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Compromisso com o próprio corpo

Até que ponto existe liberdade sexual para mulheres? Adeptas das relações casuais admitem que o preconceito ainda é forte

postado em 30/10/2011 08:00

Até que ponto existe liberdade sexual para mulheres? Adeptas das relações casuais admitem que o preconceito ainda é forteA principal meta de ano-novo de Letícia*, 30 anos, não envolveu parar de fumar, fazer uma viagem a Paris ou conseguir um novo emprego. Em vez dos anseios tradicionais, ela decidiu que, em 2011, transaria com 100 homens. Seguindo preceitos da liberdade sexual que o feminismo pregou a partir da década de 1960, ela também resolveu que as experiências tinham de ser relatadas e tudo está sendo falado, discutido e criticado no blog www.cemhomens.com.

Desde fevereiro, quando iniciou a contagem, Letícia passa por um furacão na sua vida. E, de forma irônica, o ato sexual é o menos responsável pelas intempéries. Em centenas de comentários, que vão do apoio irrestrito à total crítica à decisão dela, o blog acabou se tornando um divã para quem ama e odeia uma vida livre de amarras sociais diante do sexo. ;Muita gente defende uma contrarrevolução sexual, com medo de que parâmetros sejam perdidos. Mas moral sexual não existe para mim. Ser correta com as pessoas é ter moral;, afirma.

Letícia não usa o verdadeiro nome. Alega que, justamente por prever que seu comportamento poderia despertar a ira de muita gente, é melhor um anonimato que proteja aqueles próximos a ela. ;E também por conta da minha vida profissional. Mas eu nunca tive problemas em manter relações casuais. Sexo só traz coisas boas.; Entre os comentários, o mais repetido é o de que Letícia é prostituta. Publicações nacionais já a chamaram de ;A nova Bruna Surfistinha;, algo que, para ela, só demonstra o quanto a sociedade, principalmente as mulheres, ainda não lida bem com a própria sexualidade e a do outro.

;As pessoas ainda esperam que a mulher queira namorar e casar. Outras simplesmente têm inveja. As mulheres são ainda mais preconceituosas que os homens. E muitos deles vão repetindo comportamentos machistas;, acredita. É fato que a revolução sexual ajudou, e muito, que as escolhas femininas na área de relacionamentos pudessem ser mais respeitadas. Tanto que citar a pílula anticoncepcional como bandeira dessa época se tornou um clichê. Porém, esse maior foco no prazer feminino formou, de um lado, aqueles que entendem o corpo da mulher como propriedade dela e aqueles que compreendem que ser mulher é, mesmo diante da liberdade, manter uma postura de só buscar o sexo atrelado ao amor.

De acordo com a psicanalista e escritora Regina Navarro Lins, autora de A Cama na Varanda (Editora Best Seller), a repressão ao prazer da mulher existe desde que o homem descobriu seu papel na procriação, junto do surgimento da propriedade privada. Era preciso ter certeza sobre o pai da criança, que receberia a herança após a morte do genitor. ;A sexualidade da mulher, desde então, foi aprisionada, por medo da gravidez. E, até hoje, as pessoas têm preconceito com a liberdade sexual delas.;

É o que sente a psicóloga Juliana Pinto, 30 anos. A jovem é defensora forte das relações casuais, sempre encorajando aqueles que também acham que ficar, sempre que tiver vontade, é algo que não deve ser reprimido. Porém, ela ainda não consegue se livrar da sua educação machista e, muitas vezes, vê seu discurso calado por receios que fazem parte da vida de muitas mulheres, como a possibilidade de ser taxada de fácil pelos homens. ;Sutilmente, você acaba sendo machista também. Faço um trabalho diário ao acordar, dizendo para mim mesma: o corpo é meu e vou fazer dele o que eu quiser, desde que eu não prejudique a outra pessoa ou a mim mesma.;

O que é a liberdade?
A professora Tânia Navarro Swain, criadora do primeiro curso de pós-graduação em Estudos Feministas no Brasil, em 2002, mostra um contraponto. Garante que a sociedade hoje vive uma fase em que o sexo deixou de ser um dos aspectos da vida para se tornar o único. ;Isso traz um empobrecimento da mulher e das pessoas com quem ela se relaciona. Há uma confusão do que é ter liberdade sexual;, afirma. Para a especialista, há uma intenção de passar a ideia de que uma mulher livre é aquela que tem o maior número de parceiros possíveis. ;O ser humano acaba sendo reduzido ao pênis e a vagina. E é uma miséria reduzi-lo aos órgãos sexuais.;

Juliana Pinto diz que essa confusão entre a independência e o julgamento cria um paradoxo: a mulher pode ficar com quem bem entender, mas nem sempre consegue agir dessa forma. ;Não é um caminho fácil, já que o melhor, para mim, vai contra o que a sociedade acha que é melhor. As pessoas confundem o fato de que não quero a liberdade de ficar com todo mundo, mas a liberdade de ficar com quem eu bem entender.;

Regina Navarro Lins explica que tantos questionamentos prejudicam, inclusive, o prazer sexual da mulher. ;Quando uma mulher fala que só faz sexo com amor, repete o que ouviu, sem perceber seus próprios desejos. O condicionamento cultural é tão forte que ela chega à idade adulta sem saber o que realmente deseja e o que aprendeu a desejar.;

Ironicamente, os homens também criam essa expectativa do amor, mas delas para eles. Ou seja, quando as mulheres não demonstram uma submissão apaixonada, eles não acreditam no sentimento e, em muitos casos, desistem da relação. E é esse o motivo que faz *Luana ficar pouco tempo com eles. A publicitária de 23 anos é adepta das relações casuais. Ela acredita que se diferencia de grande parte das mulheres pelo fato de não encarar o fim de um caso como uma derrota. ;Ter que procurar alguém de novo é, de certa forma, um sacrifício. Mas eu já começo tudo como uma experiência. Estou testando e, se não der certo, dói, mas entendo que não era pra ser.;

Para ela, os homens sentem que há algo estranho quando a mulher gosta deles, mas não aparenta dependência. A família também critica a falta de compromisso, taxando-a de solteirona, mesmo sendo ela tão jovem. ;Essa postura autossuficiente sempre é mais aceita no mundo masculino do que no feminino.;

Letícia, Juliana e Luana buscam a liberdade de separar o que elas são das cobranças sociais impostas ao seu sexo. ;Sei cozinhar, costurar, fui educada para ser esposa. Mas quero conseguir sobreviver sozinha e encontrar alguém para viver uma vida a dois, não para dizer que tenho 30 anos e marido;, garante Juliana. E, na visão de Letícia, limitar-se é perder oportunidades e a quantidade é sim tão importante quanto a qualidade. Ao experimentar, garante, ela se torna mais exigente não só em relação ao sexo, mas aos homens. ;Agora, sei a diferença entre o idiota e o gente boa.;

* nomes fictícios

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