Revista

A mestra das sapatilhas

Há 50 anos, a mais famosa professora de balé da cidade dá aulas aos brasilienses. Bailarinos famosos deram os primeiros passos com Norma Lillia, que, nesta entrevista, fala sobre sua trajetória e lamenta o fato de a capital da República não ter o seu próprio corpo de dança

postado em 13/05/2012 08:00

Há 50 anos, a mais famosa professora de balé da cidade dá aulas aos brasilienses. Bailarinos famosos deram os primeiros passos com Norma Lillia, que, nesta entrevista, fala sobre sua trajetória e lamenta o fato de a capital da República não ter o seu próprio corpo de dança

Turma avançada. As meninas e os três únicos rapazes matriculados na academia se alinham na barra que contorna toda a ampla sala de aula à espera dos comandos da professora. Ela tira os sapatos de salto e calça uma sapatilha. A música começa. Os bailarinos ainda estão em silêncio. Cinco, seis, sete, oito, e a turma começa os movimentos, coreografados. Além da música, só se escutam os barulhos das sapatilhas se arrastando pelo chão emborrachado da sala principal da academia, instalada há 40 anos no mesmo endereço, na 108 Sul. Norma Lillia Biavaty quase não fala. Observa, atenta. Só aumenta a voz quando o conjunto da obra não lhe satisfaz. Arruma os calcanhares dos displicentes, chama a atenção para a postura. O aquecimento começa com uma sequência de pliés. Incontáveis desde que fez o primeiro, aos 3 anos de idade. Hoje, com 66, tem no currículo uma extensa lista de coreografias premiadas, apresentadas pelo Brasil e pelo mundo. Dançou ao lado de grandes nomes da dança clássica. Abrigou Ana Botafogo e seu primeiro marido, o bailarino Graham Bart, sob seu teto. Este mês, completa 50 anos desde que deu a primeira aula de balé na capital, em uma sala ainda improvisada no Colégio Nossa Senhora do Rosário, quando Brasília nada mais era do que um enorme canteiro de obras.

Norma Lillia costuma dizer às alunas, no primeiro dia em que sobem em uma sapatilha com ponta de gesso, que não adianta reclamar, porque, a partir de agora, a dor é para sempre. De fato, desde que calçou um par pela primeira vez, nunca mais desceu. Ela morava em Goiânia e vivia ensaiando coreografias quando foi chamada para se apresentar em um congresso de jornalistas e divertir os convidados. Ao vê-la dançar passos inventados, o jornalista Assis Chateaubriand encantou-se com a menina. Pediu apoio do governo do estado, conseguiu uma transferência para o pai de Norma, funcionário público, e levou-a para o Rio de Janeiro para que pudesse cursar a tradicionalíssima escola de balé do Teatro Municipal. Aos 6 anos, antes mesmo que fizesse a primeira pirueta diante dos espelhos do Teatro, já era pupila do coreógrafo tcheco Vaslav Veltchek, na época professor da escola.

Há 50 anos, a mais famosa professora de balé da cidade dá aulas aos brasilienses. Bailarinos famosos deram os primeiros passos com Norma Lillia, que, nesta entrevista, fala sobre sua trajetória e lamenta o fato de a capital da República não ter o seu próprio corpo de dança"Assisti a um teste dessa ;microbailarina; e fiquei perturbado diante de um fenômeno que daqui a pouco será minha aluna", escreveu o tcheco, na época, em um português ainda um pouco confuso. Era 1951. "Fui durante oito anos diretor do corpo de balé e professor da escola do Teatro Municipal de Paris, mas confesso sinceramente que com esta idade nunca encontrei expressão, ritmo e segurança física em conjunto como possui este presente de Natal", continuou no relato. Concluiu em três anos o curso que, à época, levava seis. E aos 14 -- trancou a matrícula por alguns anos para concluir os estudos -- formou-se bailarina pela escola carioca de dança clássica. Veio para Brasília acompanhando o pai, transferido do Rio de Janeiro, e encontrou uma cidade nada, onde começou, plié a plié, a ensinar os primeiros passos de balé às meninas que aqui estavam, ainda meio de improviso. "Imagina. Eu sabia tanto. Como ia ficar sem dançar aqui?", diz, sem falsa modéstia. Com as primeiras alunas, formou o Grupo Braziliense de Ballet, que mais tarde acabou dando origem à Trupe 108, com a qual se apresentou mundo afora.

