Alguém já disse um dia que a melhor estratégia para vencer um inimigo é conhecê-lo bem. Identificando como ele age, quais os pontos fracos e sua fortaleza é possível criar estratégias para derrotá-lo ou, pelo menos, enfraquecê-lo. O raciocínio é o mesmo para as doenças genéticas. Como as patologias são causadas por erros indeléveis no organismo, a estratégia é tentar investigar ao máximo o funcionamento da doença e procurar amenizar os danos. Entre as armas de combate disponíveis, estão o diagnóstico precoce, o acesso ao tratamento especializado e os cuidados paliativos para contornar as complicações. Nessa luta, se não há vitoriosos, diminuir as mortes precoces já é um saldo positivo. Assim, ganha-se tempo para que novas possibilidades aumentem as chances de cura no futuro, quem sabe, bem próximo.
No Brasil, a primeira dificuldade é encontrar centros especializados para diagnosticar e tratar precocemente o problema. A Portaria 81 do Ministério da Saúde, criada em 2009, deveria implementar a política de atendimento da genética pelo SUS, mas ainda não saiu do papel. O que existe, então, são iniciativas de alguns estados que criam serviços de cuidados a esses pacientes e as universidades, que estão engajadas nas pesquisas genéticas e acabam oferecendo as consultas nos hospitais universitários.
Em Brasília, o primeiro serviço especializado em desvendar as alterações provocadas pelos erros genéticos foi o Hospital Universitário da Universidade de Brasília (HUB-UnB), em 1987. O primeiro prontuário está guardado até hoje. Foi no dia 11 de outubro daquele ano. O paciente atendido pelo recém inaugurado centro de atendimento e pesquisas tinha a síndrome de Klinefelter, uma patologia causada pela presença de um cromossomo X a mais nos homens. O resultado são rapazes de estatura muito alta, que apresentam tecido mamário e testículos pequenos.
Essa é apenas uma das milhares de doenças genéticas que são diagnosticadas todos os dias no ambulatório de genética do HUB. De lá para cá, foram mais 7.400 famílias atendidas, ansiosas por descobrirem as razões que levam seu organismo a não funcionar como manda a natureza. Atualmente, eles oferecem quatro consultas pela manhã, às segundas e sextas-feiras. Recebem pacientes com patologias variadas do DF e de fora. Muitas não têm solução. ;Cerca de 60% dos casos de retardo mental não chegam a um diagnóstico, até mesmo por falha dos exames que não podemos oferecer;, conta a bióloga Juliana Mazzeu, mestre e doutora em Genética e professora dos cursos de pós-graduação em Ciências Médicas e Ciências da Saúde da UnB.
Dentro das limitações técnicas e considerando os segredos que a genética ainda guarda, os pacientes são atendidos e encaminhados aos profissionais específicos que podem cuidar das complicações da doença. O acompanhamento permite uma vida mais longa. Toda semana, muitos bebês recém-nascidos chegam a este ambulatório. Eles nasceram com anomalias físicas evidentes ou não respondem aos estímulos como esperado. ;Antes mesmo de terem alta da maternidade, se há suspeita de qualquer malformação, as crianças são encaminhadas para cá;, explica a citogeneticista Mara Santos Córdoba, médica doutora em genética.
A Secretaria de Saúde do DF também conta com um Núcleo de Genética. São oito ambulatórios, que atendem, em média, 25 pacientes. Chefe do Núcleo de Genética do Hospital de Apoio da Secretaria de Saúde, Maria Teresinha de Oliveira Cardoso lamenta apenas que faltam profissionais. São apenas quatro geneticistas, sendo que duas estão ausentes nesses últimos dias. É serviço demais para poucos especialistas.
Exames que salvam
O conhecimento dos profissionais da genética precisa ser associado à tecnologia para salvar vidas. Ou pelo menos aumentar as chances de lutar por ela. Os exames são fundamentais para fazer o diagnóstico precoce e acelerar o tratamento. Nesse ponto, muita coisa mudou nos últimos 10 anos. O problema ainda continua sendo o acesso a esses recursos.
Avanços, como o surgimento da citogenética, em 1956, permitiu que os olhos humanos enxergassem pelo microscópio a constituição genética dos cromossomos. Identificar alterações explicaria as doenças e anteciparia o diagnóstico. No HUB e no Núcleo de Genética do Hospital de Apoio, eles dispõem de exames que podem sequenciar trechos do DNA e assim verificar se alguma coisa está fora do script. Também oferecem uma série de testes de triagem, que avalia alterações cromossômicas. ;Perdas de material genético nessas regiões são uma importante causa de retardo mental;, exemplifica a bióloga Juliana, do HUB.
Ainda assim, precisam de mais. ;Como, para a maioria das doenças, o teste tem que ser específico, os laboratórios precisam uma boa infraestrutura, pessoal qualificado e verba para a realização dos exames. Para aquelas doenças em que a causa genética não é conhecida, são necessárias mais pesquisas;, diz a especialista. ;Para fazermos mais diagnóstico, precisamos de mais estrutura;, acrescenta.
Se os exames mais complexos e específicos exigem mais estudos e até verba para serem oferecidos, outros mais simples podem mudar o fim de muitas histórias. O teste do pezinho é famoso, mas muitos não dão a importância merecida. Ele existe há mais de três décadas, mas só em 2001 ganhou força ao ser incluído no Programa Nacional de Triagem Neonatal, em 2001, pela Portaria n; 822. Na prática, todos os brasileiros que tivessem acabado de nascer deveriam ter o pezinho furado para a coleta de uma gota de sangue. Procedimento simples e tão valioso. Com isso, todos poderiam ter identificados, depois das primeiras 48 horas de vida, anomalias genéticas como hipertireoidismo, fenilcetonúria, hemiglobinopatias e fibrose cística.
O exame é mais amplo, pode identificar 46 patologias. Mas, pelo serviço público, só os quatro são oferecidos, o que significa muito para quem carrega algum gene que vai provocar doenças traiçoeiras. Se não forem tratadas, elas matam. Se descobertos, podem ser ludibriados e prolongar a vida e saúde dessas pessoas. O problema é que o governo federal determinou, mas coube aos governo estaduais se adequarem para oferecer o diagnóstico do quarteto de doenças. Alguns estados brasileiros estão no que ainda chamam de fase I, e só identificam o hipotireodismo e a fenilcetonúria no teste. Os que estão na fase 2, acrescentaram as hemoglobinopatias e os da fase 3 já podem identificar a presença do gene que provoca a fibrose cística, também chamada mucoviscidose. A doença provoca acúmulo de muco nos pulmões e uma série de complicações respiratórias, por exemplo.
;São apenas 14 estados brasileiros que estão na fase três, aptos a identificar a fibrose cística nos primeiros dias de vida. Acho que falta um interesse político e iniciativa das secretarias de saúde locais em ampliar os diagnósticos. Afinal, uma vez identificada a doença, você precisa criar condições de tratamento para os pacientes;, lamenta Sérgio Sampaio, presidente da Associação Brasileira de Assistência a Mucoviscidose (ABRAM). De fato, para oferecer os testes, a secretaria do estado precisa também ter condições de cuidar de quem receber a comprovação da doença.
No DF, a realidade, de novo, é mais promissora que no restante do país. Em 2008, a Câmara Legislativa aprovou a lei n;4.190, que torna obrigatório o teste do pezinho ampliado em todas as crianças nascidas. Isso significa 21 possíveis patologias identificadas nos primeiros dias de vida. Maria Teresinha Cardoso, chefe do Núcleo de Genética do Hospital de Apoio, garante que a Triagem Neonatal na capital contempla 98% dos que acabam de chegar ao mundo. ;É o único lugar do país que oferece o teste ampliado pelo serviço público;, afirma a geneticista. A maioria das coletas é feita na maternidade mesmo. Antes, recomendava-se que fosse realizada no posto de saúde, logo após sair do hospital, mas muitos deixavam de ir. Um desvio de rota que pode custar a vida de uma criança.
Sob controle
;Há 20 anos, o Teste do Pezinho era até garantido pelo Estatuto da Criança, mas sua importância não era divulgada;, conta a funcionária pública Aldair Costa da Cunha, conhecida como Ada. Pelo desconhecimento, ela nem foi coletar a gotinha de sangue do pé de Renato, hoje com 20 anos. Até que chegaram os sintomas. Bebê de 5 meses, ele não firmava a cabecinha. Volta e meia, se encolhia e gemia. Sem saber o que o menino tinha, a mãe procurou um pediatra, que nem sequer desconfiou do diagnóstico. Encaminhou aquele bebê para um neurologista. Isso foi há duas décadas. ;Até hoje estou esperando me chamarem;, comenta Ada.
Depois de enfrentar uma angustiante e incerta peregrinação, chegou o diagnóstico. O filho dela já tinha 1 ano e 7 meses. Renato era portador de fenilcetonúria, uma alteração genética facilmente mapeada pelo exame dos pés. A doença é provocada pela ausência da enzima responsável pelo metabolismo do aminoácido fenilalanina, presentes em todas as formas de proteínas dos alimentos. ;Essa deficiência enzimática transforma esse aminoácido em outro chamado tirosina, muito importante na formação de neurotrasmissores e nas atividades neurológicas;, esclarece Márcia Giacongiusti, endocrinopediatra do serviço de Referência de Triagem Neonatal da Apae -SP.
Com fenilalanina em excesso no organismo, elas começam a se acumular nos tecidos e a lesionar o cérebro. Renato não gemia à toa quando bebê. Ele estava tendo convulsões. ;Teve um dia que ele chegou a ter 20 em apenas uma manhã;, Ada relembra. As descargas no cérebro comprometeram para sempre o desenvolvimento mental do garoto. ;Como o diagnóstico foi tardio, os médicos me disseram que ele nunca mais seria normal;, lamenta essa mãe.
Ele já passou da adolescência, mas ainda brinca de carrinhos. Estuda em escola inclusiva, mas não consegue acompanhar os colegas de classe. Tem gostos próprios, mas nem sempre se expressa bem. Para amenizar, Ada conta com o apoio psicopedagógico. Quanto mais aprender e for autônomo, melhor. Para cuidar da capacidade motora, ele faz natação. De resto, é muito carinho e a medicação, que não reverte mais o quadro, mas evita pioras. Ela teme o futuro. ;Quem vai cuidar dele?;, questiona-se. E chora sem respostas.
Renato foi o primeiro caso de fenilcetonúria tratado em Brasília, em um tempo em que os médicos não dominavam as manifestações da patologia. Depois dele, apareceram mais três. Foi quando a Rede Sarah criou um serviço de atendimento especializado para cuidar dessas pessoas. Até hoje, os 22 pacientes com a doença no DF encontram ali o tratamento que precisam. Eles fazem exames periódicos de sangue para acompanhar as taxas da fenilalanina no sangue, além de terem consultas com nutricionistas e neurologistas. A Revista tentou por diversas vezes falar com a equipe do Sarah para ter mais detalhes desse acompanhamento, mas até o fechamento dessa edição, não obteve nenhum retorno.
Leia na edição impressa a reportagem na íntegra, conheça a história de outros portadores de doenças genéticas e os avanços alcançados sobre a fibrose cística
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