Dentro de laboratórios, diante de microscópios e culturas celulares invisíveis a olho nu, cientistas de todo o mundo tentam quebrar a patente divina da criação da vida. Não, eles não querem ser deuses e dar origem ao ser humano. Mas estão ávidos para descobrir como as células funcionam e como elas se transformam em cada órgão e pedacinho do corpo. Buscam desvendar o surgimento das doenças e encontrar uma maneira de freá-las ou tratá-las.
Esse é o objetivo de um grupo numeroso de pesquisadores que se dedicam a decifrar a essência das células-tronco (CTs). As conhecidas células-mães são capazes de se transformar em qualquer tecido humano. Com o domínio sobre elas, os médicos falam na tal terapia celular, que permitiria substituir as células defeituosas por outras novinhas em folha. Bastaria reprogramá-las e pronto: elas dariam origem a outras saudáveis. Teoricamente, isso abriria um leque de opções para a cura das mais diversas doenças, tornaria possível reverter danos surgidos no percurso da vida ou até interromper o envelhecimento. Será?
Quando se fala em células-tronco, mistura-se o fascínio do controle sobre a natureza, a esperança e as dúvidas. Apesar do engajamento do mundo científico, ainda será preciso testar o comportamento dessas células em laboratório antes de ser uma realidade terapêutica. Muitos resultados já foram obtidos em animais de pequeno porte, mas a maior parte dos testes ainda não pode ser estendido para a espécie humana. Isso porque as células-tronco ainda não foram totalmente ;domadas; e, em alguns casos, podem causar danos se injetadas no corpo.
No entanto, o uso terapêutico das mesmas está mais próximo que se imagina. Os especialistas falam em um prazo entre cinco e 10 anos para que a terapia celular seja efetivamente aplicada em seres humanos e, assim, mudar a vida de muita gente que sofre com doenças graves e sem cura. Até lá, pode-se dizer que as pesquisas estão cada vez mais avançadas, em todas as áreas, inclusive com aplicações que apontam resultados de sucesso.
A Revista fez um levantamento nos laboratórios e universidades brasileiros para ter uma ideia do tamanho da promessa. A conclusão é que essas estruturas invisíveis serão usadas para tratar da calvície a problemas cardíacos. E o melhor: poderá acontecer em breve.
Quem convive com um mal limitante e sem cura não perde a esperança de que as estruturas que determinam a formação do organismo possam um dia proporcionar-lhes um nova vida. Incansável, Carolina Sanchez, 37 anos, participou de todos os debates para a liberação das pesquisas com células-tronco no país, há pelo menos seis anos, desde quando ainda se debatia no Congresso a aprovação da lei que determinava as regras dos estudos células embrionárias.
Ela fez questão de escancarar seu problema, exibir suas dificuldades e deixar claro que sua única chance seria um tratamento futuro com células-tronco embrionárias. ;Mesmo que eu não me beneficie disso, quem sabe outras pessoas no futuro poderão ter a cura para essa doença;, diz a moça. Ela sofre de ataxia, um problema que afeta a coordenação motora e o equilíbrio do paciente, fazendo com que aos poucos ele perca os movimentos, a fala, a independência.
Mas não a garra. Os primeiros sintomas apareceram quando Carolina tinha 11 anos. Ela faz fonoaudiologia desde os 20 anos para não perder de vez a fala, que fica comprometida por falta de força da musculatura da face. Também faz fisioterapia, ;para viver com mais qualidade;. Os cuidados de uma enfermeira, a cadeira motorizada, o apoio dos amigos e da família lhe permitem trabalhar, comandar uma equipe, se divertir e levar uma vida o menos limitada possível. ;Só sinto mesmo muita vontade de dançar;, diz, com os olhos marejados.
Quem também se emociona é Tânia Fonteles, 36 anos, ao falar da última vez que sua filha lhe acenou. A menina tinha 1 ano e alguns meses de vida. Foi quando a atrofia muscular começou a dar sinais. O diagnóstico era de que Maria Fernanda só viveria até os dois anos de idade. Contrariando a estatística, a menina completa sete anos de vida. Ela não movimenta nenhum membro do corpo. Não come e não respira sem ajuda de aparelhos. É monitorada por enfermeiros o dia inteiro. Só sorri e pisca os olhos para se comunicar.
Tânia comemora cada mudança de ritmo de respiração ou tentativa de expressão da filha. É sinal de que ela está entendendo o que se passa a sua volta. Seu sonho é que Fernanda possa viver mais e melhor. Por isso sempre foi ativa nas discussões de pesquisa com células-tronco. Participa de debates, congressos que mostram como os estudos poderiam ajudar a menina. ;Acho que não podemos desistir. Minha filha deu provas de que é guerreira;, afirma Tânia.
