Revista

Em busca de si mesmo

Você já fez uma viagem que mudou a sua vida? Contamos as histórias de quatro pessoas, que escolheram roteiros distintos, mas tiveram resultados semelhantes: autoconhecimento, evolução espiritual e respeito ao próximo

postado em 16/08/2010 21:04

Um casamento, uma hepatite, 10 dias em absoluto silêncio, um filho. Uma cirurgia improvisada, fome, doenças curadas, barracas, extremos, vidas, mortes. Mil quilômetros a pé, muletas, lágrimas, superação. Fim do vício no álcool e nas drogas, solidão, florestas, chás alucinógenos, expansão da consciência. Em cada período descrito, um brevíssimo resumo do que, formalmente, quatro pessoas trouxeram na bagagem depois de uma grande viagem. Uma fisioterapeuta pela Índia, uma médico na África, uma empresária pela Europa e um analista de sistemas na floresta Amazônica. Experiências completamente distintas, porém análogas, já que os propósitos e os efeitos, no fim, foram os mesmos: em busca de aprendizado e de mudanças, eles encontraram um novo sentido para suas vidas e uma nova forma de enxergar o mundo.

Tantas histórias confirmam um fato: quem se aventura por uma jornada rumo ao desconhecido deve se preparar para todo o tipo de transformação. A única certeza é que, seja qual for o itinerário, lá, o viajante vai conhecer um pouco mais de si mesmo.


Fez silêncio na Índia
Lia Socha fez duas vezes o caminho de Santiago da Compostela. Só Deus sabe o que aprendi, diz.A intenção inicial era fazer uma viagem que trouxesse fluidez e harmonia para sua vida profissional e pessoal. Entrar em contato com um lado mais zen de si mesma, evoluir espiritualmente. A evolução aconteceu, mas os resultados foram, praticamente, opostos aos esperados. A viagem de quase um ano pela Índia e Tailândia renderam à Lisiane Queiroz, 34 anos, professora de ioga e fisioterapeuta, além de um casamento, um filho e uma hepatite, o conhecimento sobre o seu lado ;B;. ;Acho que voltei menos zen. Vivi momentos lindos, mas também outros tão complicados que acabei confrontando um lado meu que eu não conhecia. Um lado estressado, de fúria, de sombra;, relata.

Tudo começou quando um amigo lhe emprestou o livro O poder do agora, de Eckhart Tolle (GMT Editores). "Cuidado;, disse ele. ;Esse livro pode mudar a sua vida.; Lisiane leu o tal livro e, no mesmo dia, resolveu que precisava mudar. Largou o emprego, vendeu o carro e comprou uma passagem de ida para a Índia. No mesmo dia, conheceu Cristiano Gomes, 27. Apaixonaram-se e ele decidiu que iria com ela. Em menos de uma semana, Lisiane embarcou e, 36 horas depois, estava em Délhi. A sensação térmica era de 50;C. Chovia muito e a cidade lhe parecia suja e bagunçada. Na mesma noite, pegou um ônibus rumo a Rishikesh, onde faria alguns cursos de ioga com sua antiga instrutora.

Um engarrafamento gigante, por conta de uma passeata, atrasou sua chegada. Esperando no ônibus, os excessos já lhe saltavam aos olhos. Buzinas incessantes, o cheiro que os vendedores de incenso espelhavam pelas ruas, as vacas e bois que perambulavam junto aos carros e deixavam um forte cheiro de estrume no ar abafado. Macacos andando pelas ruas e roubando frutas dos feirantes, que gritavam indignados. Se, no início, tantos sons lhe soavam pertubadores, em pouco tempo eles já passavam despercebidos. Até que, alguns meses depois, o silêncio predominou.

O casal se inscreveu em uma vivência com monges budistas, na qual a lei era passar 10 dias em absoluto silêncio. Sem falar ou conversar, e meditando das quatro da manhã às dez da noite.Os quatro primeiros dias foram os mais difíceis, porque a sensação era a de revolta, de angústia. Passado o quinto dia, veio o conforto. ;Lembro que, no último dia, quando as pessoas já podiam falar umas com as outras, eu quis me resguardar. Peguei uma vassoura e fui para os fundos do terreno, para não ter que falar com ninguém. A gente percebe como nossa mente é turbulenta, e aprende a domá-la;, conta.

Depois da experiência, o casal foi a um vale magnético, assim chamado porque o chão é coberto por pedras-ímãs. A energia era especial, o lugar perfeito para trocar os votos de matrimônio. Em dezembro, viajaram para o sul do país. Lá, Lisiane descobriu que havia contraído as hepatites A, D e E. E esse foi exatamente o momento de maior transformação. ;Eu passava tão mal, tão mal, que não podia comer direito. Então, sentia muita fome. E a fome mexe com seus sentimentos, com sua cabeça. Acumulei tanta raiva e frustração nesse período da doença que não me reconhecia;, detalha.

