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Desafio solidário

Equipe de profissionais que atua em Brasília vai para a China apresentar método inédito no mundo para tratar sequelas de um raro distúrbio. Jovem que nasceu sem língua hoje fala, embora com problemas de dicção, e se alimenta normalmente


Nesta quinta-feira, os médicos da Mongólia ficarão mudos e de olhos arregalados ao serem informados da história da brasiliense Auristela Viana da Silva, 21 anos, funcionária de um supermercado em Brasília. A moça nasceu sem língua, um caso raro na medicina. E fala, outra raridade, pois a falta do órgão seria, na teoria, um impedimento para tal. A ausência de língua, no entanto, não a priva de passear, namorar, estudar ou exercer qualquer outra atividade comum a jovens de sua idade. No momento, ela se prepara para fazer o vestibular para o curso de arquivologia na Universidade de Brasília.

A história de Auristela será contada aos chineses pelo dentista e cirurgião maxiofacial Frederico Salles, que atende em uma clínica no Setor de Mansões Dom Bosco. Ele é o líder da equipe de especialistas responsável pelo tratamento da brasiliense, iniciado em 2003. Com o êxito da terapia, o caso foi registrado em 2008 na revista científica Oral Surg Oral Med Oral Pathol Oral Radiol Endod, a publicação de odontologia mais importante do mundo.

Por ser inusitado, despertou o interesse dos especialistas mongóis e Salles foi convidado a contar a experiência no EPS Hohhot International Paediatric Conference 2011, um encontro de médicos pediatras que ocorre esta semana em Ho Hoot, uma cidade na Mongólia, país encravado entre a China e a Rússia, na Ásia. ;Atualmente, este é o único registro desse tipo de distúrbio, daí o interesse sobre o tema;, afirma o dentista brasiliense, que fará uma palestra sobre Aglossia Congênita e Isolada e Proposta para o tratamento de suas sequelas.

s médicos mongóis, em função da prática clínica, querem saber detalhes do tratamento, mas com certeza ficarão impressionados com a história da menina. Auristela nasceu em 16 de agosto de 1989, de parto normal, no Hospital Regional da Asa Norte (HRAN). A equipe de obstetrícia não notou nenhuma anormalidade no bebê, levado para o berçário. Depois de seis horas de espera, a mãe, Adriana Gomes da Silva Viana, conseguiu ter a menina em seus braços para amamentá-la. ;Ela não conseguia sugar o bico do peito. Tentei várias vezes e nada;, conta a mãe. As enfermeiras levaram Auristela.

Horas mais tarde, os médicos deram um diagnóstico fatídico: a menina nasceu com síndrome de Pierre Robin, uma doença hereditária com malformação da mandíbula e das vias aéreas superiores. Para alimentar a criança, colocaram uma sonda no nariz, por onde passava o leite doado por outras mães internadas no local. Adriana e Auristela ficaram 30 dias internadas até o bebê aprender a engolir e depois receberam alta e foram para casa. ;A mãe foi fundamental para a sobrevivência da garota. Criativa, ela alargou o bico de uma mamadeira de plástico, enchia o frasco com leite materno doado e o introduzia diretamente na garganta da menina. Foi o que salvou a garota;, garante Frederico Salles. Adriana começou então a peregrinação para tentar descobrir realmente qual era o distúrbio da filha. Ouviu várias versões. Para alimentar a filha, apenas alimentos líquidos, pois ela não conseguia mastigar e engolir pela falta da língua. ;Criei a minha filha usando mamadeira e liquidificador;, conta a mãe.

Quando Auristela estava com 3 anos, recebeu um outro diagnóstico, o de anquiloglossia ou a língua presa em todo o assoalho da boca. O distúrbio é que dificultaria a alimentação e a aprendizagem da fala. Os médicos marcaram a cirurgia, suspensa duas vezes e os pais desistiram. ;Essa operação teria matado a menina. Ela foi salva pela falta de assistência na saúde pública brasileira;, diz Salles.

