o partido mudou o teor dos pedidos e defendeu a manutenção das diligências. A tendência é de que o plenário decida pela continuidade do caso.
O Ministério Público deve ser o destino dos autos assim que as investigações forem concluídas, o que ainda não tem prazo para acontecer. No entanto, mesmo que o órgão se manifeste a favor da suspensão das diligências, o Supremo pode decidir por continuar. Apelidada de “inquérito do fim do mundo”, a investigação 4.781 divide a opinião de especialistas. As críticas são de que Dias Toffoli está usurpando suas competências ao abrir, de ofício, o processo investigatório, nomear Moraes para conduzi-lo e este, por sua vez, determinar diligências e até punições. A decisão de Toffoli baseia-se no artigo 43 do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal (STF), que tem força de lei. Polêmico, o artigo permite a abertura de inquérito para crimes que ocorram na sede do STF, ou em suas dependências físicas. No entanto, um parágrafo único afirma que a mesma medida, ou seja, o presidente abrir investigação, e nomear um de seus pares para presidir o procedimento, pode ser concretizada “nos demais casos”.
O advogado Thiago Sorrentino, professor de Direito do Estado do Ibmec/DF, entende que o ato é controverso à luz do direito. “O inquérito é de constitucionalidade duvidosa, pois ele se apoia em dispositivos do regimento interno que não se aplicam ao caso. O poder de revisão e de polícia do STF se refere aos eventos ocorridos dentro da Corte, nas questões cíveis, administrativas e penais, e não tem abrangência externa. Há,também, aparente contrariedade aos princípios do juiz natural, da isonomia e do devido processo legal, infelizmente, dado que nenhum órgão poderia concentrar o poder de iniciar esse tipo de ato, conduzi-lo e julgá-lo”, explica.
A constitucionalista Vera Chemim, da Fundação Getulio Vargas (FGV), especialista em Supremo Tribunal Federal (STF), acredita que o cenário político corrobora para que a investigação seja mantida pelo plenário. “Quando esse inquérito foi instaurado no ano passado, houve uma série de críticas de que seria inconstitucional, pois a Corte não pode investigar, denunciar e julgar. Agora o regimento interno abre precedente para que ocorra investigação por parte do Supremo, mesmo que os fatos ocorram fora da sede do Tribunal… O inquérito deve ser validado no plenário, mas acredito que alguns ministros vão entender que ele deve ser enviado à Procuradoria-Geral da República. O procurador-geral pode se manifestar pelo arquivamento, mas se o Supremo achar que tem materialidade suficiente, pode dar seguimento mesmo assim”, diz.
Manifesto em defesa da democracia
Um grupo de mais de 1,6 mil personalidades de diferentes setores da sociedade assinou, ontem, um manifesto chamado Estamos #Juntos. O texto referendado por artistas, acadêmicos e lideranças políticas prega a defesa da “vida, liberdade e democracia” e pede que os governantes “exerçam com afinco e dignidade seu papel diante da devastadora crise sanitária, política e econômica que atravessa o país”.
Entre os signatários estão representantes de diferentes lados do espectro político, como o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e o governador do Maranhão, Flávio Dino (PCdoB). Também subscrevem o manifesto parlamentares como Marcelo Freixo (PSol), Tábata Amaral (PDT) e Marcelo Calero (Cidadania). Há outras personalidades que assinam o documento, como o médico Drauzio Varella; o arcebispo de São Paulo, Dom Odilo Scherer; a atriz Fernanda Montenegro e o youtuber Felipe Neto.
Um dos organizadores do grupo, o escritor Antonio Prata explicou que diferentes personalidades se juntaram diante da sensação de estar em uma “tempestade em um bote furado”. Segundo ele, a pandemia do novo coronavírus e a deterioração na situação política do país motivaram a união entre pessoas que costumam ficar em lados opostos do debate público.
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