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Escrever para se (re)conhecer

O ato é antigo, mas até hoje conta com uma legião de seguidores. Escrever sobre si mesmo pode ser uma ótima ferramenta de autoconhecimento

postado em 14/10/2011 09:55

O ato é antigo, mas até hoje conta com uma legião de seguidores. Escrever sobre si mesmo pode ser uma ótima ferramenta de autoconhecimentoNo diário, Luíza hesita ao contar sua história. Toma fôlego e relembra, com certa dor, a infância solitária, e se põe a escrever. Não fosse o sítio onde morou com a família, ela acredita que o desfecho seria outro. ;As pessoas me veem como uma intelectual, mas teria orgulho de colocar no meu currículo coisas como buscar cavalo no pasto, arreá-los, saber onde tem minhoca e; capinar.; O relato dessa mulher, que prefere manter anonimato, junta-se ao de outras que contribuíram com coloridas colchas de retalhos ; ou melhor, relatos de vida ;, para as terapeutas Helena Silveira e Adriana Kortlandt organizarem Fios da Memória ; um guia para escrever de si (Ed. Thesaurus), lançado recentemente.

No livro, as autoras optaram pela mesma simplicidade com que essas vozes femininas, antes abafadas pela falta de tempo ou pela baixa estima, se expressam. Mais do que um processo terapêutico, a escrita de si seria, segundo Helena e Adriana, uma ferramenta de autoconhecimento. ;A partir desses relatos particulares, a proposta foi colocar a pessoa no centro do seu mundo. Se olhar como protagonista é um fenômeno muito recente na história da mulher;, reflete Adriana, que sabe, por experiência própria, o bem que faz desabafar para um bloco de papel.

Há três décadas, a escritora e psicóloga anota sonhos e escreve diários. No apartamento de quarto e sala onde mora, há encadernações e papéis soltos da estante ao baú. Em cada canto, um capítulo. ;O que isso reverberou em mim? Se você escreve sem pensar que está bonito ou feio, quando mandamos esse juiz interno para a Sibéria, inicia-se uma grande aventura de descoberta. Um mergulho em seus pensamentos, ideias, imagens; Algo incrível;, acredita Adriana.

O ato é antigo, mas até hoje conta com uma legião de seguidores. Escrever sobre si mesmo pode ser uma ótima ferramenta de autoconhecimentoPara a vendedora Nathalya Campos, 19 anos, a prática do diarismo ; ato de escrever diariamente sobre si ; é mais do que um momento de se reconhecer como protagonista. Quando criança, ela alimentava pequenos cadernos trancados a sete chaves; na adolescência, achou tudo uma grande besteira. Somente este ano a vendedora voltou a fazer da escrita de si um momento para entender melhor o que acontece à sua volta. ;Tem gente que acha que quando escrevo é porque me sinto sozinha, mas, na verdade, é como se conversasse comigo;, define.

Em vez do caderno, Nathalya digita num netbook desafios, dores de amor, episódios familiares, trabalho, dúvidas e alegrias. ;Direciono o que escrevo para uma terceira pessoa. Como se escrevesse para um amigo, para Deus, para alguém a quem posso confidenciar minha história;, explica. No intervalo do trabalho, arranja uma sombra e se põe a conversar consigo.
Prática antiga, o relato sobre si e para si deve permanecer. Se na Idade da Pedra, os desenhos nas paredes eram expressões do cotidiano de uma tribo, nas últimas décadas, diversos suportes serviram ; e servem ; como diário. ;Habitar-se é a proposta;, antecipam Helena e Adriana aos leitores que pretendem dar início a essa viagem para dentro de si.

Minha vida no museu
O relato de cada um também tem seu valor histórico para um bairro, uma cidade ou um país. Com sede em São Paulo, o Museu da Pessoa defende a importância dessa escrita de si, que pode, de alguma forma, contribuir para a compreensão de períodos da história do país. Na página da internet, o museu exibe um acervo de histórias de vida e outro espaço que convida internautas a fazer parte dele. Se estiver interessado em compartilhar sua história com outros, seja em texto, áudio, vídeo, fotos, desenhos e/ou imagens de documentos. Confira: www.museudapessoa.net.

