Real20anos

Em 20 anos de Plano Real, brasileiro muda hábitos de consumo

Ao mesmo tempo, população cobra eficiência do governo; apesar de tudo, carestia volta a ameaçar

Vicente Nunes
postado em 29/06/2014 07:00

Ao mesmo tempo, população cobra eficiência do governo; apesar de tudo, carestia volta a ameaçar

Nos últimos 20 anos, os brasileiros usufruíram de um bem imprescindível: a estabilidade de preços. Com o Plano Real, editado em 1994, e a derrota da hiperinflação, que havia tirado do país duas décadas de crescimento, puderam , enfim, planejar o futuro. Em vez da corrida aos supermercados, para fugir de uma inflação de 2% ao dia, passaram a comprar a casa própria financiada em até 35 anos. Em vez do medo de perder o emprego no dia seguinte, vêm contabilizando ganhos reais médios nos salários de 9% ao ano. Se, há 20 anos, muitos cidadãos se vangloriavam de, pela primeira vez, poderem tomar um iogurte, hoje os objetos de desejo de milhões são os smartphones e os tablets. Mais escolarizados e conscientes de seu poder, tomaram as ruas para exigir do governo serviços públicos melhores. Leia mais matérias sobre o especial Real 20 anos

Para mostrar essa transformação espetacular do Brasil nesse período, o Correio percorreu 14,5 mil quilômetros de Norte a Sul. Da mesma forma que, em 1994, acompanhou a chegada do real a São Gabriel da Cachoeira (AM), ao Chuí (RS), a Altamira (PA), a São Raimundo Nonato (PI) e a São Braz do Piauí (PI), então o município mais pobre do país, pôde traçar um retrato profundo da realidade brasileira, tão diversa quanto complexa, trabalho que será apresentado a partir de hoje em uma série de reportagens.

[VIDEO1]

Um ponto chama a atenção: independentemente da classe social e do nível de escolaridade, há uma insatisfação crescente com a disparada da inflação. É visível o reconhecimento de que, nos últimos anos, com o forte aumento do salário mínimo e dos programas de transferência de renda, a vida melhorou muito. O temor, no entanto, é de que parte das conquistas se esvaiam. Desde 2010, a inflação vem se mantendo, sistematicamente, acima de 6% ; o triplo na média mundial. ;Hoje, você pega uma nota de R$ 100 e não tem dificuldade para trocá-la. Está tudo muito caro;, resume o aposentado Francisco Amorim da Silva, 71 anos, morador de Medicilândia, situada a 90 km de Altamira.

Manobras

Não fossem as manobras do governo, ao conter os reajustes da conta de luz, dos combustíveis e das tarifas de ônibus, a carestia já estaria em 8% ou mais. Na média, os aumentos dos preços dos alimentos têm ficado acima de 10% ao ano, punindo os mais pobres. Os serviços sobem na mesma velocidade e prejudicam, sobretudo, a classe média. ;A inflação é perversa, desestrutura todo mundo;, diz Sandra Utsumi, diretora de Renda Fixa do Espírito Santo Investment Bank. ;É inacreditável que ainda hoje existam defensores da tese de que um pouco mais de inflação é aceitável como forma de ampliar o crescimento econômico e de facilitar a distribuição de renda;, ressalta.

Foi exatamente o que fez o governo nos últimos quatro anos. Ao adotar o que chamou de ;nova matriz econômica;, enfraqueceu o tripé que sustentou a estabilidade desde 1999 ; metas de inflação, câmbio flutuante e ajuste fiscal. O Banco Central passou a aceitar um custo de vida no limite da tolerância, de 6,5%. O Ministério da Fazenda forçou a mão na alta do dólar e, por tabela, abriu os cofres para incrementar o consumo, em vez de estimular os investimentos produtivos. A meta era colher mais crescimento econômico, mas o que se viu foi uma coleção de resultados pífios do Produto Interno Bruto (PIB). Há o risco de, no ano em que o Real completa 20 anos, o Brasil mergulhar na recessão.

;Esperava-se que, depois de duas décadas, o país estivesse discutindo outros problemas, e não o controle da inflação;, afirma Marcelo Salomon, economista-chefe para a América Latina do Banco Barclays. Para ele, a carestia, associada à política intervencionista do governo na economia, criou uma onda de desconfiança que travou o Brasil e acentuou as deficiências decorrentes da falta de reformas estruturais. ;O grande desafio do país, para que os próximos 20 anos sejam de prosperidade, é aumentar a produtividade da economia. E isso passa, inclusive, pela melhoria do sistema de educação;, acrescenta Júlio Gomes de Almeida, ex-secretário de Política Econômica da Fazenda.

É unânime a visão de que o Real é um plano inacabado. E que o Brasil está muito longe do descontrole inflacionário. Como lembra Gustavo Franco, ex-presidente do BC e um dos pais do mais longevo plano econômico brasileiro, antes de julho de 1994, em apenas um feriadão, a carestia passava de 4,5%, o equivalente ao centro da meta de inflação deste ano definida pelo Conselho Monetário Nacional (CMN). Nos 12 meses terminados em junho de 1994, a inflação acumulada foi de 6.433%. Dois anos depois, havia caído para 22,41% e, em 1998, para 1,7%, o menor índice da era do Real.

A constatação é cristalina: o Brasil mudou para melhor. Mas se realmente quiser tirar o pé do atraso, terá de enterrar qualquer complacência com a inflação. Estabilidade econômica não combina com ideologia.

Tags

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação