Crianças são alegres, despreocupadas e ávidas por diversão. Mesmo os adultos mais sérios e ranzinzas, um dia foram garotos cheios de vida em busca de divertimento, apegados a algum brinquedo especial, com o qual desenvolveram uma relação afetiva. Ao longo do tempo, porém, os brinquedos têm se modificado para acompanhar a evolução social e continuar a encantar as novas gerações. ;O ato de brincar sempre foi o mesmo, desde as civilizações mais antigas, o que muda são os costumes da sociedade;, garante o diretor de marketing da Estrela, Aires Leal Fernandes.
Nos anos 1950, por exemplo, era comum as mulheres trabalharem com costura em casa. Naquele tempo, além das bonecas, as máquinas de costura lideravam as venda. Hoje, por não ser um utensílio presente na realidade da maioria das crianças, é pouco procurado. Em contrapartida, as prateleiras estão lotadas de bonecas com representações da mulher no século 21. ;A Barbie é uma parte integrante da infância de várias meninas, pois permite que elas sonhem e descubram que, brincando, podem ser o que quiserem. Ela está onde as meninas estão: na escola, nos esportes e nas diversas profissões;, exemplifica a diretora de marketing da Mattel no Brasil, Isabel Patrão. O jogo de tabuleiro Banco Imobiliário é outro exemplo da mudança de costumes da sociedade: a versão disponível hoje no mercado vem com máquina de cartão de crédito, e as propriedades comercializadas são empresas reais.
As mudanças não param por aí. As crianças do século 21 vivem uma nova realidade: moram em grandes metrópoles, geralmente violentas, passam muito tempo longe dos pais e pouco com os amigos, além de terem poucos irmãos. Por isso, acredita Fernandes, os brinquedos deixaram de ser meramente contemplativos. São mais interativos porque, dentro de casa, assumem o papel de uma companhia. Somado a isso, os pequenos recebem um bombardeio de informações de toda natureza e têm muita facilidade de lidar com as novidades. ;Nesse sentido, são crianças muito diferentes das de 50 anos atrás, elas sabem de tudo e conseguem antever os acontecimentos. Por isso, a indústria de brinquedos precisa acompanhá-las e lançar artigos que correspondam às expectativas delas;, explica Fernandes.
Isabel Patrão, da Mattel, aponta uma outra tendência: as crianças têm um número maior de atividades, dentro ou fora de casa. ;Sabemos que, com a influência da tecnologia, a rapidez das comunicações e a globalização, as crianças estão expostas a novas formas de interatividade e entretenimento. Dessa forma, dividem seu tempo entre mais atividades, mas mesmo assim não deixam de brincar.;
As crianças da família Vieira são um exemplo disso. Bonecas que choram, fazem xixi, comem e crescem de verdade, um hamster de brinquedo que corre dentro de uma bolinha acrílica e a boneca que a mãe ganhou aos 7 anos de idade fazem parte de Aclores, o país imaginário criado pelas irmãs Júlia, 8anos, e Aline Vieira, 6. No universo das pequenas, os pais são convidados ilustres para a brincadeira. ;O papai brinca de Barbie com a gente, e a mamãe fica muito engraçada quando brinca;, conta Aline.
As garotas reproduzem, nas brincadeiras, o universo que vivenciam todos os dias: dão aula para as bonecas, brincam de casinha e não poupam as broncas nas filhas de mentirinha quando necessário. Para a mãe, Luciany Vieira, é importante que as filhas vivam com plenitude essa etapa da vida. ;Acho muito saudável elas terem a infância muito viva, sobretudo em uma geração de crianças que pula etapas da vida. Quero que isso se prolongue ao máximo.; Júlia já se orgulha de ter comprado uma boneca com o próprio dinheiro. ;Eu comprei a boneca e três roupinhas que não vieram com ela. Tudo com o meu dinheiro.; Para a mãe, o ato foi uma lição importante de responsabilidade. ;Assim, ela aprende a dar mais valor aos brinquedos. Sabe o quanto eles valem e, por isso, merecem cuidados.;
Socializando a brincadeira
Para Stela Lobato, psicóloga especialista em educação e desenvolvimento infantil da Boobambu Academia da Criança, o brinquedo resolve um aspecto cognitivo pontual para a criança solitária, mas ele não atende as necessidades socioafetivas. ;O brinquedo parece suficiente por si só, mas sem a presença de alguém significativo para dividir a fantasia e viver aquele momento ao lado dela, ou mesmo para ajudar a conduzir a brincadeira, o lado socioafetivo fica falho.;
Isso não é problema para Antony Patrick Almeida de Souza, 6 anos, que tem no pai, Francisco Antônio de Sousa, 31, companhia certa nas brincadeiras. Quando era criança, Francisco, que teve uma infância pobre no Ceará, reunia materiais para fabricar os próprios carrinhos: latas, madeira e chinelos velhos para os pneus. Conseguiu realizar o sonho de infância aos 21 anos: comprar um carrinho de controle remoto. Ele conta que passou três meses controlando o orçamento para pagar o brinquedo de R$ 700. ;Sempre tive paixão por carros, por velocidade. Quando cheguei em casa com esse carrinho, minha mulher quase morreu de raiva. Passei madrugadas inteiras mexendo nele, brincando;, recorda.