Cada um com seu diário
Blog e site
Do analógico ao digital, o diário de papel ganhou lugar na internet no formato de blogs, sites e redes sociais em que homens e mulheres desabafam sobre a vida pessoal e compartilham com milhares de outras pessoas o que ocorre no dia a dia. Alguns revelam detalhes íntimos, enquanto outros se restringem a escrever fatos corriqueiros.

Mixed Tape
Há aqueles que costumam organizar os capítulos da própria história a partir de seleções musicais ; como no filme Alta fidelidade, em que o personagem interpretado por John Cusack faz uma viagem no tempo com a ajuda de trilhas sonoras de cada época. Cada seleção permite que ele entenda o fracasso das relações amorosas. Comuns nos anos 1980, as trilhas gravadas em fita cassete contavam a história de um relacionamento.

Tatuagem
Marinheiros tatuavam corações apaixonados para a mãe ou para a mulher e foram os primeiros do Ocidente a marcar o corpo com recordações pessoais. O desenho na pele iria para sempre relembrá-lo de alguém ou de um período da vida. Como um caderno de anotações. Até hoje, a tatuagem também é suporte para que as pessoas transformem o corpo em um diário vivo: cheio de símbolos e palavras para demarcar fases da vida.

Joia
No caso das pulseiras e colares da joalheria sueca Pandora, cada cliente escolhe quais pingentes contarão sua história. Definida pelo CEO da marca Daniel Bensadón como um diário em forma de joia, cada peça torna-se única, uma vez que é possível escolher entre centenas de pingentes para falar sobre momentos do passado e do presente. Entre alguns: carrinho de bebê, mala de viagem, sapatinho de bailarina e o que mais simbolizar episódios da sua vida.

Entrevista//Adélia Prado
;Minha obra é maior do que eu;

O ato é antigo, mas até hoje conta com uma legião de seguidores. Escrever sobre si mesmo pode ser uma ótima ferramenta de autoconhecimento

Ela domina a escrita como uma cozinheira que perfuma a casa com os ingredientes certos. Mineira de Divinópolis, a escritora Adélia Prado, 75 anos, não é de se esquivar das descobertas com as quais se depara ao tomar o lápis para si. Aos críticos, já revelou que não há poesia ou prosa que esconda sua impressão digital. Capaz de falar sobre um inseto no jardim de casa com a mesma emoção que descreve um casal de apaixonados, Adélia acredita que a escrita é um grande mistério. Capaz de auxiliar indivíduos de todas as idades a se conhecerem melhor ou a revelarem, em alguns casos, um sentimento universal para transformá-lo em arte. ;Às vezes, nas horas mais impróprias, acordo e anoto o centro nervoso daquela experiência e digo: ;Agora posso dormir;;, conta. Num bate-papo com a Revista, de passagem por Brasília para o projeto Escritores Brasileiros no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), Adélia falou sobre a vida que as palavras ganham quando tomam o escritor por inteiro.

Algum texto já lhe ajudou a conhecer mais sobre si?
Não é uma decisão de lógica isso de escrever sobre algo. Isso é uma bobagem. Tenho sempre um caderno e um lápis apontadinho. Às vezes, nas horas mais impróprias, acordo às três da madrugada e anoto o centro nervoso daquela experiência e digo: ;Agora posso dormir;. De manhã, elaboro o poema. Ou, às vezes, levanto e escrevo mesmo. O último poema que fiz foi de madrugada. Falei para mim mesma: ;Não posso deixar isso passar. Tenho uma obrigação moral;. Agora, quando escrevo sobre mim, isso acaba virando poema; É o que Deus me deu: a poesia. O que escrevo vira texto em prosa ou poema. E quando não vira uma obra de arte, o que escrevo diz respeito somente a mim.

Escrever sobre si é um exercício interessante para se recuperar essa noção de que somos protagonistas da nossa própria história?
Demais! Por exemplo, quem tem a experiência da psicanálise já foi convidado a escrever sobre sonhos, raivas, use todos os palavrões que você quiser (risos). Mas são experiências pessoais que não ultrapassam esse espaço e que fazem um enorme bem à pessoa. Acredito que a escrita seja uma ferramenta de libertação. Somos animais expressivos e temos um discurso para dizer o que sentimos; Nossos afetos. Então, a pessoa que escreve, por exemplo, expressa seus sentimentos ali. E expressar é uma forma de liberação, apesar de que a arte não é uma terapêutica psicológica. São atividades diferentes. A escrita literária não é um pensamento, mas um afeto. Por isso, ela precisa da necessidade íntima de expressão. Posso olhar aquele vaso e falar: ;Que maravilha!” Agora, se aquilo tocar em algum afeto meu, posso ser levada a expressá-lo através de um poema, por exemplo.

