Sofia Maurer tem quatro anos e está em uma fase na qual vestidos são as únicas roupas que existem. Ama a cor rosa e não aceita nada que tenha azul pelo meio, taxando que é "coisa de menino". Adora brincar ao ar livre, usando estampas florais. Recatada, não sorri facilmente para a câmera quando chega a hora de tirar fotos e abraça a mãe, a autônoma Kalina Mauer, 29, enquanto caminha pelas quadras próximas à sua casa.
Vitor Martins Carvalho Marzagão tem três anos. Enquanto sua mãe, a estudante Camila Martins Carvalho Rodrigues, 24, visita a amiga Kalina, ele tem que se virar para encontrar diversão em uma casa de meninas. Ao mesmo tempo em que desmonta um brinquedo, segura um cavaquinho e decide tocar. Em seguida, corre pela casa, sempre falador. Apesar das limitações da idade, quer experimentar de tudo e é sempre incentivado pela mãe, seja para subir nas árvores ou imitar um super-herói.
A descrição dos dois, provavelmente, está no esperado pelo senso comum. A garota, mais comportada. O garoto, mais aventureiro. Entretanto, esses comportamentos díspares vão além dos traços genéticos compartilhados pelos diferentes gêneros. A educação dispensada a cada um dos sexos ainda é visivelmente distinta e, como as mães sentem-se mais responsáveis pelo crescimento dos pequenos, são elas quem acabam reforçando certos estereótipos da criação de meninos e meninas.
Uma pesquisa realiza pelo site NetMums.com, um dos maiores portais ingleses de orientação familiar, constatou, por meio de respostas das próprias internautas, que as mães são mais críticas com o comportamento das filhas que dos filhos. De acordo com as respostas, 21% das mães admitiram que são mais duras com as meninas, contra apenas 11,5% das que disseram o mesmo em relação aos garotos. Além disso, 22% delas afirmaram fazer vista grossa a certos atos de seus filhos.
"Acho que sim, as mães são mais críticas com as garotas. Tudo porque queremos que as filhas tenham os gostos parecidos com os nossos", garante Kalina Mauer, que, além de Sofia, é mãe de Luana, 12, e Beatriz, um ano e oito meses. Mesmo a cultura ocidental, com seu histórico de muitos sutiãs queimados na luta por igualdade de direitos, ainda repete diversos vícios que mantêm a distância entre o masculino e o feminino.
De acordo com a psicóloga Iolete Ribeiro, doutora em Psicologia e Comportamento Humano pela Universidade de Brasília (UnB), a reprodução dos conceitos machistas ocorre sem a percepção das mães, que veem na proteção maior às suas meninas uma forma de preservá-las. "Porém, as meninas estão se tornando mais questionadoras, com uma percepção mais aguçada dessas diferenças. Por isso, muitas delas, com sete ou oito anos, já exigem uma autonomia que vá além do gênero", frisa. Esse poder questionador ajuda a quebrar barreiras, mas ainda não limita o fato de que os rapazes são criados de forma mais livre.
"Os pais estimulam a ousadia dos meninos e acentuam a proteção das meninas, provavelmente para protegê-las desses mesmos meninos que eles criaram ousados e viris", analisa a psicanalista Cíntia Xavier de Albuquerque, membro da Associação Internacional de Psicanálise (IPA). A especialista frisa que não se pode deixar apenas a cargo da mãe a responsabilidade pelo maior criticismo com as garotas. A complexidade das relações entre pais e filhos exige incluir toda a história envolvida na formação daquele núcleo familiar na educação da prole. "Há uma mistura de fatores culturais e emocionais inegáveis nessas relações. Sempre houve uma maior permissividade para o homem, em várias culturas, tanto ocidentais quanto orientais. Os meninos são muito estimulados a se arriscarem, o que deixa os pais vaidosos."
A vaidade diante do rebento masculino, que surge por meio das aventuras na infância e vários relacionamentos na adolescência, cria um mundo no qual as meninas devem se manter mais comportadas e - mais que isso - a impressão de que os pais quem devem cobrar isso delas. "Eu me importo mais com as roupas que elas usam, sempre quis que andassem bem arrumadas. Já com meu filho, não reclamo%u201D, compara a consultora Cláudia Brito Bagano de Lima, mãe de Felipe, 14, e das gêmeas Andrea e Adriana, 11. Ela conta que sempre foi muito apegada com o garoto, algo que foi mudando com o início da adolescência. "Agora, ele é bem mais reservado. As meninas são mais amigas da mãe nessa fase", acredita.
A psicanalista Cíntia Xavier de Albuquerque explica que o primeiro amor de um bebê sempre é a mãe. No caso dos meninos, esse amor perdura durante a infância, fazendo com que ele se espelhe no pai como modelo para obter a exclusividade do amor da mãe. De acordo com ela, a dificuldade que muitos pais têm, hoje, de dizer não aos filhos se reflete no comportamento deles. Por essa característica de apego dos meninos às mães, pode ser mais difícil para elas impor autoridade e negar as vontades deles, especialmente com a chegada da adolescência, fase em que há uma certa ruptura na dependência do amor materno. "Olha o quanto é complexo: esse amor do filho pela mãe a abastece. Pode ficar difícil uma mãe dizer não para um menino porque ela também sente - mesmo que não tenha consciência disso - que está sob ameaça de perder aquele amor imenso."
Camila Martins Carvalho Rodrigues não acha que é hora de ficar imaginando as futuras namoradas de Vitor, nem mesmo que ele vá crescer. "A avó dele mora em Londres e sempre fala que, quando ele crescer, vai passar um tempo com ela. Eu rio, mas não consigo me imaginar longe dele." Ela lembra que jamais pensou em ser mãe de uma mulher, motivada em grande parte pela forma com que seu irmão era educado. As meninas, apesar de partilharem o mesmo amor dos filhos homens, findam, muitas vezes, sendo barradas pelo desejo das mães de projetarem nelas todas as vontades que não puderam ser realizadas.
Leia a íntegra desta matéria na edição 295 da Revista do Correio