No terceiro aniversário de Patrick, ele ganhou um carrinho como o primeiro que o pai comprou. Hoje, Francisco se junta ao filho para pilotar a coleção de carrinhos do pequeno, ainda modesta, segundo garante. ;Os carrinhos que quero dar para Patrick são muito rápidos, e ele ainda não consegue pilotar direito. Vou guardar e presentear no tempo certo. Fico muito emocionado em poder proporcionar a ele o que eu nunca tive.;
A paixão de infância se transformou em profissão. Hoje, Francisco comanda uma loja de automodelos de combustão e elétricos. São carrinhos profissionais e amadores. ;Já vi clientes adultos derramarem lágrimas ao comprar um carrinho. As crianças ficam encantadas quando passam pela loja. Eu trabalho com sonhos.;
Stela Lobato alerta também para a compra excessiva de brinquedos, que, além de deixar a criança mal acostumada, não supre as carências do chamado encontro autêntico ; momento de dividir as possibilidades oferecidas pelo brinquedo com outra pessoa. ;Às vezes, os pais compram uma quantidade absurda de brinquedos para suprir a própria ausência. Mas, para a criança, um momento de brincadeira entre eles vale muito mais do que um monte de brinquedos novos.;
A mãe de Júlia e Aline, Luciany Vieira, admite que, às vezes, exagera na compra de brinquedos. Ela teve uma infância difícil e, por esse motivo, costuma atender os pedidos das filhas. Ela reitera que as meninas são de uma geração privilegiada. ;Eu brincava com tijolos antes de ganhar minha primeira boneca, aos 7 anos. Por isso e por todo o apelo televisivo, fica difícil dizer não. Preciso me policiar bastante.;
E fica mesmo difícil dizer não diante de tanta oferta. A Feira Nacional de Brinquedos (Abrin), realizada em abril, apresentou 1,5 mil novidades. A estimativa para a chegada efetiva no mercado é de 1,2 mil lançamentos. Para o presidente da Associação Brasileira dos Fabricantes de Brinquedos (Abrinq), Synésio Batista da Costa, os números demonstram um aperfeiçoamento no desenvolvimento dos produtos, com mais pesquisas para entender as tendências em brinquedos. ;É um indicador que atesta o alto grau de profissionalização do setor.;
Brinquedos eterno
Desde a abertura das primeiras fábricas de brinquedos no país, por volta da década de 1930, as bonecas de pano deram lugar a bebês incrivelmente parecidos com os reais, com choros, manhas e até fraldas molhadas. Os carrinhos de controle-remoto assumiram a pole position e deixaram os singelos automóveis de madeira para trás. A maior contribuição no desenvolvimento do mercado de brinquedos vem das tecnologias lançadas por outros setores da indústria. O surgimento de novas matérias-primas, como o termoplástico, mudou a maneira de fabricação. A mecânica passou a ser incorporada, depois foi a vez da eletrônica ajudar na sofisticação.
Para a especialista em educação infantil e autora do livro Brincar ; prazer e aprendizado, Angela Cristina Munhoz Maluf, é possível observar as influências de brinquedos com tecnologia aplicada sobre as crianças. ;Os brinquedos, ao agregarem os recursos da tecnologia, podem interferir em graus diferenciados, promovendo um desenvolvimento mais efetivo em algumas áreas que em outras.; Segundo a especialista, o excesso no manuseio desses brinquedos pode interferir no comportamento, aprendizado, escolhas e, consequentemente, no desenvolvimento físico e emocional da criança.
Angela aponta a importância histórica do brinquedo no aprendizado infantil. O brinquedo sempre representou, para a criança, um desafio que estimula o desenvolvimento por meio do lúdico. ;A contribuição do brinquedo para o desenvolvimento das habilidades infantis independe da modernidade dele. A importância sempre esteve em brincar com o que envolve a faixa etária e os hábitos culturais da criança de cada época.;
No piano da casa da empresária Virgínia Guimarães, 54 anos, a partitura da música Infância feliz remete aos tempos de criança, muito alegre, em Anápolis. Caprichosa, ela guarda os próprios brinquedos e tem um verdadeiro arsenal de objetos para lembrar a infância dos filhos, hoje com 26 e 16 anos. ;É a história da minha vida que estou guardando aqui. É uma tradição familiar, minha mãe fez isso por mim e, hoje, faço o mesmo pelos meus filhos e pelos netos que vou ter um dia;, conta.