O que você acha do hábito de escrever diários?
Não tenho essa disciplina. Escrevo quando estou com muita necessidade, prazer e desejo de escrever. Se você pega o lápis e o papel e escreve para você mesmo ou sobre você mesmo, pode estar fazendo um texto intimista, um diário que interessa apenas a você. Fica restrito à sua pessoa, à sua vida. Agora, se aquilo sobre o que você está falando de você tem uma forma artística, mesmo aquele sofrimento mais íntimo fica velado pela arte. Porque a arte revela, mas também vela pela forma. É interessante, porque você não fica exposto. No máximo, pode falar: ;Essa pessoa que escreveu isso deve ter sofrido à beça;, mas para aí. Você não é invadida pelo olhar alheio.

E o que você já aprendeu sobre si ao escrever?
A pata da gente está em toda obra. No meu caso, em todo livro. Compreendo e sinto que qualquer livro meu é melhor do que eu. Qualquer. Porque não é fruto da minha lógica, do meu pensamento, do meu ego. Nasce em outro lugar da alma. Para mim, nasce nesse território sagrado, onde é gerado todos os poemas, toda a beleza universal. Quem sou eu diante disso? O artista é um instrumento de algo maior que ele. Se não fosse assim, eu teria um poder imenso. Ou seja, com depressão, sem depressão, com alegria, sem alegria, escreveria um poema. E essa é uma falácia. Não existe isso, e olha que tem muito livro feito assim. Temos que fazer uma boa fogueira deles. Outro dia, estava relendo A Morte de Ivan Ilitch, de Tolstói. ;Meu Deus do céu;, você diz; Daí você pensa: ;Como uma pessoa de carne e osso fez isso?;, tal a beleza e confrangimento que a história cria na gente. Tenho certeza que o autor sabia disso. Sabia que não faria nada igual. Ele escreveu tantas obras e todas são obras maiores, verdadeiras. Foram feitas não pelo ego, mas por outra instância dele. Não tem nem como descrever. É como perguntar à abelha porque ela faz mel. ;Sei não. Porque faço;, ela vai dizer. A obra é maior. E quando a gente tem consciência disso, corremos atrás, querendo ser igual ao livro.

Então, depois que a obra está pronta, ela gera inquietude no autor?
Gera inquietude no sentido de nos fazer perguntar: ;Como é possível?; Mas é uma inquietude maravilhosa porque ela puxa você para outro lugar. A maravilha de uma obra, sinfonia, texto é que ele puxa você para outro lugar, fora do autor e fora de você mesmo. Isso realmente é um mistério. Eu releio muitas das minhas obras e sabe por que tenho a tranquilidade de reler? Porque acredito nisso: a obra é maior do que eu. Como se eu fosse algo à parte. Dou conta de objetivá-la. Por isso, acho que a gente chega perto de coisas bem sagradas quando escrevemos.

Tantos anos de poesia e prosa e você já disse que não se sente uma veterana. Por quê?
O que escrevo e acredito têm sido publicado. Agora, não posso falar que estou instalada. De jeito nenhum. Nunca me sinto uma veterana. Sou uma escritora estreante, e isso é que me dá alegria. Ser escritor não é uma profissão, mas uma vocação. Escrevo à medida que devo escrever. Passei uma vez muito tempo, sete anos, sem escrever uma linha. Morrendo de vontade, mas não tinha o barro para fazer o vaso. Entende? Não tinha material. Esses são períodos que toda pessoa experimenta na vida. Parece até que você perdeu o ;poder; de criar alguma coisa. Mas essas também são experiências valiosas, porque se você não passa por determinadas dores, você morre bobo (risos). E morrer bobo é muito ruim e triste, não é? Sofrimento e dor são caminhos de libertação em que você enxerga: ;Somos todos uma coisa só;.

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