Revista

Orquestra de anônimos

Acompanhamos um campeonato de cantores amadores e descobrimos um pouco do que rola nas casas de videokê, geralmente instaladas em subsolos e cheias de histórias para contar

postado em 10/06/2011 15:03

Maria Fernanda Seixas, Rafael Campos
Carolina Samorano e Gláucia Chaves // especiais para o Correio

Às 21h, os sócios Paulo di Paula e Adriana Mesquita começam a se movimentar pelo salão do bar e videokê Cantar & Cantar, no setor de oficinas da W3 Norte. Roberto Schiavinato, também sócio do local, desce com pressa os 14 degraus da escada que dá acesso ao subsolo. Visivelmente ansiosos, esperam que o cantor da vez acabe sua apresentação para dar início, pontualmente, à semifinal masculina do campeonato brasiliense de videokê. As 20 mesas distribuídas no salão comportam os competidores e suas respectivas torcidas. Além do título de melhor cantor amador do ano, eles estão de olho no prêmio: uma viagem para o Rio de Janeiro e uma foto colada no enorme quadro fixo que decora os fundos do ambiente. Sob as letras em serifa corrida que dizem Cantar & Cantar In Concert, estão os rostos dos 21 melhores colocados.

Paulo di Paula assume o microfone e pede silêncio, sendo prontamente atendido pelos 40 e poucos presentes. Após explicar as regras da competição, chama ao palco o primeiro cantor anônimo. O público aplaude e mocinhas mais ouriçadas assobiam. Sentada à mesa, a namorada do rapaz não se abala: o assédio faz parte dos cinco minutos de fama ; ou menos, se a música não for das mais longas. O DJ o apresenta. No telão que fica acima do palco, a ausência das tradicionais fotografias que acompanham a letra das músicas (em geral simpáticos yorkshires, aviões prestes a decolar e vasos de flores) indica que o cantor optou por um playback. Com a música devidamente decorada, Thiago Antunes desafina poucas vezes. A voz grave e suave entoa o refrão de How you remind me, sucesso de 2001 da banda canadense Nickelback. Ninguém pode cantar junto. A regra é clara e relembrada a cada frequente deslize do público: silêncio absoluto durante as apresentações.

O personal trainer Cláudio Maia é cantor amador nas noites de videokê: sonho de ter sua foto no mural dos campeõesQualquer um pode se inscrever no concurso, mas só os que cantam realmente bem sobreviverão às eliminatórias. Na semifinal, os cantores passam pelo crivo de um júri formado por três músicos, que observam os quesitos técnicos da apresentação. A lista de critérios é longa: voz, ritmo, musicalidade, afinação, interpretação e postura no palco. Há ainda uma segunda etapa dessa semifinal, quando, em avaliação popular, quatro jurados sem conhecimento musical escolhem seus preferidos. Na última e mais difícil fase, os participantes precisam agradar um júri com três maestros.

O segundo a subir ao palco é Cláudio Maia, personal trainer de dia, e cantor amador na noite dos videokês brasilienses. É a segunda vez que ele participa do campeonato. Sentado com o grupo mais animado do bar ; onde está a maioria dos competidores ;, Cláudio jura que não leva aquilo muito a sério. Mas passa horas em casa, em frente ao computador, baixando playbacks novos para o repertório. Apesar de ser afeito às novidades, optou por um clássico do videokê: Kissing a fool, de George Michael. Ele interpreta, floreia, cerra os pulsos e fecha os olhos no refrão. Ao fim da apresentação, os demais competidores batem palmas desconfiados ; Cláudio é um competidor forte.

Se, para alguns, ganhar a competição é um alento à frustração de não terem seguido uma carreira musical, para outros, os momentos em que o palco baixinho parece um estádio lotado já compensam o engravatado dia a dia. Primeiro lugar em 2010, Thiago Antunes, 21 anos, acredita que ia longe caso participasse do Ídolos, programa brasileiro que descobre talentos da música. Porém, trocou a ovação dos fãs pelo Vade Mecum, no curso de direito da Universidade de Brasília. Dado à música desde quando cantarolava Ilariê pela sala de casa e participava de corais em igrejas evangélicas, hoje, o estudante se transforma no palco: olhos pintados com delineador, roupas coladas e muita atitude pop. Tudo ao som de Lady Gaga, Ivete Sangalo e Toni Braxton. Ele é um bom retrato de quem se torna viciado no cantarolar amador: antes a desatenção do público do bar que os percalços da vida de um aspirante à artista.

