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Em busca de justiça

A empresária Rosane Gutjahr, diretora da Associação de Familiares do Voo 1907, fala de sua batalha para conseguir a condenação dos pilotos que provocaram a queda do avião da Gol

postado em 13/05/2012 08:00
A empresária Rosane Gutjahr, diretora da Associação de Familiares do Voo 1907, fala de sua batalha para conseguir a condenação dos pilotos que provocaram a queda do avião da GolQuando o telefone tocou na noite do dia 29 de setembro de 2006, a empresária Rosane Gutjar ouviu um grito agudo de desespero do outro lado da linha. Naquela sexta-feira, ela soube que Rolf não voltaria para casa. Mas a tristeza dela e de outras esposas, maridos, pais e filhos das 154 vítimas que morreram no voo 1907 da Gol, atingido pelo jato Legacy em Mato Grosso, logo teve que se transformar em determinação para enfrentar, até hoje, uma briga por justiça e condenação dos pilotos Joseph Lepore e Jan Paul Paladino.

Rosane não teve tempo para chorar. Teve de reunir forças para cuidar da empresa que havia montado com o marido em Manaus, da filha Luiza, hoje com10 anos, e da casa. Ela também precisou aprender tudo sobre legislação e o que mais fosse preciso sobre aviões ; da engrenagem à caixa-preta ; até tomar a frente da Associação dos Familiares e Amigos das Vítimas do Voo 1907. Diretora da organização, Rosane teve de enfrentar o pânico de avião que a atormentou depois da morte do marido. Afinal de contas, precisava sair de Curitiba, onde mora, para lidar pessoalmente com autoridades do governo federal e entregar-lhes documentos importantes para compreensão do caso.

Apesar de condenados pela justiça brasileira, os norte-americanos Lepore e Paladino não precisaram cumprir os quatro anos e quatro meses da sentença em regime fechado nos Estados Unidos. A pena foi convertida a serviços prestados à comunidade. A sentença lida em 2011 ainda provoca revolta entre os familiares, que receberam outra péssima notícia no último dia 12. A Administração Federal de Avião dos Estados Unidos respondeu à Agência Nacional de Avião Civil que o processo contra os pilotos já prescreveu de acordo com a legislação dos EUA. Mesmo assim, a associação diz não desanimar e promete continuar a briga pela cassação dos brevês de Lepore e Paladino.

Dentro de cinco meses, o acidente completará seis anos e Rosane não pretende esmorecer frente a tantos percalços. "Claro que gostaria que isso tivesse sido encerrado, mas já esperei cinco anos e meio e espero mais três, quatro, cinco meses; O que sinto é uma agonia misturada à ansiedade. Queremos que esses pilotos paguem pelo crime para que, mesmo de uma forma incompleta, possamos dar continuidade a nossa vida. Senão, a sensação de vazio fica latente", desabafou à Revista.

Como foi o dia em que você soube do desastre com o avião da Gol, em que estava seu marido?
Nessa época, a Luiza estava no jardim de infância e saía às 17h15 da escola. O acidente aconteceu por volta das 16h. Fui pegá-la na escola e fomos para casa. Rolf estava vindo de Manaus para Brasília. Nosso combinado era de que quando ele chegasse em Brasília, ele me ligaria. Antes de sair de Manaus, ele ligou e disse: "Nega, estou saindo daqui. O voo tá atrasado, mas quando chegar em Brasília te ligo." Daí eu perguntei: "Tu pegou uma japona? Porque está frio." Ele disse: "Lá em Brasília compro, não precisa." Depois, ele quis falar com a Luiza: "Filha, papai tá indo só para te ver." Digo isso porque ela caiu em prantos quando soubemos do acidente. Foram momentos difíceis porque ela achava que o pai tinha morrido por causa dela. Depois ela entendeu que não tinha culpa. Bem, nesse dia (29 de setembro de 2006), cheguei em casa depois de pegar Luiza na escola e minha mãe estava ao telefone. Disse para ela desligar porque o Rolf deveria ligar a qualquer momento. Mas ele não ligou. Jantamos e nada. Até que, depois de um tempo, a babá da Luiza atendeu uma ligação e começou a chorar: "Quando é que caiu esse avião?". Pronto. Na hora, liguei para agência de turismo, que me atendeu chorando. Daí, eu já sabia. Tinha acontecido. Mesmo assim, mesmo sabendo que o avião tinha caído e que era quase impossível sobreviver alguém, por alguns momentos eu tinha esperanças; Pensava: "Ele conseguiu sobreviver dentro da mata ou um grupo de índios o encontrou e a qualquer hora ele aparece." Tu (sic) pensa isso. Não só eu, muitos dos outros familiares também. No meu caso e de outras famílias, eu não consegui ver o corpo do meu marido. A coisa não se fecha. Você não consegue;Desde então, estamos nessa briga.