Hoje, 50 anos depois da primeira aula em terras candangas, tem ex-alunos formando-se pelo Bolshoi, a toda-poderosa escola russa, dançando como solistas em Nova York ou dando aula de dança em Amsterdã. Dedica, diariamente, 12 horas aos seus bailarinos, na academia que leva seu nome e que hoje é uma das mais tradicionais da cidade. Só lamenta o fato de, mesmo depois de tanto tempo, a capital ainda não ter conseguido formar seu corpo de baile, uma escola de dança oficial, e de não ter um belo teatro. "Um país sem arte, é um país morto. E nossa cidade é pobre no que se refere à dança", lamenta. Enquanto concedia a entrevista à Revista, ouvia-se as passadas das bailarinas na sala ao lado, ritmadas pelas palmas de um professor. Norma Lillia e dança são quase uma mesma entidade. Não são apenas as paredes do seu escritório que são cercadas pela dança. "Eu não me ligo muito em foto ou em datas porque não consigo diferenciar um ou outro momento da minha vida como um grande momento. As coisas foram acontecendo. A minha vida é isso. Eu danço desde que me entendo por gente."

Os primeiros passos
Há 50 anos, a mais famosa professora de balé da cidade dá aulas aos brasilienses. Bailarinos famosos deram os primeiros passos com Norma Lillia, que, nesta entrevista, fala sobre sua trajetória e lamenta o fato de a capital da República não ter o seu próprio corpo de dançaNorma Lillia deus os primeiros passos ainda sozinha, em Goiânia. Em 1949, foi chamada para apresentar-se a jornalistas reunidos em um congresso. Dois anos depois, já estava no Rio de Janeiro, preparando-se para entrar para a Escola de Dança Maria Olenewa, a escola de balé do Teatro Municipal.
"Minha família inteira se mudou para o Rio para que eu pudesse estudar balé. Quando cheguei lá, com 6 anos, não me deixaram fazer a matrícula na escola porque era só para meninas a partir de 7 anos. Então, fui ter aulas particulares com Vaslav Veltcheck, um professor tcheco que dava aulas no teatro. Ele me tomou como sua pupila e, quando entrei no teatro, pulei do primeiro para o segundo ano direto, porque tinha notas superiores a 8. Do segundo, fui direto para o quarto. Foi quando minha mãe trancou minha matrícula para que eu pudesse estudar. Porque eu respirava balé. Era dança de segunda a segunda, o dia inteiro. Quando finalmente voltei, não fiz o quinto também. Aos 13, já estava cursando o último ano."

Brasília e o Grupo Braziliense de Ballet
Ela diz que viveu "os melhores anos do Rio de Janeiro". Pegava ônibus, ia do Flamengo a Ipanema, andava pelo centro despreocupadamente. Quando seu pai foi transferido para Brasília, encontrou uma cidade com pouco mais que meia dúzia de prédios erguidos e outros tantos ainda apenas no esqueleto. Teve medo de abandonar de vez o que mais sabia fazer e foi bater em um colégio de freiras. Era maio de 1962. Formava-se ali a primeira turma do balé Norma Lillia Biavaty, que depois daria origem ao Grupo Brasiliense de Ballet, primeiro corpo de baile da capital do país.
"Quando cheguei aqui, não tinha nada. Era uma quadra aqui, outra acolá. Falei, ;não, não dá;. Decidi abrir uma escola. Eu tinha 14 para 15 anos. Estudava no Colégio Rio Santa Rosa de Lima, no Rio e, quando cheguei aqui, existia o Colégio Nossa Senhora do Rosário, das mesmas irmãs. Calhou que, quando dava 18h, elas liberavam as carteiras de uma das salas de aula, colocavam as barras e eu dava aula para quem existia aqui nesta cidade. Em 1972, já estávamos aqui na 108 Sul. Aí falei: ;bom, gente, fiquei a vida inteira dançando para agora virar professora?; Então, fui criar um corpo de baile. As crianças foram crescendo devagarinho. Dez anos depois, criei o Grupo Braziliense de Ballet. E aí comecei a dançar com elas."

