Politica

Negar é um ato autoritário

Historiadora mostra que a pandemia da covid-19 escancarou a intolerância, que saiu da política para contaminar a sociedade brasileira

Correio Braziliense
postado em 27/07/2020 04:14
Historiadora mostra que a pandemia da covid-19 escancarou a intolerância, que saiu da política para contaminar a sociedade brasileiraA pandemia do novo coronavírus acentuou um movimento que se podia perceber e que vinha ganhando espaço, sobretudo na internet: o negacionismo. Tudo que é científico, que há muito deixou o campo da teoria, está constatado e repleto de evidências, passou a suscitar “dúvidas”. A ida do homem à Lua, a forma da Terra –– isso e muito mais entrou no rol das desconfianças que muitos passaram a disseminar. Não coincidentemente, a negação tornou-se bandeira de comunidades conservadoras, que, com a eleição de Jair Bolsonaro, romperam a crosta e estão na superfície.

“Isso mostra como as pessoas se apegam a pensamentos mágicos”, aponta a antropóloga e historiadora Lilia Schwarcz, curadora-adjunta de histórias do Museu de Arte de São Paulo (Masp), que, ao Correio, falou sobre o negacionismo defendido pelo presidente e seus apoiadores.

Segundo Lilia, Bolsonaro é um dos porta-bandeiras da negação, ao não reconhecer a intensidade da pandemia no Brasil e defender medicamentos –– como a cloroquina e ivermectina –– que não têm qualquer eficiência no combate à covid-19, conforme confirmam estudos científicos.

Lilia, porém, salienta que o negacionismo não é novo no Brasil. E confirma isso no livro que escreveu sobre a gripe espanhola (1918) no país, que deve sair em setembro, em parceria com a historiadora e cientista política Heloísa Starling. A epidemia de um século atrás tem muito a ver com o momento político e social vivido pela sociedade brasileira. Sobretudo quando o assunto é desinformação: se hoje a internet dissemina fake news e conceitos errados, há 100 anos o mesmo serviço era feito boca a boca — e com os mesmos trágicos efeitos.

Confira os principais trechos da entrevista com a historiadora.







Vivemos em um período no qual é possível observar com mais clareza um negacionismo no país e em outras partes do mundo, e isso não se restringe ao coronavírus. O que acontece no Brasil?
Isso vem de fora, não é algo só brasileiro. Houve um movimento grande nas redes sociais, que democratizaram de um lado a informação e, de outro, democratizaram a falta de informação, porque as pessoas não se preocupam em verificar a fonte. A lógica das redes é a do imediatismo, sem respeito à produção de conhecimento. E pesquisas mostram que, em países desiguais, como o nosso, a política de negacionismo tende a ter ainda mais sucesso, porque você tem uma lacuna muito grande de conhecimento.

A pandemia reforçou esse negacionismo?
Nós vivemos numa sociedade ocidental que não é preparada para a morte, para o luto, não é preparada, inclusive, para gestos de solidariedade, o que é muito estranho no nosso presidente, por exemplo. É muito custoso para ele soltar um gesto de solidariedade para com esses mortos. Ele prefere negar. E isso é comum em contextos endêmicos. As pessoas, diante de situações como essas, preferem acreditar num milagre. Durante a gripe espanhola, em 1918, é impressionante o que foi a entrada do assim chamado “sal de quinino”, que as pessoas tomavam, apesar de saber que era usado para malária (como a hidroxicloroquina). Qual a diferença em relação à gripe espanhola? Na época, os dirigentes ligados à saúde, os médicos responsáveis e o presidente (Rodrigues Alves) não apoiavam o sal de quinino.

Esse negacionismo traz uma certa nostalgia, certo?
O presidente tenta construir uma nostalgia nos seus eleitores, fiéis seguidores, que é uma mitificação da história. E o que dizer de eleitores que chamam seu presidente de mito? Ao fazer isso eles já estão dizendo que vão segui-lo fielmente, não importa o que ele venha a dizer. É aí caímos no negacionismo. E Bolsonaro o aplica há muito tempo, desde quando era deputado.

O presidente elegeu-se tendo um discurso elogioso à ditadura militar. O que isso diz sobre a relação do brasileiro com o autoritarismo?
É uma nostalgia de um passado que nunca existiu, uma nostalgia de um Exército aristocrático, fiel balança da democracia. E o Exército nunca foi isso. Durante a ditadura militar, o que foram os 17 atos institucionais se não uma tentativa de acabar com a democracia?

O ato de usar máscara é simples, mas, muitos se recusam a usar, inclusive o presidente. Isso é reflexo do negacionismo à ciência ou é ausência de empatia?
Negacionismo à ciência. Depois há uma soberba por parte dessas populações infladas pelo presidente, do tipo de pensamento “eu não pego porque eu sou atleta, você pega porque é fraco”. E há, também, um discurso machista, de uma ideia que aqueles que são “machos” não pegam.

A senhora diz que, como a história é cíclica, ela retroage. Tivemos períodos de avanços em pautas importantes, ações afirmativas, discussão sobre homofobia, racismo e, de repente, isso pareceu mudar. O que aconteceu?
Existe uma guinada de raiz autoritária no mundo todo, mas é preciso pensar nas consequências do autoritarismo em um país tão desigual como o Brasil. Nesses 30 anos de democracia, se não absoluta, mas pelo menos plena, eu acho que os brasileiros viram o surgimento de novos sujeitos com as suas bandeiras, como o movimento negro, feminista, feminista negro, movimento vinculado ao meio ambiente, LGBTQIA+, indígenas, e nós vimos a agenda se alargar. Conseguimos, então, começar a imaginar uma história mais plural, não tão europeia, não tão colonial. O que aconteceu a partir de 2013, com a crise recessiva que o Brasil viveu, foi o aparecimento de setores que talvez nós não vimos. Existia um setor muito descontente que começou a achar que tudo que estavam perdendo, como emprego, eram culpa da cotas, dos novos sujeitos. E isso tudo vai refluir na campanha vitoriosa de Jair Bolsonaro. E essas pessoas começaram a se apresentar mais.




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