Quando ela começou a melhorar, quis dar um tempo da Índia. O casal foi para a Tailândia. ;Por lá tudo era lindo. As praias eram paradisíacas e a Lisi realmente melhorou;, conta Cristiano. De volta a Índia, ela começou a enjoar com o cheiro do estrume, ao qual já se considerava bem acostumada. Estava grávida. No dia seguinte ao diagnóstico, voltou para o Brasil com o Cristiano. E por aqui estão até hoje. Bem casados, com o filho Clariel, de quase 2 anos, carimbos novos no passaporte, muitas histórias para contar e uma nova consciência. ;Me sinto mais aterrada, enraizada no mundo. Hoje me conheço muito melhor. Tanto meu lado bom, quanto meu lado péssimo;, diverte-se.

A força de uma peregrinação

Depois de uma imersão nos rituais amazônicos, Luis deixou pra trás a vida que levava. Junto com a  mulher, Sônia, fundou uma associaçãoOs quilômetros finais do caminho de Santiago de Compostela, na Espanha, já haviam sido vencidos cinco anos antes. Dessa vez, a experiência era outra. Apoiada em duas muletas, Lia Socha, de 55 anos, mal podia pisar o pé esquerdo no chão. A dor de cada passo irradiava pelas pernas e costas. Sem reclamar uma única vez , Lia pôs na cabeça que não importava como, chegaria ao final. Quando completou o último trecho ; cerca de 100km ; entrou na igreja para assistir à missa.

Levantou-se e foi comungar. Quando se virou para voltar ao seu assento, as pessoas (quase todas peregrinas) estavam de pé. Emocionadas, foram uma a uma cumprimentá-la e parabenizá-la. Foi a primeira vez que chorou durante os 33 dias de uma dura viagem.
;Não reclamei em nenhum momento das bolhas enormes que se formavam no pé ou da dor que eu sentia no calcanhar. Não chorei por isso. Para mim, essa é uma experiência de felicidade, independentemente da dor. Mas as pessoas foram tão calorosas comigo. A igreja estava especialmente bonita, com os botafumeiros acessos. Foi um dos momentos que mais me emocionaram na vida;, conta.

O gosto por caminhadas vem da infância, quando morava em Uruaçu (GO). Jovem, imaginava que um dia conheceria todo o mundo. E gostava de sair andando sem rumo. Para ela, ir da Octogonal até Sobradinho, num domingo de manhã, é normal. Uma ;voltinha;, como gosta de dizer. Um dia, alguém lhe contou sobre uma viagem rumo a Galícia espanhola, na qual peregrinos de todo o mundo e de todas as idades percorriam o caminho de quase 1000km que um dia o apóstolo de Jesus, São Tiago (ou Santiago), supostamente, teria percorrido. A história ficou martelando em sua cabeça. Católica praticante e amante de longas caminhadas e viagens incríveis, a ideia lhe parecia perfeita.

Em 2005, decidiu que tinha que percorrer o caminho. Entrou na internet para pesquisar e lá mesmo comprou uma mochila para trilhas e a abasteceu com uma botina feita com o mesmo material dos pneus de aviões, um casaco corta-vento, um gorro, luvas especiais, um cachecol, uma segunda pele, meias especiais, duas camisetas de mangas curtas, duas de mangas longas e duas bermudas. Um chapéu, protetor solar, duas mudas de roupa íntima e um saco de dormir. Além de alguns remedinhos. Era tudo o que ela levaria para os quase 40 dias de viagem. Convidou uma amiga ; o marido não gosta de bater perna ; e, juntas, embarcaram para a França, principal ponto de partida da peregrinação. De albergue em albergue, caminhavam de 9km a 42km em um único dia. A amiga desistiu no 10; dia. ;A viagem não era para ela.;

Lia continuou. ; O caminho é um convite ao pensamento, ao autoconhecimento. Lembro de me ver completamente sozinha no meio de uma floresta. Só eu, Deus e uma mochila. Você fica temeroso, mas se controla e segue em frente. Controla seus sentimentos. De medo, de dor. É uma busca interior muito grande. Nunca senti a presença de Deus tão forte, tão interna. É mais um esforço mental do que físico;, descreve. Quando o normal é completar o percurso em 33 ou 34 dias, Lia completou em 30. A experiência foi tão compensadora que ela quis voltar mais uma vez, agora como agradecimento pelo que vivera durante a primeira caminhada.

