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A dor como companheira

Desconhecimento, preconceito e um sofrimento terrível acompanham os pacientes de fibromialgia, doença que acomete sobretudo as mulheres. Demora do diagnóstico pode chegar a sete anos

postado em 27/05/2011 16:20

A média é de 29 meses de convivência intermitente com as dores musculares até que se procure ajuda médica. Do primeiro contato com o profissional de saúde até o diagnóstico correto, são mais cinco anos de espera e peregrinação em diversos especialistas. Num limbo de desinformações, agravado pelos contornos etéreis da fibromialgia, milhares de pessoas são assombradas por uma doença que, durante quase sete anos de suas vidas, não tem nome, não deixa escaras visíveis ou marcas que confirmem seu poder de devastação. Não bastasse a dor, o tempo desvela o preconceito gerado quando as únicas provas são olhos cansados, empregos perdidos, relacionamentos afetados e a própria identidade despedaçada, em busca de uma explicação. Os dados, coletados pela pesquisa Fibromialgia: além da dor, realizada pelo laboratório Pfizer, com médicos e pacientes do Brasil, México e Venezuela, confirmam o que cerca de 84% dos especialistas em dor e 98% dos fibromiálgicos já sabem: a fibromialgia ainda é um enigma para a sociedade.

Depois de uma década sentindo dores inexplicáveis, Analice recebeu o diagnóstico de fibromialgiaAnalice Amarrilho, 37 anos, é um caso clássico desse quadro de espera. Desde criança, sente dores difusas pelo corpo, que eram diagnosticadas como dores do crescimento. O problema piorou com a morte do pai, aos 17 anos. Tratado como uma ;estranha enxaqueca; pelos médicos, o dilema de Analice era visto como depressão ou mesmo frescura pelos parentes e amigos. ;Em 2000, me mudei para Belém e as dores aumentaram assustadoramente. É uma dor que caminha pelo corpo. Algo que só quem tem a doença pode entender. Em 2001, finalmente recebi o diagnóstico e comecei a me tratar;, relata Analice. O tratamento da doença, ainda paliativo, nunca foi suficiente para cessar as crises de dor. ;Continuei sentindo muitas dores, e sempre lutando para que elas não mudassem minha rotina. Mas em alguns dias eu tinha que tomar muitos analgésicos. Em 2007, parei de trabalhar. Meus reumatologistas dizem que numa escala de dor de 1 para 10, eu sou 11, tamanha sensibilidade que sinto. Tem dias que mal consigo passar o sabonete no corpo ou pentear o cabelo;, confessa.

Ainda que amparada por uma série de medicamentos, Analice segue a vida com dor. Mesmo com o crescente interesse da classe médica, em especial da indústria farmacêutica, que viu o potencial de lucro da fribromialgia, por se tratar de uma doença crônica, ainda não existem tratamentos indefectíveis, tampouco explicações definitivas para o problema. São milhões de dólares investidos em pesquisas ao redor do mundo. ;O que sabemos é que é uma disfunção do sistema de percepção da dor, que causa uma hipersensibilidade no paciente. Mas ainda não existem dados mais concretos. E olha que os sintomas foram descritos ainda no começo do século 20. Ou seja, essa não é uma doença da vida moderna. Outro exemplo disso é que 7,3% dos amishes (grupo religioso cristão conhecido que recria o modo de vida rural do século 17) têm fibromialgia, mesmo tendo um estilo de vida nada urbano;, explica o médico reumatologista Eduardo Paiva, chefe do ambulatório de reumatologia do Hospital das Clínicas da Universidade Federal do Paraná. A Revista conversou com médicos e pacientes para entender por que, afinal, essa é uma doença tão complexa e tão incompreendida.

A coluna partida, 1944
Desconhecimento, preconceito e um sofrimento terrível acompanham os pacientes de fibromialgia, doença que acomete sobretudo as mulheres. Demora do diagnóstico pode chegar a sete anosDiversos artigos de médicos americanos descrevem a artista mexicana Frida Kahlo (1907-1954) como um caso clássico de fibromialgia pós-traumática. Esta pintura ao lado, um autorretrato da pintora sintetiza sua luta. Após o terrível acidente de ônibus que sofreu aos 18 anos, no qual teve graves traumas na coluna, perna e bacia, Frida padeceu de dor crônica e fadiga pelo resto da vida. No diário da pintora, um desenho dela chorando, com 11 flechas atravessadas em seu corpo, assinalam pontos anatômicos. Muitos deles mantiveram-se, depois, como os pontos fulcrais de dor da fibromialgia.

Um equívoco atrás do outro
O interesse pela elucidação do diagnóstico da fibromialgia surgiu em 1987, quando o médico Frederick Wolfe, então diretor do Arthritis Research Center Foundation, em Wichita, Kansas, Estados Unidos, percebeu as crescentes queixas de pacientes com dores musculares difusas, que não tinham nenhuma ligação com quaisquer patologias musculares conhecidas. Dr. Wolfe reuniu-se então com outros 20 reumatologistas americanos e, juntos, definiram, pela primeira vez, os critérios de diagnóstico ; prontamente acatados pelo Colégio Americano de Reumatologia. Em 1990, a doença finalmente entrou para o léxico médico. O diagnóstico é simples. O médico deve pressionar, firmemente, 18 pontos específicos do corpo do paciente. Se for relatada dor em pelo menos 11 desses 18 pontos, é confirmada a fibromialgia.

Onze anos depois, porém, a classe médica ainda diverge quanto à sindrome. Há vertentes que acreditam que a causa seja uma disfunção neuronal, outras que ligam a doença à depressão e à insatisfação pessoal. Alguns afirmam que o problema é puramente muscular. Em entrevista à Revista, Jacob Teitelbaum, médico diretor do Fribomyalgia and Fatigue Centers, nos Estados Unidos, afirma que a pior concepção que se tem da doença é que ela é desencadeada por um fator psicológico. ;Esse tipo de engano ocorreu muitas vezes no passado com outras doenças que acometem principalmente as mulheres. Por exemplo, esclerose múltipla costumava ser chamado de ;paralisia histérica; e lúpus era considerada uma forma de neurose por muitos médicos. A fibromialgia passou por um processo semelhante;, relata.

Segundo Teitelbaum, a maioria dos pesquisadores e centros acadêmicos reconhecem que a fibromialgia é uma doença real, física e devastadora. ;Infelizmente, muitos médicos ainda têm a crença ultrapassada de que a fibromialgia é uma desordem psicológica. Esse é um equívoco abusivo e incapacitante para o paciente;, alerta.

Para Nortin Hadller, reumatologista e professor de microbiologia e imunologia da Universidade da Carolina do Norte, nos Estados Unidos, esse é um assunto extremamente delicado. ;Fibromialgia é uma afirmação de incerteza. A patogênese dessa doença é intimamente associada com a busca de sua causa. Pessoas com dor generalizada persistente precisam entender isso quando ;escolhem; ser pacientes e médicos precisam aprender isso para diminuir a nocividade do processo. Essa não é uma doença psicobiológica. Claro, a ausência de prova de uma causa não é prova de ausência. Talvez não haja nenhuma anormalidade biológica;, aponta.

;A esses pacientes, em busca desesperada por um rótulo que seja aceitável para a sociedade em geral e os seus agentes de credibilidade ; a mídia, a indústria de seguros e a indústria farmacêutica ; digo que a fibromialgia é um símbolo do processo de diagnóstico equivocado;, completa. Ao Correio, Nortin disse que esse é um assunto tão delicado quanto perigoso. ;Seria necessário um ensaio para explicar as confusões que surgem quando se toca nesse tema.;

Conexão com a emoção
De acordo com Jacob Teitelbaum, praticamente todas as doenças têm uma combinação de componentes físicos e emocionais. Por exemplo, os ataques cardíacos são mais comuns em pessoas hostis. Mas isso não torna o ataque cardíaco uma doença emocional. ;Quando reconhecermos que a tentativa de separar os componentes físicos e emocionais de uma doença é como tentar separar a cabeça e a cauda de uma moeda, os pacientes receberão atendimento muito melhor;, diz. O médico reumatologista Eduardo Paiva completa: ;É impossível separar uma coisa da outra, até porque não existe dor sem emoção;.