A primeira boneca, Nina, que ganhou aos cinco anos, ainda está conservada com as roupas e a caixa original. Recentemente reformada para passar o Dia das Crianças mais bonita, Nina é um referencial da infância sadia que Virgínia teve ao lado dos irmãos. ;Eu brincava muito de boneca, com umas bonequinhas de papel que trocavam de roupa, com panelinhas de ferro e jogo de chá. Mas, hoje, a cultura não é mais a mesma. As meninas não têm mais essa referência e, ainda por cima, crescem muito rápido;, explica, com a lembrança de ter a companhia dos brinquedos até os 14 anos de idade.
O boneco Adriano, cujo nome é uma homenagem a um amigo de infância, uma pequena costureira, hoje uma senhora de quase 60 anos, e a boneca Maria Olímpia, com seus 30 anos, são outros companheiros de Virgínia Guimarães, que vê a coleção como uma lição de vida. ;Guardar esses brinquedos é uma maneira de manter as boas lembranças vivas em mim. Quero que esse valor esteja em várias gerações da minha família e não que julguem os brinquedos como objetos descartáveis e incapazes de despertar sentimentos incríveis.;
Ontem e hoje
A maioria das lembranças da infância de Jeanete Michiko Nisiguchi Ferraz, 43, vem das brincadeiras de rua porque os pais não podiam comprar muitos brinquedos. ;Eu e minhas três irmãs dividíamos duas bonecas e uma bicicleta. Era uma época em que precisávamos aprender a repartir. Hoje, as crianças são mais individualistas e não zelam pelo que tem, porque tem muito;, analisa.
Rodeada de netos, os brinquedos são artigo obrigatório na casa de Jeanete. Além de brincarem juntos, os irmãos, Isabella, 13, Pedro Lucas, 11, Isadora, 10, e Henzel, 6, gostam de passar um tempo sozinhos com os brinquedos preferidos. Apaixonado por carrinhos, Henzel carrega um para onde vai. Isadora ama a casinha cheia de móveis. Pedro Lucas radicaliza com o skate. E a mais velha, Isabella, entra nas brincadeiras com a bola, unanimidade entre todos.
Apesar de ter crescido em um universo feminino, com três irmãs e a mãe, Jeanete Michiko garante que nunca gostou muito de brincar de boneca. Preferia os brinquedos masculinos, como os carrinhos de rolimã. Hoje, ela exige que os meninos cuidem dos brinquedos tanto quanto as meninas, mas assume a dificuldade. ;Deixo todo mundo brincar, mas, às vezes, quero que o Pedro Lucas e o Henzel cuidem dos brinquedos como as meninas, mas é um pouco difícil;, conta.
A avó coruja não gosta de videogame em casa e limita o tempo das crianças no computador. ;Acho que brincar entre eles é muito mais saudável. Uma criança em frente ao computador ou ao videogame esquece da vida. Quando meus sobrinhos, que têm mais acesso a isso, vêm para cá, se soltam e brincam como crianças de verdade.;
Companheira nas brincadeiras dos netos de Jeanete Michiko, Maria de Lourdes Soares Oliveira, 9, costumava brincar com utensílios de barro quando morava no Maranhão. Hoje, o brinquedo preferido é a Barbie. ;Lá, a gente fazia panelinha com água e barro. Era muito legal. Vocês deveriam fazer um dia;, recomenda às coleguinhas.
Médicos especiais
Manter a mágica na imaginação dos pequenos e garantir que a brincadeira continue é o trabalho de Maria Aparecida Teixeira Sobrinho, dona do Hospital dos Brinquedos. Há mais de 30 anos no ofício, ela se envolve com a história de cada paciente. ;Às vezes, as crianças ficam inconsoláveis em ter que deixar os brinquedos aqui. Precisamos tranquilizá-las e explicar que, em breve, o amiguinho delas estará a salvo. É muito gratificante vê-las emocionadas, com os olhinhos brilhando quando recebem o brinquedo pronto.;
Com a entrada de artigos importados, sem possibilidade de reposição de peças, e o aumento da venda de brinquedos com maior sofisticação tecnológica, consertá-los ficou um pouco mais complicado. Há 24 anos no mercado, Carlos Emílio Helmer, da SOS Brinquedos, precisou adaptar a oficina. ;Tivemos que aprender eletrônica para continuar com os reparos. Quando a estrutura era mecânica, a manutenção era mais fácil. Hoje, lidamos com pequenos processadores em quase todos os brinquedos, é mais complicado;, compara. Maria Aparecida explica que os brinquedos são os mesmos, mas com características muito diferentes. ;Sempre consertamos carrinhos, robôs, bonecas, mas de uns tempos para cá, eles aparecem mais incrementados. Alguns, por não terem peças de reposição, são quase descartáveis.;
A procura pelas lojas ainda é grande, mas Carlos Emílio teme pela diminuição do serviço. ;A maioria dos brinquedos que conserto são antigos, mas eles vão se perdendo. Os novos vão ser dominantes. A tendência é essa, vai acontecer um dia.;