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O dentista, nascido em Santo Amaro da Purificação, na Bahia, e pioneiro de Brasília, tomou conhecimento do caso de Auristela em 1996. Ele trabalha na Rede Sarah, responsável pelo setor de cirurgia bucomaxilar. ;Impressionado com o caso, pesquisei, estudei vários dias e descobri uma solução para combater as falhas provocadas pela ausência da língua: fazer o osso da mandíbula crescer, usando um equipamento semelhante ao usado no hospital para o tratamento de pernas amputadas;, conta Salles. O preço do aparelho, importado, em torno de US$ 1 mil 800 na época, arquivou a terapia.

Auristela continuou a peregrinação de médico em médico. Salles saiu do Sarah e os dois se reencontraram em 2003, quando a menina estava com 12 anos. Sem língua, ela estava desnutrida por não conseguir comer, tinha feridas nos cantos dos lábios, provocadas pelo excesso de saliva e, mesmo sabendo ler e escrever, mal conseguia falar uma frase inteira. ;Decidi cuidar da menina. Reuni um grupo de voluntários e iniciamos o tratamento das sequelas, como prescrevi anos antes;, conta Salles. A família, com o pai trabalhando como caseiro e a mãe de auxiliar administrativo, não tem condições financeiras para arcar com um tratamento como este.

Ele explica que não existe cirurgia definitiva para aglossia, por ser impossível fazer uma língua artificial ou implantar uma língua. No caso de Auristela, a equipe usou aparelhos para modificar a anatomia da mandíbula e ajustar o maxilar. ;A cirurgia maxilofacial e a ortodontia são dois elementos fundamentais nesse tipo de terapia;, afirma o dentista Jorge Faber, responsável pela parte ortodôntica. Durante essa fase, a garota extraiu apenas um dente, o primeiro molar superior esquerdo. Ao mesmo tempo, Auristela participava de sessões com fonaudióloga, psicóloga e nutricionista para aprender a falar, respirar e mastigar corretamente.

A tarefa foi concluída cinco anos mais tarde, em 2008. Nessa batalha, Auristela contou com a ajuda dos dentistas Frederico Salles e Marcos Anchieta, responsáveis pelas cirurgias maxilofaciais, e Jorge Faber, que cuidou da parte ortodôntica. A equipe ainda contou com a participação nutricionista Patrícia Bezerra, da fonaudióloga Maria Lúcia Torres e da psicóloga Elizabeth Queiroz. Todos trabalharam de graça nesta missão. Na próxima quinta-feira, Auristela dará um recado aos mongóis, na língua deles, o mandarim: ;O Brasil espera vocês de braços abertos;. Enquanto isso, ela sonha em um dia em conhecer a Mongólia, a China e outros países. ;O meu maior desejo é visitar a Disney;, fala a moça em seu jeito tímido. Por enquanto, o objetivo é passar no vestibular de arquivologia.


Uma pessoa sem língua não é um mero personagem de ficção. A vida real tem relatos desse tipo de distúrbio. Raro, é claro! A literatura médica mais recente registra apenas dois: o de Auristela e outro mais antigo, em 1949, descrito por Eskew e Shepard nos Estados Unidos. Os demais laudos clínicos falam em microglossia ou língua pequena.

O primeiro caso data de 1718, na França, quando o médico Antônio de Jessieu descreveu pela primeira vez o caso de uma adolescente portuguesa que nasceu com microglossia congênita. Até então só se conhecia falta de língua por amputação ou por gangrena provocada pelo Orthopoxvirus variolae, o vírus da varíola. O segundo caso surgiu 98 anos mais tarde, em 1816, nos Estados Unidos e foi descrito por Spiller. Em 1907, descreve um caso semelhante na Alemanha.

Com a evolução da medicina, a literatura científica relata mais de 50 casos de microglossia e 10 de aglossia ou falta total da língua. Porém, todos os portadores do distúrbios nasceram com outras deformidades, como a falta de dedos nas mãos e nos pés. Auristela não tem apenas a língua, o que comprova a raridade do seu caso.

Veja infografia sobre o tratamento na edição impressa da Revista do Correio