Quando, onde e por quê?
Desconhecimento, preconceito e um sofrimento terrível acompanham os pacientes de fibromialgia, doença que acomete sobretudo as mulheres. Demora do diagnóstico pode chegar a sete anosPara entender o processo da fibromialgia, segundo Jacob Teitelbaum, médico diretor do Fribomyalgia and Fatigue Centers, é preciso pensar nela como uma crise ;energética;, na qual os esforços colocados sobre o corpo humano destroem sua capacidade de produzir energia suficiente para que se mantenha em pleno funcionamento. Em essência, é semelhante ao que ocorre na nossa casa se sobrecarregarmos o circuito elétrico, queimando um fusível ou acionando um disjuntor. Nesse caso, o disjuntor é o principal centro de controle do cérebro, o hipotálamo. Essa área controla o sono, a função hormonal, a sudorese e a pressão arterial. ;Além disso, a energia inadequada resulta em músculos bloqueados na posição encurtada (músculos são como uma mola, requerem mais energia para relaxar do que para contrair). Isso resulta em dor crônica, cuja consequência é a amplificação do sinal de dor no cérebro (chamado de ;sensibilização central;);, exemplifica o médico.

Essa crise de energia pode ser causada por ; literalmente ; dezenas de tensões. ;Existem vários gatilhos. Tem pessoas que começam com dores localizadas, outros começam a sentir a dor de uma vez, no corpo todo. Alguns casos são desencadeados após um trauma físico, como um acidente ou uma cirurgia, ou mesmo um trauma psicológico que gerou grande tensão;, explica o reumatologista Eduardo Paiva. Os gatilhos podem ser infecções, deficiências hormonais (por exemplo, a causada por hipotireoidismo), distúrbios do sono (apneia, por exemplo, ou síndrome das pernas inquietas), deficiências nutricionais, relacionamentos estressantes, lesões e até a gravidez. Ou seja, assim como existem inúmeras maneiras de fundir um disjuntor na própria casa, há inúmeras maneiras de fazê-lo em seu corpo também.

Mulheres sofrem mais
Dados do estudo da Associação Internacional para o Estudo da Dor apontam que 4% da população mundial sofre de fibromialgia. Desses, pelo menos 80% são do sexo feminino. ;Isso é comum para muitas doenças autoimunes e outras doenças que afetam a função imunológica, como a artrite reumatoide e o lúpus. A disfunção imune é uma parte importante da fibromialgia;, resume o médico Jacob Teitelbaum. Segundo a fisiatra Ana Paola, integrante da Sociedade Brasileira para o Estudo da Dor, a predominância se dá entre mulheres brancas, na faixa etária de 35 a 54 anos. ;Vale ressaltar que também pode existir um componente genético para a fibromialgia. Familiares de fibromiálgicos têm oito vezes mais chances de desenvolver a síndrome;, ressalta Ana Paola.

A administradora Branca Neves, 48 anos, se encaixa no padrão da doença. Em 2005, começou a sentir fortes dores no joelho. Por recomendação do ortopedista, começou a fazer sessões de fisioterapia. Mas as dores começaram a se espalhar por sua coluna. ;Passei um ano indo para a emergência de hospitais, com dores nas pernas e na coluna. Não conseguia compreender a razão de me acometer de tantas dores generalizadas, idas ao ortopedista, neurologista e outros ;istas; da vida. Tomava medicamentos fortes, que melhoravam as dores, mas que deixavam minha mente absolutamente confusa e sem condições de desempenhar atividades de raciocínio no trabalho ou mesmo de dirigir;, conta. Aos poucos, Branca começou a se isolar dos amigos, familiares e, quando não estava no trabalho, estava deitada em sua cama.

;Doía todo o corpo. Enxaquecas, insônia, formigamentos nas extremidades, depressão, ganho de peso. Parecia um zumbi. Não conseguia nem fazer as atividades de casa. Estender uma roupa, ou mesmo cozinhar;, testemunha. Numa dessas crises, o ortopedista fez o teste dos 18 pontos, e a encaminhou ao reumatologista, com o pré-diagnóstico de fibromialgia. Na mesma semana, Branca foi a uma palestra sobre fibromialgia que aconteceria em Brasília. Foi a partir dos relatos que ouviu na palestra que repensou a importância de dividir os problemas com seus amigos e familiares ; até então, nem mesmo a filha sabia ao certo o que estava acontecendo. ;Não tinha coragem de falar para a minha família. Eu era uma ;fortaleza; e essa doença não tem evidências visíveis. Ficar reclamando sem causa aparente era complicado.; Após a confissão, a vida de Branca ficou mais leve. Teve total apoio da filha e começou uma série de tratamentos alternativos. ;Há um ano não sofro fortes crise, apesar da dor estar sempre presente. Aprendi a conviver com ela.;