O balé é uma vaidade
Há 50 anos, a mais famosa professora de balé da cidade dá aulas aos brasilienses. Bailarinos famosos deram os primeiros passos com Norma Lillia, que, nesta entrevista, fala sobre sua trajetória e lamenta o fato de a capital da República não ter o seu próprio corpo de dançaToda bailarina tem seus anos de glória. Os grandes solos, os grandes palcos. Mas tem também o que Norma chama de "anos negros", quando o corpo já não permite que os movimentos tenham a perfeição rígida que a técnica exige. Aposentar dançarinas e dar chance a novas pupilas é uma das tarefas mais cruéis. Porque mexe com algo que, segundo ela, quase todo bailarino tem, ainda que reprimido: a vaidade.
"O balé é uma vaidade. O bailarino é vaidoso. Porque você joga sua imagem no palco como um personagem e, por isso, se cria uma vaidade muito grande. Você quer ser aquilo a vida inteira e a vida inteira, dançar. Só que a vida não deixa. Tudo vai diminuindo. A força, a elasticidade. Você já começa a repetir sempre as mesmas coisas, os mesmos personagens. Se há três anos aquela pessoa está dançando do mesmo jeito, é hora de trocar, dar oportunidade a novas meninas que estão surgindo. Isso sempre vai existir. O balé é uma carreira curta. Então vêm os anos negros, porque as pessoas não podem mais dançar e tem sempre as meninas que estão sublimes porque tiveram uma oportunidade. A dança, em suma, é isso."

As crianças de Santa Maria
Quando a Unicef completou 50 anos no Brasil, a bailarina foi convidada para montar um espetáculo musical em comemoração ao cinquentenário da instituição. Os protagonistas, no entanto, não seriam bailarinos, mas crianças carentes de Santa Maria, que nunca haviam tido nenhum tipo de contato com o balé clássico. Na audição, estavam presentes 2,5 mil crianças. Apenas 250 participariam do espetáculo. Foram quatro meses de ensaios diários até a apresentação, na Sala Villa Lobos do Teatro Nacional.
"Foi quanto eu tive que conviver com outra realidade, que não é a de filhinho de mamãe que pode pôr a filha para fazer balé. Porque o balé é sim um arte elitista. Por mais que se queira democratizar, sempre vai ser. A gente ensaiava no pátio de recreio de uma das escolas classe de Santa Maria. Aqui os pais colocam as crianças porque eles querem. Lá, os pais não queriam porque os meninos deixariam de trabalhar, de fazer bico, de lavar, de passar roupa. Eu recebia crianças com queimaduras de ferro, com marcas de corrente e cinto. Eu me lembro o dia que essas crianças vieram de ônibus ensaiar na academia e pararam na frente do espelho. Elas ficaram loucas. Ficavam olhando para aquele espelho. Foi maravilhoso. Tanto que no ano seguinte a Unicef pediu para repetir e dançamos novamente no Teatro da Funarte."

Trupe 108 Cia. de Dança
O Grupo Braziliense de Ballet acabou dando lugar, nos anos 1990, à Trupe 108 %u2014 referência ao endereço da academia. Foram cinco espetáculos e apresentações pelo Brasil e Estados Unidos. O balé da Trupe usava a técnica do clássico, mas sob nova leitura. Os espetáculos No limite e Sete palavras quaisquer, por exemplo, coreografados por Norma Lillia, apresentaram-se em Miami em 1991..
"Eu acabei matando o Grupo Braziliense de Ballet e ele e virou Trupe 108. Nós viajamos Estados Unidos, Portugal e fizemos quase o Brasil todo com os cinco espetáculos. Foram No limite, Sete palavras quaisquer, Memorial de Maria Moura e Medeia - Mulher arde de amor e põe fogo na amante do marido. Esse último foi um trabalho maravilhoso, porque o Alceu Valença me deu todas as música que eu queria trabalhar. Depois, o Antônio Madureira, que é um compositor de Recife, fez a releitura dessas músicas do Alceu para o espetáculo. E foi todo feito na base do Cordel. São trabalhos totalmente diferentes."