No começo desse ano, Lia partiu para a França novamente, agora na companhia de outra amiga. O percurso era o mesmo, no entanto, a experiência foi completamente diferente. Em vez de albergues, hotéis confortáveis. Era inverno, a paisagem e as dificuldades eram novas. O chão criava uma camada de gelo e ficava escorregadio. Havia muita lama. Em pouco tempo, Lia sentiu as diferenças no corpo. O calcanhar começou a inchar e a ficar dolorido, o que a forçava a usar mais a outra perna, criando bolhas no pé pelo esforço extra. ;As pessoas me viam mancando no caminho e me ofereciam carona no carro. Imploravam para que eu aceitasse. Encarava aquilo como uma tentação e fui focada a terminar o caminho, independentemente da dor que sentia;, descreve. ;Não me arrependo. Não troco essa viagem por nenhuma outra. Só Deus sabe o que aprendi lá. Era para acontecer isso. Era para mim. Um aprendizado onde descobri uma força interna enorme;, revela. Nos novos planos, estão diversas outras viagens de peregrinação. No Brasil e no mundo. ;Não posso mais parar.;

Veja galeria de fotos de Lia

A cura da floresta
Lisiane Queiroz, com o marido, Cristiano: experiência na Índia fez dela uma pessoa melhorLuis Pereira, 44 anos, não precisou sair do Brasil para ter a viagem de sua vida. A experiência que viveu em plena floresta Amazônica foi uma jornada espiritual sem volta e sem precedentes. Um encontro com o seu destino, com o fim de um vazio existencial e de uma vida imersa no álcool e nas drogas. Em 1986, depois de passar o Natal completamente isolado do mundo, encarando um período complicado de sua juventude, recebeu a indicação de um amigo. ;Cara, vai para Rondônia para um encontro que está tendo lá no meio da floresta amazônica. Vai mudar sua vida, você vai ver.;

O amigo lhe entregou um número de telefone anotado em um papel. ;Ligue para esse camarada quando chegar lá.; De Londrina, Luis entrou em um ônibus e, sem saber ao certo o que lhe esperava, passou dois longos dias na estrada. ;Só a experiência de atravessar o país já mexeu comigo. Tudo se transformava. A paisagem, a cultura, as pessoas. Pensei tantas vezes em desistir e voltar para Londrina no caminho. Mas alguma coisa me dizia que eu tinha que ir para lá;, conta.

Quando o ônibus chegou na estação rodoviária de Porto Velho, Luis tirou do bolso o pedaço de papel com o número de telefone e, de um orelhão, fez a ligação: ;Oi. Meu amigo me pediu que eu lhe telefonasse; Vim de Londrina e;;. ;Opa, estou indo aí agora te pegar, não se preocupa.; Em alguns minutos, um cara simpático chegou de carro para lhe buscar. Na casa, umas quatro dezenas de pessoas estavam espalhadas por todos os lados. Algumas dormindo em redes, outras tocando violão e a maioria rindo e jogando conversa fora. ;Tinha uma energia muito especial ali. Me senti bem-vindo. Foi uma sensação muito boa;, relata.

No dia seguinte, um caminhão chegou para buscar o grupo. Deixou todo mundo na beira da estrada e, lá, eles se embrenharam floresta adentro. Chegaram na beira do rio Madeira, onde pegaram uma balsa até o outro lado. Seguiram uma trilha na floresta, no meio da noite, rumo a uma chácara que ficava na divisa com o Amazonas. No meio do caminho, Luis podia ouvir zabumbas e violas. ;Estava ansioso, na expectativa. Chegamos lá e vimos um barracão enorme, um forró tocando, pessoas animadas e sorridentes dançando, com um brilho diferente no olhar. Logo na entrada, tinham sete panelas enormes, dessas de 100 litros, fervendo nas fornalhas.;
As panelas estavam cheias de água, cipós e folhas. Cada pessoa que chegava recebia uma caneca com o chá fumegante ; o famoso Santo Daime ou Ayahuasca ; como um cumprimento de boas vindas. ;Uma experiência de expansão da consciência, de integração com a natureza. É inexplicável. Você não fica doidão, como gostam de dizer por aí, você fica com os sentidos aguçados, mais presente no momento, com o raciocínio mais aguçado. É um processo de cura espiritual a partir da medicina que vem da floresta;, descreve. Os dias seguiram e Luis se envolvia cada vez mais com as atividade do grupo União do Vegetal. Explorava a floresta em busca de lenha caída e lá, só, no meio das imensas Samaúnas, aprendeu a dimensionar os problemas de outra forma. ;Quando você se conecta com a energia do planeta, ganha um novo ânimo. Reconcilia-se consigo mesmo. Lá, tive a consciência de que nada mais seria igual. Minha vida havia mudado para sempre;, analisa.
De volta à Londrina, começou a trabalhar como analista de sistemas, ficou noivo e se casou. Juntos, Luis e sua mulher Sônia Batista, 44, iam até a floresta, para o mesmo barracão onde esteve em 1986, duas vezes por ano, para os eventos do grupo União do Vegetal. Em 1996, o casal chegou a se mudar para lá. Desde então, já moraram em várias cidades do país. Fundaram a Associação Beneficente Universo Místico, livre de doutrinas e dogmas. ;Não imagino minha vida hoje se não tivesse feito aquela viagem;, acredita. ;Acho que seria um analista completamente infeliz e estressado. Tenho momentos ruins também, como qualquer pessoa, mas a capacidade de superação é imensa. É muito importante trabalhar o lado espiritual, acho que o mundo precisa enxergar isso. Todo mundo merece uma viagem transformadora como essa;, reflete.

Tags

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação