O Ciem fechado pelos militares. O Elefante Branco sucateado. Eis duas farpas a incomodar o orgulho brasiliense. O Centro Integrado de Ensino Médio (Ciem) foi uma experiência de brilho intenso em sua breve existência, entre 1964 e 1971. Instalado onde hoje é o HUB, tratava-se do laboratório pedagógico da Universidade de Brasília e incutiu na cabeça de uma geração a ideia de que a educação pública poderia ser revolucionária. A grade curricular era complementada por uma variedade de laboratórios, absorvendo os estudantes por tempo integral. Não à toa, atraía filhos de ;gente importante;. No caso do Centro de Ensino Médio Elefante Branco, as edificações não resistiram ao tempo e ao abandono. Desconstruído lentamente, o projeto idealizado pelo grande educador Anísio Teixeira foi referência para o país. Agora, sobrou a carcaça do mamute nascido com Brasília, eternamente estendido na 907 Sul.
Essa breve digressão ajuda a entender por que sentimos tanta saudade de certas escolas públicas. Mas é necessária alguma cautela para se aproximar do assunto com a devida justeza, aponta o professor Célio da Cunha, da Faculdade de Educação da UnB. ;Você teve, no passado, escolas públicas que marcaram época. Não muitas, mas de excelente qualidade, algumas ligadas a instituições universitárias. Com o processo de democratização da educação, a rede se expandiu, tanto para atender o ensino fundamental quanto o médio. Até diria que não houve, propriamente, uma queda de qualidade, como muitas vezes se noticia: houve uma expansão por baixo. Ou seja, boa parte da expansão da escola foi feita sem que o poder público a dotasse das condições mínimas. Por isso, muita gente hoje, de uma forma saudosa, fala de declínio.;
O fio da meada puxado pelo pesquisador conduz a um quadro nada lisonjeiro de nossas instituições. ;Dá para dizer que, historicamente, essa expansão se fez às custas dos péssimos salários dos professores;, crava. Apenas nos últimos anos o Estado esboçou uma reação, ainda que titubeante. Hoje, destinamos ao setor cerca do 5% do PIB. A promessa da presidente Dilma Rousseff é que o investimento chegue a 7% muito em breve, lembra o especialista. Mas se a penúria dos docentes desanima, algo muito promissor vem ocorrendo no seio da sociedade. ;A mãe do aluno desempenhou nos últimos anos no Brasil o papel brilhante de lutar pela vaga do filho na escola. Há 15 anos, era frequente ver mãe dormindo na porta da escola para segurar o lugar. Essa etapa foi mais ou menos vencida. A próxima é ficar vigilante, para cobrar qualidade.;
Antes de se despedir, a reportagem lançou ao professor Célio a seguinte provocação: ;O dia em que o filho de senador estudar em escola pública, ela será boa. O que o senhor pensa disso?;. A resposta veio sem pestanejar: ;É um pouco diferente disso: o dia em que a escola for boa, o senador vai matricular o seu filho. A elite do Rio de Janeiro, por exemplo, até hoje matricula os descendentes na Dom Pedro II. Mas acho que o Brasil já iniciou essa luta. Você já vê sinais disso, como nas escolas do Plano Piloto disputadas por membros da classe média. Da mesma forma que a UnB é muito procurada. A elite corre atrás. Ela sabe o que é bom.;
LEIA, A SEGUIR, A ÍNTEGRA DA ENTREVISTA COM O PROFESSOR CÉLIO DA CUNHA
Em que momento na história do país ocorreu essa inflexão, em que a escola pública deixou ser um modelo de excelência e se transferiu a responsabilidade da educação para o sistema privado?
A rigor não foi uma transferência do ensino público para o privado. Historicamente, o que aconteceu é que, no passado, você tinha uma escola que se destinava a uma elite. Na medida em que se acentua o processo de urbanização, nos anos 1950, e que continua nos anos 1960, a escola é obrigada a se expandir. Aquela elite que era atendida nas décadas de 1930, 1940 e 1950 continua a ser atendida. Também aquela que estudava em escola particular. Na medida em que houve a demanda pela democratização da educação, o processo foi fundamentalmente conduzido pelo poder público. Então não houve uma situação de transferência. Mas um novo contexto de urbanização do país e, em certo sentido, uma progressiva vitória da bandeira da educação para todos.