Entre a vida e a morte
Embora dança e vida tenham para a bailarina o mesmo peso e significado, não foi sob o holofote de um palco que ela passou pela maior prova da sua vida, mas debaixo da luminária de um cirurgião. Há 12 anos, Norma se submetia a uma cirurgia de redução do estômago. Um problema na tireoide fez com que a dançarina, até então esguia, engordasse 60kg. Um erro médico, no entanto, quase fez com que perdesse a vida. Havia um problema com um dos exames pré-operatórios de Norma que não foi levado em consideração pela equipe cirúrgica. Os médicos chegaram a desenganar a família.
"Eu tenho três filhos. Nenhum deles bailarino. O mais velho é sociólogo e dá palestra sobre acidentes de trânsito no Brasil inteiro. Tem 47 anos. O do meio hoje mora na Inglaterra e tem dois filhos. Já o Rafael, 12 anos mais novo é de 1979, quando parei com o clássico. Depois dele, tive um problema de tireoide seríssimo. Engordei 60kg e precisava fazer uma cirurgia bariátrica. Era para eu me recuperar em uma semana. O médico era, na época, o melhor nesse tipo de cirurgia. Mas a primeira cirurgia não cicatrizou e o líquido vazou para as cavidades. O cirurgião chamou minha família e disse que eu não passaria daquele dia. Eu estava internada em Goiânia e minha família inteira se mudou para lá. Mas eu não tenho memória dessa época. Lembro apenas de algumas bolsas penduradas sobre minha cama. Dois meses depois que saí do hospital, voltei ao peso normal que eu tinha quando dançava. E voltei a dançar."

Por que o Rio faz falta
Norma fundou na capital sua primeira escola de dança, levou aos palcos do Teatro Nacional seus espetáculos com a escola Norma Lillia, o Grupo Braziliense e a Trupe. Mas, ainda assim, lamenta que a cena cultural de Brasília seja ainda tão pobre quando o assunto é dança. A mesma vaidade dos bailarinos é, ela acha, um pouco do que impede a cidade de ter o seu corpo de baile: todo mundo quer ser o dono.
"Infelizmente, estamos em uma capital da República que não tem corpo de baile. Todo bailarino acaba correndo para fazer concurso público porque não tem um corpo de baile que vai te pagar para você dançar. Um país sem arte é um país morto, sem vida. E a nossa capital não tem vida no que se refere à dança. Ela tem uma orquestra, mas com um teatro caindo aos pedaços. Nisso a gente sente falta do Rio. Daquela imensidão de teatro, do público que é ávido. Não tem uma escola oficial, um corpo de baile. O Dulcina acabou. O CCBB é aquela lonjura. Eu acho Brasília muito seca com relação a isso. E sabe por que não tem corpo de baile? Briga. Cada um quer ser o diretor, cada um quer mandar. Os profissionais são completamente desunidos. E quanto menos você sabe, mais você briga. Desde que eu me entendo por professora de balé na cidade, fazem reuniões querendo formar um corpo de baile, mas não vai para frente. Ainda bem que eu vou morrer e isso não vai se resolver. Deixa para os outros brigarem. Eu acho que o profissional, antes de brigar, tem que dançar, mostrar seu trabalho, viajar, receber críticas construtivas e destrutivas e, mesmo assim, continuar trabalhando. É difícil? É. Fica rico? Não. Dá para viver? Dá. Agora%u2026 se não for assim, você jamais vai ser um profissional de dança. É uma luta diária, uma guerra."

Tags

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação