Ricardo Eliécer Neftalí Reyes Basoalto era uma amante das belezas. Sob o pseudônimo que adotou ainda na adolescência e com o qual se tornou conhecido, o poeta chileno Pablo Neruda não exibia seu talento apenas sobre o papel. Entre muros de tijolos e chãos de madeira, escadas tortuosas e amplas janelas, ele também destilava arte no preciosismo da decoração de suas casas. Tão originais e complexas quanto sua personalidade e obra, as casas de Neruda ; hoje transformadas em museus ; são atração não só pelo valor histórico e cultural, mas também pela curiosa paixão evidenciada em cada canto guarnecido de trecos. Neruda se autodefinia um ;coisista;. Colecionava coisas e as usava para adornar seus lares. De obras de Niemeyer a souvenirs de viagens, bonecas, conchas e pedras. ;Em minha casa tive brinquedos pequenos e grandes, sem os quais eu não poderia viver. Edifiquei minha casa como um brinquedo e brinco nela da manhã à noite;, dizia o poeta. A conexão da decoração com a brincadeira e com a própria infância de Neruda era tão íntima que os cômodos, de fato, entretiam os visitantes. Mas, ainda que divertidas e repletas de objetos, as casas eram intimistas, simples e extremamente aconchegantes.
A primeira das casas-museus é a Isla Negra (Neruda dava nomes a elas). A cerca de 100km da capital chilena, Isla Negra foi construída no final da década de 1930 em um lugar sossegado e inspirador onde Neruda esparava ;escrever em paz;. Com a ajuda do arquiteto espanhol Germán Rodríguez Arias, o poeta foi erguendo seu refúgio literário. ;A casa estava crescendo, como pessoas, como árvores;;, disse em um poema da época. Concebida no formato de vagões de trem ; uma homenagem ao pai, que era ferroviário ;, Isla Negra é o mais bem preservado dos lares nerudianos, uma vez que não foi saqueado durante a ditadura. O local ainda guarda fielmente todas as coleções do poeta: miniaturas de navios, esculturas, garrafas, máscaras, sapatos antigos e cachimbos. Foi lá que ele foi enterrado, ao lado de sua última esposa, Matilde Urrutia.
A história da segunda casa, batizada de La Chascona (algo como ;a descabelada;), é peculiar. Neruda, apaixonado por Matilde, ainda era casado com Delia del Carril. Em uma tarde de sol, passeando pelo bairro boêmio Bellavista com a então amante, encontraram uma propriedade à venda bem abaixo do monte San Cristobal. Apaixonaram-se pelo lugar e o compraram. Em 1953 Matilde se mudou para a casa, onde viveu sozinha até 1955, quando Neruda finalmente se separou de Delia. A casa foi desenhada pelo mesmo arquiteto da Isla Negra, mas dessa vez estrutura evocava o interior de um navio.
La Chascona foi ponto de encontro da nata intelectual do período (Picasso, Jorge Amado e Vinicius de Moraes eram frequentadores), que virava noites bebendo vinhos chilenos nos bares da casa. A sala de estar, adornada por uma imensa pintura do muralista mexicano Diego Riveira na qual Matilde é retratada como uma mulher de duas cabeças, ainda mantém boa parte do seu acervo. Grandes copos coloridos (Neruda dizia que eles realçavam os sabores das bebidas), uma cortina de tons terra com estampa geométrica ; bem anos 1960 ;, cadeiras de couro, uma lareira de pedras, relógios e enfeites de todas as sortes. O teto era baixo e as portas, arredondadas. As diversas escadas eram estreitas, de modo a reforçar a impressão de que se estava dentro de uma acolhedora embarcação. Tudo ali foi minuciosamente elaborado pelo poeta.
A fixação por barcos persistiu na elaboração de sua terceira casa, La Sebastiana, na cidade portuária de Valparaíso ; escolhida por Neruda para fugir do ;cansaço que lhe provocava Santiago;. Em 1959, o poeta soube de uma casa que havia sido erguida em formato de gaiola pelo espanhol Sebastian Collao, que morreu durante a construção. Quando Neruda foi visitar a obra abandonada, apaixonou-se pela ;forma boba como foi construída;. Como achou a residência muito grande, resolveu dividi-la com a escultora Marie Martner e seu marido, Francisco Velasco. O casal ficou com os dois primeiros pavimentos e Neruda com os três últimos e mais privilegiados: de lá, tinha-se uma vista deslumbrante da cidade e do Oceano Pacífico.