Na Universidade de Brasília (UnB), os esforços estão concentrados em descobrir como as células- tronco podem ser úteis nos tratamentos dentários. Uma equipe composta por mais de uma dezena de profissionais, se debruça para padronizar a obtenção das células-tronco da polpa dental e mutiplicá-las. ;Nós separamos as que têm características de células-tronco e uma enzima faz com que ela se transforme em tecido dental;, simplifica o geneticista Márcio Poças, chefe do Departamento de Genética e Morfologia, da Instituto de Ciências Biológicas da UnB e um dos responsáveis pela pesquisa e
O procedimento ainda está na fase laboratorial, in vitro. Segundo a cirurgiã-dentista Luciana Pereira, mestre em Biologia Molecular, o procedimento poderá proporcionar, por exemplo, a regeneração do dente sem implante. Seria o biodente, que já foi produzido em laboratórios ingleses. ;Trabalhamos com células de origem conjuntiva, que podem se transformar em osso, cartilagem, músculo, tecido adiposo. Poderemos assim evitar tratamento de canal e regenerar a polpa com células-tronco;, explica a dentista.
Doutora em microbiologia e professora do Departamento de Biologia Celular da Universidade de Brasília, Lenise Garcia esclarece algumas dúvidas comuns sobre o uso e pesquisa de células tronco.
Há quanto tempo se fala em uso da células tronco como esperança de cura de diversas doenças?
O primeiro uso foi há mais de 40 anos, com células-tronco de medula óssea para tratamento de leucemia e outras patologias sanguíneas. O uso em outras doenças vem sendo pesquisado há cerca de 20 anos.
Quais são os tratamentos já consolidados e com resultados comprovados?
Como tratamento consolidado temos o transplante de medula, com o uso das células do cordão umbilical. No caso de outras doenças, há muitos experimentos em fase final de teste clínico. Isso significa que muitos pacientes já foram curados, ou existe melhora, mas considera-se ainda em fase experimental, não estando disponível a todos. Também não se pode cobrar por esse tratamento. Listam-se as patologias cardíacas, acidente vascular cerebral, doenças degenerativas. Mais de 70 doenças estão sendo pesquisadas com o teste clínico das células-tronco, chamadas ;adultas; (em contraposição às embrionárias).
Quais as diferenças entre as diversas células-tronco presentes em nossos tecidos?
Temos células-tronco em todos os tecidos, por isso eles se regeneram. Costumo dizer que, se elas não existissem, seríamos cheios de buracos. São elas que atuam na permanente regeneração da nossa pele, do nosso sangue, que corrigem um osso quebrado ou um corte. Mas só recentemente desenvolvemos tecnologia para extraí-las, desenvolvê-las in vitro e utilizar para tratamentos específicos. As de medula e de cordão umbilical são as mais fáceis de obter. Sendo pluripotentes podem ser usadas em tratamentos diversos. Mas há casos que exigem mais especificidade, como as de retina, que já estão proporcionando tratamento de deficiências visuais.
Quais são as grandes promessas dos tratamentos com esses tipos de células? Todas as doenças, ou quase todas, poderão ser curadas com o uso delas?
São muito promissoras, mas não podemos generalizar tanto. Nem sempre há cura, muitas vezes apenas melhora. Doenças que envolvem degeneração celular são as que mais são objeto do tratamento com essas células. Também patologias em que houve grande perda celular, por exemplo por acidentes.
Quais são as maiores dificuldades e impedimentos de começar o uso de tratamentos e testes das células troncos em pacientes?
A dificuldade está em se ter o controle sobre o crescimento celular. Esse é o maior problema técnico com as células-tronco embrionárias, que nos experimentos em camundongo ou outros animais muitas vezes levam à formação de tumores. Por isso, até hoje, não existem testes clínicos com células-tronco embrionárias. A pluripotência dessas células, muitas vezes apresentada como vantagem, pode ser também um problema, pois a célula pode se transformar em uma diferente da que necessitamos. Ninguém deseja um dente crescendo no cérebro. Todos os tratamentos existentes e testes clínicos são com células-tronco adultas. Outra vantagem da célula adulta é que ela pode muitas vezes ser extraída do próprio paciente, evitando problemas de rejeição.
Quais são as técnicas, hoje conhecidas e pesquisadas, para usar uma célula-mãe e transformá-la em outros tecidos? Como elas seriam ;aplicadas; nas pessoas?
As técnicas são complexas, mas em geral podemos dizer que se usam fatores de crescimento e diferenciação. Ainda conhecemos pouco os fatores que agem naturalmente ao longo de todo o nosso desenvolvimento, à medida que forem sendo descobertos abrirão novas possibilidades.
Como você avalia o futuro do uso terapêutico das células-tronco?
Penso que as células-tronco adultas abrem inúmeras possibilidades. Como comentei de início, elas são responsáveis pelas regenerações naturais do organismo, e quanto mais entendermos esses fenômenos, mais poderemos amplificar o seu potencial. A grande promessa não está em ter ;uma célula para tudo;. Os antigos sonhavam com panaceias, o ;remédio para qualquer doença;, mas o desenvolvimento da farmácia e da medicina se deu com ;um remédio para cada coisa;, pois a especificidade é uma exigência da natureza e o efeito específico tem menos risco de provocar danos. Penso que a terapia celular seguirá os mesmos rumos, teremos uma gama muito diferenciada de tratamentos, a partir das diferentes células-tronco adultas existentes.