Alguns autores atraem pela complexidade da história, outros pela sensibilidade, ou mesmo pela genialidade da narrativa. O escritor português Eça de Queirós, por exemplo, contava com todas essas qualidades. Mas suas obras tinham a estranha proeza de prender certos leitores pelo estômago. Isso porque os livros de Eça são de um prazer sensorial. Para serem ;comidos; com os olhos, tamanha quantidade de referências gastronômicas detalhadas à exaustão em obras como Os Maias, O primo Basílio, O crime do Padre Amaro... Ele descrevia não só o menu dos banquetes ; estima-se que em suas publicações ele mencione algo em torno de 600 jantares, 200 almoços e inúmeras ceias ;, como a textura das carnes, a aparência dos doces, o aroma da fumaça dos pães, o sabor do vinhos. Ao ponto de deixar o leitor salivando com os imaginários e deliciosos detalhes. Ele não foi o primeiro, tampouco o último a usar dos ingredientes da gastronomia para dar o tempero à literatura. Jorge Amado costumava dizer que a literatura alimenta o espírito e a alma, e a cozinha alimenta os personagens, afinal, ;personagem também come; ; justificando a constância do tema nos mais importantes clássicos brasileiros e mundiais.
No entanto, a contragosto da máxima gastronômica que diz que a ordem dos fatores altera, sim, o produto, essa receita é constantemente invertida. Com um pouco de ficção, a literatura culinária também ganha novos sabores. As publicitárias e cozinheiras italianas Chiara Guarnerio, Silvia Scalzi e Roberta Spagnoli usaram ambas as receitas e lançaram o livro Não é verdade que tudo acaba em pizza. Entre 11 contos e tentadoras receitas da cozinha italiana, o livro, que ganhou o prêmio Bancarella della cucina italiana e vai virar peça de teatro em Milão, assume essa dupla função do entretenimento e das descrições de tradicionalíssimos pratos. Afinal, se personagem também come, não esqueçamos que, da mesma forma, os gourmets da vida real também leem. Em passagem por Brasília para divulgar a nova empreitada, Chiara, Silvia e Roberta deram uma entrevista à coluna.
Segundo as autoras, ao escrever o livro, a intenção era falar das emoções da vida por meio da linguagem e dos mecanismos da arte culinária. ;Nesse sentido, os dois universos encontram-se e completam-se um com o outro. No livro, a literatura serve para contar a gastronomia, e vice-versa. Nós entendemos que as emoções e sentimentos passam tanto pelo estômago, quanto pelo coração;, afirmam. O romance Madeleine, de Marcel Proust, foi uma das grandes inspirações para se aventurarem nessa fusão. ;Os sabores fazem tornar à mente emoções que desencadeiam uma série de recordações.; A partir daí, elas explicam, nasceram as histórias que transcreveram.
Mas diferentemente da maioria do livros que ora apenas citam um delicioso banquete, ora descrevem o passo a passo das receitas, as italianas decidiram deixar a tarefa de quem quer cozinhar um pouco mais difícil e prazerosa. Não basta apenas abrir a página da receita desejada e aplicá-la na cozinha. Lá, elas estão deliciosamente descritas no decorrer do conto. Enquanto se lê a história, você mal percebe que acaba de aprender a fazer uma torta de cebola, ou um coelho a caçador, entre outras iguarias. O leitor vai juntando esses pedaços soltos e imersos em histórias leves e divertidas, e construindo a receita. As bebidas não são esquecidas. Licores e vinhos dão a harmonia final para essa fusão de letras e sabores.
Leia um conto do livro
Receitas
Coelho a caçador
Ingredientes
1 coelho fresco em pedaços
4 dentes de alho
1 cebola
3 folhas de louro
Alecrim
Sálvia
Alguns bagos de zimbro
1 pedacinho de gengibre
1 xícara de azeitonas pretas
1/2 copo de óleo
1 copo de vinho branco seco
Vinagre
Sal
Modo de fazer
Com água e vinagre, esfregue cada pedaço da carne de coelho, até que fique branca e elástica.
Imediatamente, jogue o coelho em uma frigideira alta, folgada, acompanhado de um raminho de alecrim, três folhas de sálvia, dois dentes de alho e três folhas de louro.
Esquente a mistura até que a carne fique enxuta.
Reserve a carne e os temperos em uma vasilha, lave bem a panela e a encha de novo com os ingredientes.
Triture um pouco de alecrim, alho, sálvia e cebola, e regue essa mistura com um azeite de boa qualidade e junte à carne na frigideira.
Quando as fibras da carne recuperarem a cor, acrescente o vinho branco, deixe cozinhar em fogo baixo por uma hora.
Rendimento: 6 pessoas
Tempo de preparo: 2 horas
Torta de cebola
Ingredientes
Massa folhada
200g de farinha de trigo
200g de manteiga
1 copo de vinho branco seco
Sal
Recheio
1kg de cebolas brancas
15g de manteiga
3 ovos
1 lata de creme de leite
1 colher de sopa de farinha
Pimenta-do-reino
Sal
Como fazer
Corte as cebolas e as jogue em uma panela, com 15g de manteiga, cozinhando em fogo baixo e com a tampa da panela fechada, por mais ou menos uma hora.
Enquanto as cebolas cozinham, prepare a massa folhada. Em uma tábua, una a manteiga (deve estar mole), a farinha e um copo de vinho branco.
Misture até a massa ficar homogênea e comece a abri-la com um rolo de madeira, com vigor, em forma de retângulo.
Dobre a massa como um livro e a deixe descansar por meia hora.
Estenda novamente a massa e adicione sobre ela manteiga mole. Dobre-a novamente e coloque na geladeira. Repita o ritual por seis vezes, alternando o lado da dobra.
Por fim, estenda a massa na forma e faça pequenos buraquinhos com a ajuda de um garfo.
Bata ligeiramente três ovos com uma lata de creme de leite, um pouco de sal e uma boa quantidade de pimenta-do-reino triturada.
Junte a mistura com as cebolas cozidas e já frias, com a ajuda de uma colher de sopa.
Jogue o recheio na forma forrada com a massa e leve ao fogo quente (180;C) por 45 minutos.
Rendimento: 6 pessoas
Tempo de preparo: 2 horas