Correio Braziliense
postado em 12/07/2020 04:11
A herança escravocrata da sociedade brasileira está na raiz de fenômenos políticos como a ascensão de Jair Bolsonaro à presidência da República, mas explica também a corrupção, a desigualdade social e, mais recentemente, a derrota para a pandemia do novo coronavírus. A opinião é de um dos maiores estudiosos do comportamento brasileiro, o antropólogo fluminense Roberto DaMatta, 83 anos. Ele é mestre e doutor pela Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, autor de vários livros e de centenas de artigos sobre o tema.
Para o pesquisador, que é professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), o brasileiro é inconsciente em relação a essa cultura de subordinação que vem dos primórdios da escravidão, de se colocar como superior ou como inferior. “É isso que faz com que você tenha um presidente que exerce essa arrogância toda, até de receitar remédios que a Organização Mundial da Saúde já disse que fazem mal”, diz o docente, em entrevista ao Correio, demonstrando preocupação com a escalada autoritária do chefe do Executivo.
Para ele, o Brasil vive um momento de “erosão”, com o risco de implosão das instituições estabelecidas que levaram muito tempo para se consolidar. “Eu sinto que existe uma dimensão autoritária. Agora, se esse autoritarismo vai se fechar num fascismo, ou num stalinismo, que são mais ou menos parecidos, no sentido de que você não pode ter oposição, eu não sei, mas é um sintoma. Agora, é um sintoma sério, porque junto com isso tem uma pandemia”, alerta o antropólogo. A seguir, os principais trechos da entrevista.
A pandemia do novo coronavírus colocou em xeque o grau de civilização de cada país. Por que estamos perdendo essa guerra?
Eu não sei se seria uma ofensa à civilização falar que o Brasil é um país civilizado. Há duas maneiras de se ler o Brasil. Você pode ler o Brasil como um Estado nacional moderno, que tem uma República, uma bandeira, uma moeda. Mas, você pode ler o Brasil de uma outra forma, antropológica, sociológica, que é o que eu fiz durante os últimos 40 anos. É a leitura por meio dos valores. Essas leituras são conflitivas. Se você olhar o Brasil como uma República que nasceu no final do século XIX, logo depois da abolição da escravatura, essa contradição aparece de uma maneira óbvia. Proclamamos a República, mas não somos republicanos. Não nos preocupamos com a sorte daqueles escravos, que vieram da África e carregavam o Brasil nas costas. Foi aí que começamos um grande movimento transumano, de imigração de massa, de trazer estrangeiros brancos para trabalharem no Brasil. E demos a esses estrangeiros condições que não demos aos negros que haviam sido alforriados.
O que é preciso para mudar isso?
Em matéria de civilização, acho que estamos vivendo um momento em que é fundamental a consciência de que é preciso interligar esse Brasil, interligar a sociedade, os costumes, os hábitos, as desigualdades que vêm da escravidão, uma matriz aristocrática, que tinha na base produtiva o trabalho escravo. É preciso que haja uma melhor relação, com muita clareza, entre o Estado e a sociedade brasileira. Não pode haver um descompasso, em que quem está no Estado tira da sociedade e a ela não serve.
O que a pandemia revela do Brasil?
A pandemia revela uma total falta de organização, de entendimento dos papéis sociais nessa emergência. Não é possível, quando as autoridades de Saúde mandam você usar uma máscara, que o presidente da República apareça ostensivamente tirando a máscara. Isso é inadmissível. Não funciona. Não é assim que os seres humanos funcionam. Quem é que dá o exemplo? Além disso, não há sincronia no país. Uma sociedade civilizada tem uma base educacional, que é um acordo mínimo entre elites e o povo.
E os descompassos na educação, ao que o senhor atribui?
Eu morei em uma cidade de Minas Gerais chamada São João do Nepomuceno. E visitei várias cidades da zona da mata. Eu era menino, por volta da década de 1940. Nessa época, um dos prédios mais bonitos, se não o mais bonito da cidade, era o do grupo escolar. Eu, aqui em Niterói (RJ), na década de 1950, estudei, no curso secundário, no Liceu Nilo Peçanha. Os liceus tinham carteiras de jacarandá. Eram os que pagavam melhor aos professores. Mas nós, da classe média branca, liquidamos isso. Liquidamos, porque tinha muitos “pretinhos” que estudavam nessas escolas. Então, inventamos os colégios particulares, experimentais, porque diziam que tinham uma pedagogia nova. E esse ensino de qualidade foi todo por água abaixo. Da mesma forma, acabamos com as estradas de ferro e colocamos automóveis na rua.
Qual a relação entre o grau de civilidade do brasileiro e a eleição do presidente Bolsonaro?
Quem inventou o Bolsonaro? Quem foi que botou esse ator no palco? Pergunta isso aos eleitores. Porque a política é um palco. Tem gente que entra, tem gente que sai. Só que, no Brasil, pouca gente sai e muita gente fica. E não só fica como também nomeia filhos. Se você pegar, em Brasília, a genealogia dos políticos, vai ver que há dinastias. E o que o Bolsonaro prometeu não fazer, está fazendo. Então, a pergunta que a gente faz é essa: como é que esse personagem foi eleito? Quais foram as esperanças que agenciaram os eleitores do Bolsonaro? Uma delas, obviamente, foi a Operação Lava- Jato. Eu escrevi um artigo sobre isso. A Operação Lava-Jato, hoje, está sendo reduzida e, talvez, acabe.
Em sua obra Carnavais, Malandros e Heróis, o senhor abordou algo enraizado na sociedade brasileira: a frase “Você sabe com quem está falando?”. Recentemente, um fiscal da prefeitura do Rio foi ofendido por um casal que usou essa pergunta. Após todos esses anos, o Brasil não conseguiu evoluir nesse sentido?
Não evoluiu. É uma aristocratização. O que estamos buscando, em termos de objetivo de vida, qualquer profissão que se tenha, é ficar famoso, porque se sabe que, ficando famoso, terá dinheiro, o que é importante para viver. E viver confortavelmente é importante. A conquista disso leva ao sentimento de uma superioridade profética. Vai poder entrar em qualquer lugar, vai fazer qualquer coisa. É um ritual de colocar as pessoas em uma situação inferior. Você só faz essa pergunta para inferiorizar a pessoa. Eu li 500 livros em relação a esse assunto. É uma posição aristocrática. O que é uma sociedade aristocrática? Numa sociedade aristocrática, não existe política nem mérito. Você nasce rei. Não é preciso falar de luta de classes quando se tem algo como “você sabe com quem está falando?”. Isso não acaba, ninguém vê isso como problema.
Está dizendo que isso está normalizado no Brasil?
O maior problema em qualquer sociedade, em qualquer psicologia, é você ter uma coisa sobre a qual não tem consciência. O Brasil é inconsciente em relação a essa cultura de subordinação que veio da escravidão, de colocar-se como superior ou inferior. Esse que é o ponto chave do sistema. É isso que faz com que você tenha um presidente que exerce essa arrogância toda, até de receitar remédios que a Organização Mundial da Saúde disse que fazem mal.
O TCU descobriu que houve mais de 600 mil pagamentos indevidos do auxílio emergencial. O que isso diz da nossa sociedade?
O que é que define a malandragem no Brasil? A malandragem está sempre no fio da navalha. É uma coisa que não é totalmente ilegal, mas, também, não é completamente legal. É um tipo de esperteza. A gente é esperto, quer tirar vantagem de tudo. Então, o que é que aconteceu? Quando houve esse anúncio da distribuição do auxílio emergencial para as pessoas vulneráveis, eu pensei: “vai ter gente de classe média que vai se candidatar”. Porque o governo está distribuindo dinheiro. Isso é a caracterização cabal de uma sociedade aristocrática, em que o rei distribui dinheiro, o rei passa de carruagem e joga dinheiro. Isso aconteceu no Brasil quando Carlota Joaquina saía na carruagem dela ou o rei Dom João VI jogava moedas para o povo pela janela da carruagem. É típico de uma sociedade aristocrática pré-Revolução Francesa. Quem é eleito presidente, com raras exceções, vira monarca, porque pode fazer tudo. É por isso que a gente não acaba com o foro privilegiado.
O que mais o senhor aborda em Carnavais, Malandros e Heróis?
Abordei, também, que um dos problemas densos no Brasil, do ponto de vista sociológico, é que quem obedece às regras e às leis é inferior. Eu entrevistei umas 250 pessoas. Eu fazia uma pergunta para todo mundo: “Como você classificaria uma pessoa que segue todas as regras?”. Respostas: “É um babaca”. Somos malandros, espertos. É o jeitinho brasileiro, não somos bobos, somos vivos. Todas essas definições de esperteza. A ideia é essa no Brasil. Não vai acabar.
O governo tem sido alvo de protestos contra o fascismo e o racismo. O senhor vê a presença desses dois elementos no atual governo?
Sem dúvida. A gente está vivendo um momento de erosão e correndo o risco de uma implosão das instituições estabelecidas que custaram muito a se firmar. Começa com o próprio comportamento do presidente da República, dos aliados e da família. É uma coisa muito delicada e perigosa. Há uma decepção enorme em relação àqueles que votaram nesse presidente. Aquela reunião ministerial de 22 de abril foi uma das piores coisas que eu já vi. Um líder promove o uso de palavrão, a agressão, o “vamos passar a boiada, que ninguém está vendo”. Um comportamento desleal de pessoas que estão ali para servir ao Brasil e não para serem servidas. Sinto que existe uma dimensão autoritária. Se esse autoritarismo vai se fechar num fascismo, no sentido de que não poder ter oposição, eu não sei, mas é um sintoma sério.
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