Um dia desses, a médica ginecologista Ilza Maria Santos Queiroz, 54 anos, chegou no posto de saúde da Asa Sul, onde trabalha, e foi surpreendida por uma paciente que lhe sondou sobre uma vaga de emprego. ;Se eu soubesse que a senhora ainda estava vindo atender, teria trazido meu currículo.; Em tese, Ilza não tem poder de nomear ou demitir pessoas na Secretaria de Saúde. É funcionária como outra qualquer. Mas desde 31 de outubro, quando Agnelo Queiroz (PT) foi eleito governador, Ilza tornou-se primeira-dama, mulher de quem a partir de janeiro assumirá o controle de todo o organograma do Distrito Federal, uma máquina com 120 mil funcionários. Casada com Agnelo há quase três décadas, Ilza se deu conta de que terá de abrir mão da profissão a que se dedicou por uma vida para apoiar o marido. Pela primeira vez, em 26 anos de serviço na rede pública de Saúde da capital federal, Ilza vai se licenciar. Sai da função de médica para a de esposa do governador.
O que poderia caber nos sonhos de qualquer mulher não se encaixa nos planos dessa baiana, nascida em Salvador. Ela parece pouco à vontade diante da badalação que cerca o poder. De aparência discreta ; não tem costume de se maquiar, usa as unhas curtas e prefere o tênis aos saltos ; e hábitos simples, como os almoços em família e o cinema com o marido, Ilza insinua que dificilmente será vista cercada por dondocas e socialites. Vai se adaptar à liturgia do cargo a seu modo. E, pelo jeito, faz parte de sua personalidade a vocação para o serviço. ;Não é do meu perfil ficar parada, indo para o salão, as festinhas, o chazinho. Me vejo fazendo alguma coisa;, ressalta a futura primeira-dama. Ela deve assumir algum cargo na área social do governo. Provavelmente, para tratar de política para idosos, tema que lhe apetece.
Em entrevista exclusiva ao Correio, concedida na casa onde mora, no Setor de Mansões Dom Bosco, com Agnelo e os dois filhos, Fernanda e Guilherme, Ilza Maria fez um diagnóstico da saúde no DF com o olhar treinado de quem conhece as entranhas do sistema público. Durante 15 anos, a mulher do futuro governador atuou como médica no Hospital do Gama e, nos últimos 11 anos, atende no posto de saúde da 612 Sul. ;Já dei plantão no Gama numa época em que não tinha remédio para estancar o sangramento das parturientes, então a gente colocava bolsa de gelo;, diz a ginecologista, que acompanha, em média, 12 gestantes por dia. Como outros médicos que prestam serviço para o GDF, ela se sente desvalorizada. ;Os advogados que trabalham na área jurídica da Secretaria de Saúde ganham mais que o médico;, compara. Uma das distorções que espera ver resolvidas pelas mãos do marido. Leia os melhores trechos da conversa.
Como a senhora e Agnelo se conheceram?
Na maternidade. Eu estava no sexto ano de medicina, no último período, quando a gente define a especialidade que quer fazer, e ele estava no quinto ano. Eu era interna e ele quintonista. Acabamos dando plantão juntos.
Por que vieram para Brasília?
Quando me formei, fiz a residência na Universidade Federal da Bahia e Agnelo fez a prova em Brasília. Ele se apaixonou pelo Hospital de Base e voltou para Salvador falando só nisso. Naquela época, aqui tinha muito movimento, muito paciente, tudo era descartável. Ficamos encantados pela excelência da rede.
Onde foi o primeiro trabalho da senhora como médica na capital da República?
Cheguei aqui em 1984 e passei quase um ano sem trabalhar. Como não conhecia a cidade e Agnelo trabalhava 60 horas por semana, ficava muito tempo em casa, sozinha. Aproveitei para estudar. Fiz o concurso para a secretaria no fim de 1984 e, em fevereiro de 1985, me chamaram para o Hospital do Gama.
Como era a rotina da senhora nessa época?
A gente morava num quarto e sala da 103 Sul, que ficava mais próximo ao Hospital de Base. Todo dia, eu pegava o ônibus e ia para o Gama. Eram 45 minutos de viagem. Dava expediente de quatro horas, de segunda a sábado. Passei 15 anos lá. Depois, acabei pedindo remoção por causa de um problema de saúde.
Que problema?
Uma endocrinopatia crônica. Para me cuidar, fui lotada perto de casa, no Centro de Saúde da Asa Sul.
A senhora nunca pensou em abrir o próprio consultório?
Nunca tive vontade. Quando a gente estuda, ninguém ensina a montar nosso consultório, a cobrar das pessoas. Essa questão é difícil para mim. Infelizmente, medicina é nível superior, como é o direito, e a valorização é diferente. A pessoa que escolhe o direito é bem mais valorizada. Dentro da própria secretaria o salário de um advogado que atua na área jurídica é maior do que o do médico.
Com acesso privilegiado ao governador, vai tentar convencê-lo a dar aumento para os médicos?
Essa é uma bandeira de Agnelo. Quando viemos para Brasília, ele já era engajado. Acho que o salário é ruim, mas o que incomoda muito mais é a falta de condições de trabalho. Já dei plantão no Gama numa época que não tinha remédio para estancar o sangramento das pacientes, então a gente colocava bolsa de gelo. Já tive que fazer receituário nas costas de pedido de exame. Pouco antes da campanha deste ano, eu mesma ia no setor de farmácias e comprava escovinha para fazer o exame preventivo nas pacientes.
Agora que seu marido se tornou governador, o que pretende fazer?
Essa questão é complicada, porque já sinto as mudanças agora. Várias pacientes achavam que eu não estava mais no posto de saúde por conta da eleição de Agnelo. Agora, quando me encontram, falam: ;Ah, se eu soubesse que a senhora ainda estava aqui, teria trazido o meu currículo;. Isso é porque eu nem falava que era mulher do Agnelo, imagina se falasse? É complicado continuar trabalhando. Mas sem trabalhar eu não posso ficar, porque não é do meu perfil ficar parada, indo para o salão, as festinha, o chazinho. Me vejo fazendo alguma coisa.
No governo?
Sempre fui médica, sempre atendi. Sabe quando você está assim, sem saber? Particularmente, sou muito preocupada com a questão do idoso. Essa questão da secretaria, se vai ser na parte da saúde ou no social, ainda não defini. Provavelmente, vou atuar em algum lugar, mas ainda tenho de conversar com Agnelo.
Qual o principal problema do idoso hoje no DF?
A solidão. Eles têm filhos, netos, mas essas pessoas vivem juntas por obrigação. É muito triste.
Já pensou em entrar para a política?
Sou filiada ao PCdoB desde que Agnelo se filiou. Sem política não se resolve nada. No meu caso, me filiei na década de 1980 para tirar o partido da clandestinidade. A gente fazia reuniões escondidas. Na época, eu era tesoureira, chefona mesmo, cobrava doações. Quando minha filha nasceu, deixei a vida partidária.
E em casa, quem cuida das finanças?
Gosto de ficar na retaguarda, essas coisas da casa eu resolvo. Quem está na política não tem tempo.
Como é seu estilo, econômico ou esbanjador?
Supereconômico.
Chega a ser mão fechada?
Dizem que sou prática e lógica. As pessoas costumam comprar as coisas porque são bonitinhas. Eu não. Pergunto logo qual é a função. Sou do tipo que na loja peço desconto à vista ou pago no cartão. Só não divido o supermercado, porque penso: ;Vou comer isso daqui a uma semana e continuar pagando?;
A senhora cozinha?
Cozinho, sempre gostei.
Qual a especialidade?
Agnelo diz que é moqueca de peixe baiana.
A senhora;
Por favor, me chame de você. Senhora está no céu.
Por falar nisso, pratica alguma religião?
Como todo nordestino, somos batizados, cristãos, casei na igreja, mas hoje não frequento uma religião específica. Tenho visão mais ampla da religião, como uma coisa espiritual.
Você é vaidosa?
Mais ou menos. Gosto de andar na minha moda. Raramente me pinto e as unhas estão sempre curtas por causa das pacientes. Vou trabalhar confortável, de tênis, jeans e camiseta.
A liturgia do cargo de primeira-dama vai lhe obrigar a mudar o guarda-roupa?
Não vou mudar meu estilo, mas não posso ir de calça jeans e tênis a todos os lugares. Continuarei comprando minhas roupas nas lojas que sempre gostei. Aliás, detesto shopping, compro roupas para mim de quatro em quatro anos.
O que gosta de fazer quando não está trabalhando?
Faço aula de tênis, pilates e gosto de andar. Conquistei essa independência para fazer o que eu gosto depois que meus filhos cresceram, entraram na faculdade e começaram a dirigir. Antes, eu era ;mãetorista;. Gosto de cinema, mas tenho ido pouco porque, às vezes, Agnelo combina e nem sempre dá certo.
Como ginecologista, recomenda cesária ou parto normal?
O melhor parto é o normal. Meus dois filhos nasceram de parto normal porque é melhor para o bebê e para a mulher, que se recupera mais rápido. Eles mamaram no peito até quase dois anos. A cesária só deve ser feita com indicação médica, quando o bebê é muito grande ou há alguma patologia.