por Rafael Campos
A cadela Hanna, que estampa a capa da Revista, de apenas quatro meses e, até então, aparentemente sem dono, foi atropelada há dois meses, o que lhe rendeu como sequelas desde problemas na coluna até o rompimento do diafragma, um quadro considerado muito grave. Sobreviveu graças a duas intervenções. A primeira foi um gesto de solidariedade. A fila brasileiro foi salva pela advogada Luana Flores e por sua mãe, a funcionária pública Olga Flores. Donas de sete cães e nove gatos, as duas não pestanejaram em fazer de Hanna mais uma moradora do seu zoológico de animais domésticos, mesmo diante da delicada situação. Já a segunda intervenção foi feita pelos médicos do Hospital Veterinário da Universidade de Brasília (UnB), que fizeram um diagnóstico preciso. ;Já tínhamos levado Hanna a outros veterinários e eles diziam que não havia nada, mas ela não suportava ficar de pé;, revela Luana, que resolveu adotar a cadela ferida e abandonada pelo dono, apesar do grande risco de morte.
A história de Hanna resume bem o enredo de nossa reportagem de capa. Pessoas extremamente apaixonadas por bichos, normalmente muito solidárias, que se dedicam a salvar vidas ; de animais. E, nesse processo, é bem comum que acabem salvando também a si próprias ; conforme os relatos que colhemos ao acompanhar um dia de atendimento no hospital, um centro de ensino que se tornou referência no tratamento de animais domésticos. Fundado em 2001, ele dá suporte ao curso de medicina veterinária da UnB. ;É um hospital-escola para que os alunos possam praticar. O prédio em que estamos hoje era provisório, mas acabamos ficando por aqui;, explica a veterinária Christine Martins, diretora do hospital. Com uma média de 45 atendimentos diários, o local reúne uma seara de amantes dos animais e histórias emocionantes.
A chegada
Vozes alteradas, pessoas à beira de um ataque de nervos, com gatos e cachorros, às vezes até bem mais comportados que seus donos, ansiosos para que os bichos sejam atendidos. Os ânimos ficam exaltados sempre que as fichas de atendimento são distribuídas entre os madrugadores clientes do hospital, que atende por ordem de chegada, a partir das 8h. Todos ali acreditam que seu bichinho está mais doente que o outro e que merece ser atendido primeiro. Como em qualquer pronto-socorro, chegar primeiro não é garantia de atendimento imediato.
Após a distribuição das fichas, a bicharada espera no local, que há dois anos precisou ser ampliado para dar conta do dobro de atendimentos previstos inicialmente. Atualmente, há sete consultórios e uma sala de internações com capacidade para abrigar até 29 animais. A entrada não lembra a de outras clínicas veterinárias, até porque, antes de tudo, ele fica na universidade e há salas de aula em anexo. A placa de indicação com um grande ;Hospital Veterinário; talvez nem fosse necessária diante da aglomeração de cães e gatos.
O horário de pico é pela manhã. ;Já tivemos casos de donos que chegaram ainda na madrugada para serem atendidos primeiro;, lembra a diretora Christine Martins. À tarde, a situação fica mais calma, mas a greve dos servidores, que já dura três meses, diminuiu o movimento em todos os turnos. Houve cancelamento de cirurgias, pois até algodão chegou a faltar. Mesmo assim, o hospital continua funcionando. São oferecidos serviços de clínica médica, ortopedia, oncologia e oftalmologia, tanto para animais domésticos quanto para os silvestres domesticados.
As consultas tiveram de ser limitadas àquelas que eles classificam como emergência, na qual o animal corre risco de morte, e urgência, quando o bicho vai sobreviver, mas precisa de atendimento imediato. Com a paralisação, os veterinários têm que lidar com a voracidade dos donos na crença de que o problema de seus bichinhos é caso de emergência. A servidora pública Irisnei Andrade conforma-se em levar a pequena Nina, da raça basset hound, até um veterinário particular, apesar de justificar fortes dores na coluna do animal. ;Eles me explicaram a situação. Vai ser o jeito procurar um consultório particular.;
A prova de que a gravidade garante o atendimento veio no pequeno Tobias. O yorkshire de oito anos foi atacado por outro cão, que quebrou sua mandíbula e o obrigou a usar um colar cervical. A dona, a estudante Ana Cláudia Carneiro, o levava de volta ao atendimento, agora para uma cirurgia que retiraria a parte quebrada do cãozinho. ;Ele é tão dócil, não briga com ninguém. É como um filho e eu estou muito assustada.; A veterinária Luana de Aguiar Paz explica que todo o processo cirúrgico ocorre no hospital. ;Além disso, também faremos um eletrocardiograma e vamos monitorar a situação do Tobias.; Ela garante que o cachorro, mesmo sem mandíbula, vai continuar se alimentando normalmente.
De acordo com Christine Martins, a partir do ano que vem será implantada uma triagem social, que vai diminuir os problemas com a ordem de chegada. Todos os animais vão continuar sendo atendidos, porém, não só pela ordem de chegada: além dos casos de emergência, quem é mais carente será priorizado. ;Assim poderemos fazer um atendimento melhor. Por enquanto, temos que analisar caso a caso. Com a nova triagem, teremos uma assistente social para fazer isso;, acrescenta.
Ela afirma que os atendimentos são cobrados em decorrência dos materiais usados, mas que ninguém ali está buscando apenas dinheiro. ;Aqui é um hospital-escola e é preciso que os estudantes saiam daqui sabendo o que é correto. No primeiro dia de aula, sempre pergunto aos meus alunos: ;Qual o valor da vida que tratamos?;. Quero demonstrar a eles que tratamos de valores inestimáveis e, por isso, temos uma relação de muita confiança com os donos dos nossos pacientes.;
Além de cães e gatos
O Hospital Veterinário da UnB é dividido em duas unidades. A que trata de animais de grande porte, como bois, vacas, carneiros, ovelhas e porcos, funciona em uma instalação na Granja do Torto. Já a que cuida de animais domésticos fica no campus do Plano Piloto. Nela, porém, não são apenas gatos e cachorros que podem encontrar atendimento. Apesar da pequena demanda, há também o tratamento de animais silvestres.
De acordo com o professor Rafael Veríssimo Monteiro, responsável pelo setor no curso, o hospital recebe, principalmente, pássaros, como papagaios, curiós, periquitos e canários, quadrúpedes como hamsters, coelhos e chinchilas, além de répteis, como jabutis e mesmo cobras. ;A procura ainda não é grande, mas vem mudando. É bom que os donos saibam que o hospital oferece esse serviço, já que muitas vezes não conhecem os cuidados específicos para o bem-estar do bicho.;
Rafael afirma que a maioria da clientela, mesmo que pequena, é formada por criadores de pássaros, que transformam essa prática em um negócio rentável. ;Já atendi um trinca-ferro no Rio de Janeiro com valor zootécnico de R$ 30 mil, que foi trocado por um carro. Ao fim, as duas partes saíram satisfeitas;, lembra. ;Não duvido que em Brasília também existam animais que possuam valores parecidos;, arrisca. O professor ressalta que existe uma lista, estabelecida pelo Ibama, dos animais silvestres que podem ser criados como bichinhos de estimação, que deve ser analisada antes de colocar um deles numa gaiola.