O karaokê
Não é à toa que nomes japoneses e casais com ascendência nipônica aparecerão ao longo do texto. Foi no país que o karaokê surgiu, mais especificamente na cidade de Kobe. A palavra é a junção de duas outras: ;kara;, que vem de karappo e quer dizer ;vazio; e ;oke;, que se escreve ;okesutura; e significa ;orquesta;. O criador foi Daisuke Inoue, que não patenteou a invenção e, pena, não pôde colher os louros dos cantores solitários.

Casados com a música
Apaixonado por karaokês, o casal Alice Tsurue e Minoru Yamashita chegou a ter a sua própria casaO campeonato segue. Quem vai ao palco agora é o simpático psicólogo e corretor de seguros André x, xx anos. Conhecido como o cliente número um da casa, só ele tem direito a pendurar as despesas mensais de até R$ 500 ; a despeito do cartaz da recepção que proíbe conta fiada. O rapaz segue a tradição particular de escolher músicas animadas para o campeonato, fugindo dos tradicionais temas melosos e românticos. No ano passado, André não passou da eliminatórias. Uma saia justa segundo os donos do bar, uma vez que ele é o cliente mais lucrativo da casa. Aconselhado por colegas de videokê, André treinou exaustivamente a música Olhar 43, do RPM, para garantir a vaga nas semifinais deste ano. Supostamente, sua voz casa bem com o timbre de Paulo Ricardo. André também ficou conhecido por levar novos clientes à casa. Amigos, colegas de trabalho e até pretendentes a namorada ; os primeiros encontros são sempre no videokê. A adaptação delas ao programa é decisiva para que o relacionamento vingue. Quando não, é na própria balada cantante que ele fisga as parceiras.

No campeonato, existe apenas um caso de marido e mulher concorrendo como dupla, mesmo sendo comum ver casais de namorado improvisando duetos. Em meados de 1999, uma reunião de amigos depois do trabalho mudou a vida de Alice Tsurue Yamashita, hoje com 56 anos, e do marido, Milton Minoru Yamashita, 57 anos. A convite de uma amiga, conheceram o mundo dos cantores de fim de expediente e não pararam mais. Na época, relembram a bancária e o analista de sistemas aposentado, não havia as facilidades dos videokês modernos. Hoje em dia, é possível acompanhar a letra já no ritmo da música, graças ao direcionamento do aparelho. A ;novidade; ajuda, mas Milton confessa que sente saudade dos bons e velhos tempos em que era preciso ter memória boa para decorar as letras e treinar a melodia até acertar o tempo.

A dupla gosta tanto de cantar que resolveu abrir o próprio estabelecimento do gênero, batizado de Esconderijo, na 114 Norte. Lá, os clientes tinham um tratamento especial. Após escolherem a música, os donos ajustavam a melodia para o tom de voz certo de cada um ; mimo chamado de ;tocar;, na linguagem do karaokê. A preocupação se justificava pela grande quantidade de artistas que se apresentavam em bares e casas noturnas da cidade, já que o local era perfeito para testar a reação do público às mudanças no repertório. A casa fechou há três anos por problemas financeiros. Mas o projeto de manter um local para pessoas que realmente gostam de cantar ficou em modo de espera.

Lúcio Brasil participou da final do ano passado, mas foi desclassificado por tentar baixar as calças diante dos juradosA semifinal do Cantar & Cantar continua. O DJ chama ao palco o quarto cantor. Quem coloca o talento à prova agora é o empresário Lúcio Brasil, apostando que Me and Mrs. Jones, de Michael Bublé, lhe dará o título e a foto no cartaz. No ano passado, Lúcio chegou a se apresentar na final, mas, depois de alguns copos de uísque, acabou desclassificado por tentar baixar as calças diante dos jurados no palco ; história que ele conta aos risos, como quem acha graça de si mesmo. Com blazer preto e camiseta vinho, o cantor de 37 anos traz a relação com os karaokês de vidas passadas, segundo jura. Tem na ponta da língua uma lista de antigos estabelecimentos que abriram e fecharam as portas desde 1989, ano em que entrou pela primeira vez em um deles. Era a Furosato, no Venâncio 3000, que, como o nome denuncia, pertencia a um japonês saudoso das tradições de seu país. Na época, quem quisesse se arriscar no palco amador se virava com as letras escritas em uma folha de papel e com as músicas gravadas em fita K7.

