Correio Braziliense
postado em 01/06/2020 06:00
Em poucos momentos da história recente do Brasil houve uma onda tão grande de angústias e apreensões como a que está em andamento agora. Devido à pandemia do novo coronavírus, muitos brasileiros lidam com o luto pela perda de entes queridos, enquanto outra parcela significativa da população sofre com a falta de renda ou de condições mínimas para subsistência. Paralelo aos dramas pessoais, é cada vez maior o descontentamento da sociedade com os agentes políticos pelas estratégias adotadas por eles para enfrentar a crise sanitária. Juntos, esses dois ingredientes — sensação de impotência e insatisfação generalizada — podem criar o clima perfeito para que, nos próximos anos, o país presencie uma leva de pulsantes manifestações populares.
Independentemente do retrato final que o novo coronavírus deixar no Brasil, seja pelo expressivo número de mortes, seja pelo forte impacto na economia — ou por uma devastadora crise socioeconômica causada pela junção dos dois fatores —, é provável que, após o surto da covid-19, a população ainda carregue efeitos colaterais por conta da pandemia. E será essa comoção coletiva o principal motor para que os brasileiros saiam às ruas para reivindicar algum direito ou promover protestos políticos.
“As manifestações ocorrem a partir das angústias vividas por cada um. Hoje, há muita ansiedade entre a população de qual será o desfecho da pandemia. De um lado temos o público com medo das consequências em relação à saúde pública, por conta das mortes, e do outro temos aqueles que temem uma crise econômica, por não terem emprego. Para qualquer um dos lados, essa crise deixará reflexos psíquicos, que farão com que as pessoas sintam-se pressionadas a sair para as ruas e protestar”, analisa o médico psiquiatra e professor colaborador da Faculdade de Medicina da Universidade de Brasília (UnB) Luan Diego Marques.
Marques lembra que, desde antes da crise da covid-19, o Brasil já passava por situações socioeconômicas muito delicadas. Segundo ele, a pandemia apenas deixou mais evidente a fragilidade do suporte que é oferecido à população pelo Estado. “A crise externalizou pontos muito críticos da falta de gestão pública do país. E como o brasileiro já carregava uma insatisfação antiga, a situação pandêmica só potencializou isso e será mais um combustível para alimentar revoltas políticas”, pontua.
Desde o primeiro registro da covid-19 em território nacional, no fim de fevereiro, o Brasil é um dos países do mundo que mais registraram protestos e motins, de acordo com o Projeto de Localização de Conflitos Armados e Dados de Eventos (Acled, na sigla em inglês), organização não governamental especializada em coleta de dados desagregados, análise e mapeamento de crises.
A ONG formulou um rastreador de desordens para analisar o impacto da pandemia nas violências políticas e protestos em todo o mundo. Segundo a instituição, “estratégias de governança opostas em resposta à pandemia levaram ao aumento das tensões e da violência no Brasil”. “As autoridades de saúde pediram isolamento social, e a maioria dos governadores estaduais respondeu com medidas para ficar em casa. No entanto, as tensões aumentaram à medida que o presidente Bolsonaro procura acabar com as medidas de isolamento social, criticando as medidas adotadas pelos governadores”, destaca o estudo da Acled.
Além disso, a organização alerta para uma tendência de mais manifestações visto que um pedido de cessar-fogo mundial para combater covid-19 feito em março pelo secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), António Guterres, não foi cumprido pelo Brasil. “Em geral, a chamada para um cessar-fogo global não teve o resultado desejado. Em países como México, Iraque, Moçambique e Brasil não apenas os atores do conflito falharam em tomar as medidas necessárias para atender à chamada, como muitos aumentaram as taxas de violência organizada”, informa a ONG.
Frustração
Outro combustível para as manifestações pode ser a decepção do povo com os representantes políticos eleitos em 2018 para administrar o país, sobretudo o presidente Bolsonaro. O brasileiro ansiava por mudanças ao escolher o capitão reformado do Exército como chefe do Palácio do Planalto. No entanto, como as expectativas não foram atendidas, parte do seu eleitorado perdeu a esperança. “O presidente tem recebido duras críticas acerca da condução do país durante a crise. Dentre elas, destacam-se justamente a falta de habilidade política, a criação de dissenso sobre questões sensíveis à saúde e a inabilidade em se comunicar com a população. Soma-se a isso a forma drástica de saída dos ministros Luiz Henrique Mandetta, Sergio Moro e Nelson Teich do governo e os fatos envolvidos” diz o advogado e especialista em direito público Rodrigo Veiga.
Ele também destaca que “o povo, ao entregar seu voto ao governante, espera que ele acerte e conduza o país da melhor forma, não importando a situação” e que “se políticas públicas efetivas não forem adotadas, a chance de insatisfação popular certamente será aumentada e manifestações contrárias ao governo poderão ganhar amplitude”. Dessa forma, fatalmente a conta do Brasil pós-pandemia cairá no colo de Bolsonaro, e a população poderá sair às ruas mesmo que a covid-19 não seja completamente erradicada do país.
“Tão certa quanto os reflexos da pandemia é a insatisfação de um povo que se sente desamparado. Os cidadãos têm compreensão quanto à necessidade de suportar certo grau de sofrimento. Contudo, a partir do momento que a compreensão das perdas deixar de refletir efeito direto da pandemia e passar a demonstrar inabilidade do governo em contornar a situação, não será o risco à saúde que impedirá o povo de buscar ser ouvido mediante manifestações populares intensas”, destaca Veiga.
Mais divisão
Além da possibilidade de mais manifestações, o Brasil pode ver uma polarização ainda maior entre a população, o que pode ser um risco. “Além do vírus, que se tornou inimigo, temos um outro inimigo que é a divisão estrutural da população, o que se torna mais grave para a construção de uma sociedade mais justa, solidária, equilibrada e estruturada. Se nós rompermos com a democracia, que é o ápice da qualidade de vida, geramos desequilíbrio para todos”, opina o filósofo Marcelo Veronez.
“A reivindicação de direitos vai surgir de forma muito forte. O que estamos vendo é que a pandemia está revelando que o Brasil é um dos países mais desiguais do mundo e tem complicações muito sérias. Uma vez que a população sentir com profundidade a carência desses direitos, acredito que os protestos devem surgir em uma situação de pós-pandemia, ainda que haja um desequilíbrio sanitário”, acrescenta o doutor em direito constitucional pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Alexandre Bernardino.
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