Nem sexo, nem idade
A publicitária Daniela Lambach não faz parte da maioria fibromiálgica que teve o problema com mais de 35 anos. O diagnóstico que confirmou a doença se deu quando tinha apenas 19 anos, após um ;episódio muito forte de estresse;. Tão desafiador quanto a própria doença, era mediar a dor com a energia da juventude. ;Sinceramente, é muito chato ser tão jovem e viver assim. Não posso ficar sem a medicação e sem os exercícios físicos. Sem contar que as pessoas que não conhecem a fibromialgia sempre te chamam de fresca. O lado positivo é que como preciso fazer exercícios físicos no mínimo três vezes por semana. Para aliviar os sintomas, mantenho sempre o corpo malhado.; Brincadeiras à parte, quando entra em crise, as dores chegam em um nível quase insuportável. ;Quando ela aparece entro em desespero e choro. É muito intensa. É como se alguém estivesse brincando de atravessar agulhas pelo meu corpo, e isso não é exagero;, confidencia.

Tal qual Daniela, Thiago Prado, de 24 anos, também representa outra minoria da doença: o sexo masculino. Desde criança reclamava de dores no corpo. Aos 14 anos, a família dele procurou ajuda médica, mas recebeu o diagnóstico de febre reumática. ;Eu sentia muitas dores nas juntas, dor nos músculos, desânimo e dificuldade de concentração no colégio. Aos 21 anos, após uma crise muito forte, passei por uma bateria de exames e fui ao reumatologista, que diagnosticou fibromialgia;, relata. A adaptação ao tratamento medicamentoso não foi positiva, e Thiago vivia melhor sem o remédio ; aprendeu a conviver com a dor. ;Durante a maior crise, foi quando eu mais amadureci. A doença não só te faz sofrer, mas também te faz enxergar o mundo de uma outra forma. Eu acabo vivendo como duas pessoas, o que tem e o que não tem fibromialgia. O estado emocional da pessoa conta muito;, revela.

Caminho alternativo
Cari, 50 anos, recorreu a magnetoterapia e a um colchão especial: melhora de 80% nas doresFoi após a cesariana realizada no nascimento do segundo filho, que a bancária Carin R;pke, 50 anos, percebeu que algo muito ruim ocorria em seu corpo e, consequentemente, com sua mente. Sua rotina de trabalho era das mais puxadas. Chegava a ficar até 12 horas resolvendo problemas no banco. Quando voltou da licença maternidade ao trabalho, começou a sentir pequenas fisgadas dolorosas nas bochechas. Em alguns dias, a dor passou a ser extremamente forte, e já tensionava todo o seu rosto. ;Toda hora eu ia para os ambulatórios, tomar injeção contra a dor, porque nenhum analgésico funcionava. Era muito sofrimento. Meu corpo todo doía muito e eu não tinha força nem para pentear meu cabelo. Ainda mais terrível era saber que todos achavam que eu fazia encenações para chamar atenção;, lembra.

Carin fez baterias de exames, e nada era diagnosticado. Depois de um ano tratando as dores com antiinflamatórios e relaxantes musculares, seu médico disse que talvez ela fosse vítima de uma doença nova, chamada fibromialgia. ;Me mandaram para a homeopatia, para a medicina ortomolecular, e mesmo que as dores melhorassem um pouco, eu ainda sofria muito. Não dormia nada bem. Era um martírio. Lembro de um dos momentos mais difíceis, quando minha filha pequenininha veio me abraçar forte e a minha vontade, em vez de curtir aquele momento, era de chorar de dor;, relata.

A vida de Carin começou a melhorar depois que, por indicação de um amigo, começou a fazer magnetoterapia, com o uso de um colchão especial. ;O colchão têm pequenos ímãs e infravermelhos longos. Eles têm ação anti-inflamatória reconhecida pela OMS (e também pela Food and Drug Administration) e aquela foi a primeira vez que eu dormi a noite inteira, depois de muito tempo;, conta. Segundo a bancária, a magnetoterapia unida a um colchão mais rígido, que alinhou sua coluna, melhorou a oxigenação do cérebro e as dores melhoraram em quase 80%. ;Me senti melhor, comecei a hidroterapia e a fisioterapia e raramente tenho crises;, comemora. Hoje, Carin ganha a vida revendendo os tais colchões e outros artigos para fibromiálgicos e pacientes de dor crônica. ;Quero ajudá-los assim como fui ajudada.;

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