Enquanto conta as peripécias vividas em karaokês passados, cumprimenta os colegas que cercam a mesa, provoca, de brincadeira, os rivais de logo mais e trata com intimidade de cliente fiel os garçons e os donos do lugar. Lúcio é figura fácil por ali, logo dá para perceber. Dos anos 1990 coleciona, além das histórias de noitadas, algumas namoradas. Ainda faz sucesso, garante. Um dos amores de karaokê lhe rendeu o único filho, hoje com 11 anos. O menino frequentou durante a primeira infância os videokês da cidade, mas há tempos não prestigia o pai. Lúcio, inclusive, achou que o menino iria vê-lo naquela semifinal.

Um lugar para ser feliz
Outros candidatos se apresentam. Alguns desafinam, outros cantam como profissionais. A maioria optando por músicas em inglês, versão playback. Como o bate-papo só ocorre nos intervalos breves das canções, o jeito é comer e beber. O garçom da casa é quem se encarrega de abastecer as mesas. Francisco Lima, de 24 anos, ali, é apenas Berim ; diminutivo de berinjela, suposta culpa da paixão pela cor do legume. Por Francisco, quase ninguém o conhece. O apelido surgiu quando frequentava um grupo de dança no qual era aluno de Paulo di Paula, muito antes da inauguração do bar. Além do apelido, vem daí também a falida ideia dos garçons performáticos. O público até gostava, mas ficava difícil conciliar a dança com o equilíbrio das bandejas lotadas quase sempre de latinhas de cerveja e porções de fritas arranjadas em montinhos de alface. Por ora, Berim só exerce seu talento de dançarino na apresentação anual que fazem no Teatro Nacional, onde o garçom sobe ao palco com figurino e coreografia decorada.

Estudante de jornalismo, monitor em escola pública e dançarino, Berim é também o solicitado garçom do Cantar & CantarO sobe e desce entre bar e subsolo com os pedidos dos habitués até as 3h é só um dos três turnos de Berim. A faculdade de jornalismo pela manhã e a monitoria numa escola pública à tarde preenchem seu dia e são responsáveis pelas poucas três horas de sono às quais tem direito. Nenhum motivo para se queixar. Todo mundo ali é amigo: cliente e patrão são apenas nomenclaturas formais. Palavras dele. A intimidade, porém, não é a mesma com o microfone. Berim nunca arriscou cantar uma só música.

Com as geladeiras lotadas de cerveja e cardápio musical para todos os estilos, gostos e idades ; o menu da casa contempla de Frank Sinatra a Restart ;, os karaokês funcionam como uma espécie de templo eclético para a maioria do seu público cativo. Além de esgoelar agruras da vida e finalmente compreender, ao microfone, as mais profundas dores de Altemar Dutra ou Odair José, o momento entre amigos serve de confessionário, sessão de descarrego e terapia ocupacional. É provavelmente ali que a máxima de quem canta seus males espanta é levada às últimas consequências.

Procurando se livrar de pelo menos uma parcela desses males da vida é que o fotógrafo Douglas George Gomes, 36 anos, viu-se pela primeira vez diante de uma plateia, prestes a arriscar umas notas e, quem sabe, a dignidade. Isso foi há oito anos, na África do Sul, quando trabalhava como voluntário religioso. Muito antes de virar uma das figuras mais certas ; e talvez afinadas ; nas noites dos estabelecimentos de Brasília. As iniciais idas aos karaokês africanos aos sábados tornaram-se, também, idas nas sextas, domingos e demais noites da semana. Até na hora do almoço ele batia ponto no videokê. No fim, eram os versos do menos conhecido cantor Josh Groban os responsáveis por aliviar as tensões do missionário.

No palco, Douglas, ao contrário de alguns novatos, não parece intimidado. Sem colar a letra da tela acesa à sua frente, interpreta como se fosse ele próprio o compositor das palavras cantadas. Antes vivesse do talento para a música, ele lamenta. Mas o caminho até lá lhe dá uma certa preguiça e, pensando bem, viver das fotografias que tira pelos colégios particulares da cidade não lhe parece tão ruim. É fotógrafo desses de convites e bailes de formatura. Enquanto calibra a luz no estúdio, arrisca umas notas. Os alunos pensam que ele é doido, segundo o próprio, mas se divertem. E é assim que ele garante sempre uma aplaudidíssima apresentação e concilia os dois talentos: com as lentes e com o microfone.

Outros karaokês de Brasília também fazem sucesso na noite. No entanto, reúnem menos gente preocupada com uma performance impecável. São mais jovens querendo apenas se divertir. A maioria acontece no submundo (em seu sentido mais literal, nos subsolos mesmo) de casas de sinuca. É muita conversa em alto e bom tom, muita cerveja, muita risada, marinheiros de primeira viagem e curiosos, que não reúnem coragem para enfrentar o público. Há também os clientes fiéis. Não menos animados que os novatos. O clima competitivo e afobado, eventualmente, acontece. Há quem tente cantar mais vezes dando nome falso, outros que tentam furar fila oferecendo trocados para o DJ ; a maior tentativa de suborno foi de R$ 50 ;, e até quem vaie os desafinados. São episódios raros, eles dizem.

Nenhum dos entrevistados soube relatar alguma briga ou indisposição explícita entre os participantes (apenas a de uma moça que achou que o namorado cantava para outra, e armou um pequeno barraco). Mas como toda boa regra, a reportagem deu o azar ; ou a sorte ; de presenciar a exceção. Durante o aqui narrado campeonato, a tensão e a expectativa levaram um dos participantes a calibrar o timbre e a timidez com algumas doses de uísque. O moço ficou bravo e acabou sendo segurado pelos amigos e levado para fora do bar. Ele esbravejou contra os jurados, enquanto, no andar de baixo, saía o resultado. Tanto ele quanto todos os demais entrevistados foram aprovados. O resultado final, só em julho. Até lá, muitas notas vão tocar.

Voto de Minerva cantante
Apesar de amadores, todos os que cantam durante a competição querem ser considerados bons artistas. Quem garante isso são os jurados, que entendem de música e tentam, ao máximo, não cometerem injustiças contra os que passaram o dia ralando no trabalho esperando encontrar a glória noturna. Uma dessas é a cantora e compositora Jane Santana que, pela primeira vez, se colocou como minerva musical do concurso. A Revista conversou com ela sobre o momento.

Há quanto tempo que você é jurada em concursos de karaokê?
Na verdade, essa é a primeira vez. Já fui jurada em concursos de moda, mas nunca em karaokês. Nesses, é mais difícil julgar. O karaokê é algo muito livre e as pessoas têm aquela liberdade de escolher o que quiser e, quase sempre, ficam com músicas estrangeiras. Isso complica para nós, já que queremos ouvir a pronúncia, a finalização das frases. Mas não temos como mudar, tudo é escolha deles.

E por que você foi chamada para participar?
Eu tinha uma escola de música e, por meio dela, fui localizada para me tornar jurada.

Quando você olha para essas pessoas, as interpreta como cantores frustrados ou pessoas que apenas gostam de soltar a voz?
Elas não buscam a fama. Vêm aqui só pelo prazer de cantar, de subir ao palco e se liberar. Até mesmo extravasar o que aconteceu no dia a dia. Eles querem mostrar esse lado artístico que têm ou acham que têm. Fica muito mais no divertimento do que, mesmo, profissão.

E o que tem de ser analisado?
Existe uma série de itens que temos de prestar atenção: timbre, voz, musicalidade, afinação. Então, já que eu lido com música o tempo inteiro, por ser cantora e compositora, já tenho o ouvido bom para essas coisas. De qualquer forma, somos obrigados a dar uma nota em cada um desses itens. E, claro, conta a interpretação também. É bem legal ver como alguns candidatos se soltam e, realmente, mostram a vontade, inclusive, de imitar o cantor.

Qual a parte mais divertida de ser jurado?
Acho que não tem nada de divertido, porque julgar as pessoas é algo muito difícil. Até porque aqui temos algo mais lúdico. Mas é bom ver a diversidade de participantes: todos adultos, que aparentam ser muito sérios durante o dia e, aqui, se mostram de outra forma. Isso é o bom para nós jurados.

O que você acha dessas pessoas mudarem no palco?
Acho o máximo! Porque a música é universal e tem um poder de agregar muito grande. Se em um ambiente tem música, há uma maior união. As pessoas riem umas para as outras. Cantam juntas. Por isso que é importante eventos como esse, para que esses cantores possam se sentir assim.

As 10 Mais
É impossível sair de um karaokê sem ouvir pelo menos uma das músicas listadas abaixo, garantem os DJs . De vez em quando, até mais de uma vez.

1 My Way ; Frank Sinatra
2 New York, New York ; Frank Sinatra
3 Bem que se quis - Marisa Monte
4 More than words ; Extreme
5 Flor de Lis ; Djavan
6 Abandonada ; Fafá de Belém
7 Olhar 43 ; RPM
8 Madrid ; Fernando e Sorocaba
9 Como nossos pais ; na versão de Elis Regina
10 Fuck you ; Cee Lo Green

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