Correio Braziliense
postado em 01/08/2020 07:00
Em artigo publicado no site OpenDemocracy, o professor Matías Ponce apresenta os pontos mais importantes sobre o fenômeno que ele denomina “fakecracia”. Nas palavras de Ponce, “a fakecracia pode ser entendida como um sistema político no qual o uso de fake news é a ferramenta mais relevante de comunicação política. Para os atores políticos, este é um recurso que serve para atacar a oposição política, mas também como uma ferramenta que desvaloriza o trabalho dos jornalistas e espalha o discurso do ódio”. O enunciado é um resumo do nosso tempo. As fake news se transformaram, em escala industrial e organizada, no instrumento político de alta eficácia para que determinados grupos ascendam, mantenham-se no poder e influenciem atos e pensamentos de milhões de pessoas. Não basta apenas falar às massas, manifestar seu ponto de vista, sua causa, sua expressão política. É necessário alimentá-las, constantemente, com ideias que não necessariamente correspondam à realidade. É preciso instigá-las à exaustão e direcioná-las a uma realidade paralela, construída por preconceitos, radicalismo, polarização, simplismo, desinformação.
Apenas para ficar nesta semana, temos uma fake news oficial com o chefe do Executivo, que exibe à multidão uma caixa de cloroquina como se fosse troféu de campeonato, transmitindo a falsa ideia de que o medicamento é eficaz contra a covid-19. E temos uma fake news, digamos assim, bandida, que atribui crimes inexistentes ao influenciador digital Felipe Neto, o mais novo alvo da sanha bolsonarista. Não bastassem a desinformação, a injúria e a calúnia e o ódio disseminados no espaço virtual, as fake news provocam manifestações reais, como as ameaças à integridade física das pessoas –– vejam os casos de Felipe Neto e do ministro Alexandre de Moraes ––, a explosão de fogos às portas do Supremo Tribunal Federal e as passeatas a favor do fechamento do Congresso Nacional. São eles, pessoas ou instituições, os inimigos de quem utiliza a tecnologia para atacar, ofender, caluniar, intimidar, ameaçar. Tudo em nome do poder.
América Latina
O leitor do noticiário político sabe que a influência das redes sociais –– e por extensão, as fake news –– é notória, particularmente nas eleições de Donald Trump e de Jair Bolsonaro. Matías Ponce relata, no entanto, a ocorrência de uma “pandemia” de fake news na América Latina nos últimos quatro anos, com manifestações em nada menos que 11 países –– da democracia neoliberal do Chile à ditadura esquerdista de Chávez. E descreve os efeitos desse mal: “O uso de fake news nas campanhas eleitorais é uma das raízes da desinformação e dos graves problemas que afetam a América Latina. As fake news são poderosas porque fazem com que os eleitores não saibam realmente em quem estão votando”. No caso do Brasil, não é exagero dizer que as fake news jogaram a política brasileira no mais baixo nível desde a redemocratização, nos anos 1980. Mais do que isso, flerta-se perigosamente com o retrocesso. Trinta e cinco anos após reconquistar direitos fundamentais como liberdade de expressão, eleições por voto direto, associação partidária, o país mergulha em um pântano nocivo à democracia e ao Estado de direito. Em 2020, linchamentos de reputações ocorrem em praça pública; dossiês são produzidos a fim de espionar supostos grupos “antifascistas”, sem justificativa penal ou ocorrência de crime; instituições que têm o dever de agir com transparência tentam manipular dados a fim de escamotear a realidade da pandemia; despeja-se dinheiro público em sites reconhecidamente engajados na disseminação de informações falsas.
A praga das fake news no Brasil tornou-se um problema complexo a resolver, com implicações nos poderes Judiciário e Legislativo e impacto relevante para a sociedade. A queda de braço entre o Supremo Tribunal Federal e as empresas administradoras de redes sociais tende a recrudescer e pode se tornar importante no debate mundial sobre a atuação política e a responsabilidade dos gigantes da tecnologia. Há ainda um intenso debate no Congresso, onde se busca encontrar limites para esse fenômeno poderoso da sociedade digital. Em um país onde a democracia ainda está em processo de consolidação, a desinformação sistematizada constitui um veneno político, um impeditivo ao avanço social, um obstáculo às enormes necessidades da nação. Forjadas no reino da mentira, fake news são uma ameaça real.
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