Com poder público à frente do processo...
Esse é o fato fundamental. Então essa elite que estudava em escola particular nos anos 1930 do século passado continua estudando ; hoje ela está no Colégio São Luís, em São Paulo, ou naqueles colégios particulares que toda grande cidade possui. Os colégios particulares são destinados à elite. Aqui, em Brasília, temos também essas escolas destinadas à elite. Essa grande expansão, a partir dos anos 1950, continua até chegarmos hoje à quase universalização do ensino primário, e agora também ao processo deflagrado de universalização da escola média. É o poder público que está arcando com isso.
E experiências como os colégios de aplicação, ou o Ciem (Centro Integrado de Ensino Médio), aqui, no DF? Não houve um declínio da qualidade?
Esse é um dado extremamente interessante. Você teve, no passado, escolas públicas que marcaram época. Não muitas, mas de excelente qualidade, algumas ligadas a instituições universitárias. Com o processo de abertura de mais escolas, de democratização da educação, a rede se expande, tanto para atender o ensino fundamental quanto o médio. Até diria que não houve, propriamente, uma queda de qualidade, como muitas vezes se noticia: houve uma expansão por baixo. Ou seja, boa parte da expansão da escola foi feita sem que o poder público a dotasse das condições mínimas. Por isso, muita gente hoje, de uma forma saudosa, fala de declínio.
Optamos, então, por um modelo...
Em certo sentido, você pode fazer a seguinte afirmação: boa parte da expansão das escolas de educação básica do Brasil foi feita com o preço dos maus salários economizados no pagamento dos professores. O salário foi estancado, nessa expansão, não houve uma evolução do salário dos professores. Apesar de tudo, eles enfrentam o desafio, de uma maneira ou de outra, bem ou mal, eles estão assegurando uma grande expansão da educação. Ou seja, essa expansão da educação foi feita sem que se ampliasse o investimento educacional. Apenas nos últimos anos, já na gestão Fernando Haddad, começou um processo de lenta recuperação dos investimentos em educação. Mas esse é um fato recente. Estamos em torno de 5% do PIB. Há uma promessa da nossa presidente, Dilma Rousseff, de ampliar esses investimentos para, pelo menos, 7%. O Plano Nacional que está sendo discutido na Câmara dos Deputados, está prevendo um aumento de 8%. Não sei se será efetivado.
Há um interesse renovado da classe política?
Existe hoje uma lucidez maior dos governantes. Até para preencher a expectativa das famílias. Isso é importante: cobrem do poder público, cobrem qualidade. A mãe do aluno desempenhou nos últimos anos no Brasil o papel brilhante de lutar pela vaga do filho na escola. Há 10 ou 15 anos, era muito frequente, na época de matrícula, uma mãe chegar a dormir na porta da escola até mais de uma noite para segurar uma vaga para o seu filho. Essa etapa foi mais ou menos vencida. A próxima etapa agora é: que essa mãe continue vigilante na escola para cobrar agora não mais a vaga, mas a qualidade da vaga oferecida, que é a qualificação das oportunidades de educação ; esse é um direito. E a cobrança de qualidade é do poder público. O professor tem procurado fazer o máximo. Tem distorções? Tem. Mas, historicamente, essa expansão se fez às custas dos péssimos salários deles.
Às vezes se diz que o dia em que o filho de senador estudar em escola pública, ela será boa. O que o senhor pensa disso?
É um pouco diferente disso: o dia em que a escola for boa, o senador vai matricular o seu filho. A elite do Rio de Janeiro, por exemplo, até hoje matricula seu filho na Dom Pedro II. O dia em que essa escola for boa. Acho que o Brasil já iniciou essa luta. Você já tem sinais disso: há escolas do Plano Piloto muito disputadas. E em todos os estados você encontra essa situação. Sempre que a elite percebe que a escola é boa. Da mesma forma que procura a UnB. A elite corre atrás. A elite sabe o que é bom.
Então qual é o nosso problema? Estrutura física, foco de investimento?
O fator financeiro é básico. Ele é estruturante. Quando você observa o desempenho dos países que ostentam a melhor educação do mundo percebe que há uma correlação positiva. Pode haver exceções, pois só o dinheiro não traz qualidade. Mas o dinheiro tende a ser condição para um projeto pedagógico moderno e atual.