O nome La Sebastiana era uma homenagem ao seu idealizador e a casa, como não poderia deixar de ser, também foi palco de diversos encontros e reuniões regadas a muita bebida. As festas aconteciam na sala de estar, que ocupava todo o terceiro andar da casa: o cômodo guarda a mesa de jantar, ornamentada com porcelanas coloridas, a poltrona que Neruda batizou de ;nuvem;, um cavalo de madeira talhada que pertenceu a um carrossel, uma lareira de formas arredondadas e até mesmo um grande pássaro vermelho empalhado.
No último andar da casa está o escritório, com muitos livros, um enorme mapa do mundo, diversos enfeites que remetem à Marinha e até mesmo uma pia falsa pregada à parede, apenas como enfeite ; reforçando a importância que a estética tinha, antes mesmo da funcionalidade. Francisco Velasco conta que após a morte do poeta, chegou em casa e os vizinhos pareciam agitados. Diziam que um pássaro havia invadido a casa. Velasco subiu as escadas e encontrou uma grande águia na sala de estar. Ele abriu a janela (curiosamente, tudo estava fechado) e lembrou-se que Neruda sempre dizia que se houvesse outra vida após sua morte, gostaria de voltar como uma águia. A história virou lenda, mas uma coisa é fato: até hoje as águias sobrevoam gentilmente a colorida Sebastiana. É o tipo de casa que todo mundo se sente à vontade: do turista curioso à alma, literalmente, penada.
Por aqui, a Revista encontrou alguns itens decorativos parecidos com aqueles vistos nas casas do poeta. Inspire-se:
Plenos poderes
De Pablo Neruda. Tradução de Luís Pignatelli, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1962, p.73.
Eu construí a casa.
Primeiramente fi-la de ar.
Depois hasteei a bandeira
e deixei-a pendurada
no firmamento, na estrela,
na claridade e na escuridão.
Cimento, ferro, vidro,
eram a fábula,
valiam mais que o trigo e como o ouro,
era preciso procurar e vender,
e assim um camião chegou:
desceram sacos e mais sacos,
a torre fincou-se na terra dura ; mas isto não basta, disse o construtor,
falta cimento, vidro, ferro, portas ;
e nessa noite não dormi.
Mas crescia,
cresciam as janelas
e com pouca coisa,
projetando, trabalhando,
arremetendo-lhe com o joelho e o ombro
cresceria até ficar completada,
até poder olhar pela janela,
e parecia que com tanto saco
poderia ter teto e subir
e agarrar-se, por fim, à bandeira
que suspensa do céu agitava ainda as suas cores.
Dediquei-me às portas mais baratas,
às que morreram
e foram arrancadas das suas casas,
portas sem parede, rachadas,
amontoadas nas demolições,
portas já sem memória,
sem recordação de chave, e disse: ;Vinde
a mim, portas perdidas:
dar-vos-ei casa e parede
e mão que bate,
oscilareis de novo abrindo a alma,
velareis o sono de Matilde
com as vossas asas que voaram tanto.;
Então a pintura
chegou também lambendo as paredes,
vestiu-as de azul-celeste e cor-de-rosa
para que se pusessem a bailar.
Assim a torre baila,
cantam as escadas e as portas,
sobe a casa até tocar o mastro,
mas o dinheiro falta: faltam pregos,
faltam aldrabas, fechaduras, mármore.
Contudo, a casa
vai subindo
e algo acontece, um latejo
circula nas suas artérias:
é talvez um serrote que navega
como um peixe na água dos sonhos
ou um martelo que pica
como um pérfido pica-pau
as tábuas do pinhal que pisaremos.
Algo acontece e a vida continua.
A casa cresce e fala,
aguenta-se nos pés,
tem roupa pendurada num andaime,
e como pelo mar a primavera
nadando como uma ninfa marinha
beija a areia de Valparaíso,
não se pense mais: esta é a casa:
tudo o que lhe falta será azul,
agora só precisa de florir.
E isso é trabalho da Primavera.