Vocês tinham muitos planos na época anterior ao acidente?
Antes disso, tínhamos um plano: no final de 2007, ele iria parar de trabalhar. Eu já tinha ido para Curitiba, trabalhava por telefone, administrativamente. Ele ainda embarcava toda segunda-feira para Manaus e voltava às sextas para ficar principalmente com a nossa filha Luiza. Um mês antes do acidente, ela havia feito quatro anos. Luiza foi um presente na nossa vida em todos os aspectos. E se tu (sic) olhar para ela, vai que é a cara dele. Bem, nessa época, estávamos pensando: nossa vida está feita, queremos curtir nossa filha, curtir o casamento. Rolf já sonhava com os 15 anos da Luiza, projetava o futuro dela: queria que ela fizesse faculdade na Alemanha (país de origem da família paterna). Mas aconteceu o acidente e;. Na família de qualquer um quando algo assim acontece há um corte profundo.

E como você acabou tomando a frente da Associação de Familiares e Vítimas do Voo 1907?
Primeiro, porque sou gaúcha (risos). Depois, porque quando eu dizia para meu marido: "Eu te amo", realmente o amava (pausa). Se isso tivesse acontecido comigo, ele também estaria fazendo algo. Sei que naqueles dois minutos que ele estava em queda livre, sabendo que ia morrer, o pensamento dele foi para a filha e para mim. Então, eu preciso e tenho que fazer isso por ele, por mim e pela minha filha. Os pilotos que cometeram esse crime não podem levar também a dignidade dele, minha e da minha filha. Não posso deixar. Daí, a gente deixaria de ser humano. Não estou brigando por dinheiro. Recebi propostas, recusei todas. O que eu quero é que as pessoas que mataram meu marido paguem pelo crime. Essa é uma forma de resgatar esse orgulho, essa dignidade. Então, fui tomando a frente da associação de uma forma que nem eu mesma sei. Claro que isso se tornou mais forte a partir do momento em que algumas pessoas, por razões diversas, terminaram se afastando. Mas seja com 15, 10, cinco pessoas ou mesmo sozinha, vou continuar; Pela saudade que sinto dele, pelo amor que sinto por ele. Continuo até hoje com minha aliança de casada. Para mim, continuo casada. Também é pela minha filha que continuo buscando justiça.

Apesar de os dois pilotos do Legacy ; Joseph Lepore e Jan Paul Paladino ; terem sido julgados e condenados em 2011, a sentença não foi positiva. Por que?
Essas pessoas que morreram, infelizmente não voltam e a gente tem que ficar com isso aqui (pausa, aponta para o coração), mas se a gente não fizer alguma coisa, quando digo a gente, digo todos nós, brasileiros, o que deixamos em aberto? Além da nossa dor pessoal, a ideia de que outros podem vir para o Brasil, "matar e botar fogo que o pessoal agradece e ainda dá um macaco de presente", como disse o ator Silvester Stallone. O jornalista que estava no Legacy foi processado e condenado aqui no Brasil por ter dito: "Brasil é terra de tupiniquim. Só tem samba, carnaval e prostituta." A conversão da pena para prestação de serviços é um absurdo. Esses dois pilotos vão ter de servir cafezinho em uma organização brasileira nos Estados Unidos, quando tiverem disponibilidade de horário. Isso é pena para quem matou 154 pessoas? Se a gente deixa isso em aberto, daqui a pouco, outro acidente pode acontecer com minha filha, com o teu filho. Para que isso não volte a acontecer de novo, por justiça é que a gente briga.

Você também teve que enfrentar o pânico de avião para poder levar adiante essa briga?
Sempre tive medo de avião. Mas, pela profissão, tinha que viajar. Só voltei a viajar em setembro de 2011, passados cinco anos do acidente. Foi quando tivemos uma audiência pública na Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados, que rendeu uma viagem de autoridades brasileiras aos Estados Unidos. Para viajar para Brasília, tomei remédio. Minha filha também tinha começado a ter medo e só voltou a viajar de avião no final do ano passado. Ela me dizia que não conseguia entrar no avião. Foi difícil.

Você já voltou a Manaus depois do acidente?
Eu mesma ainda trato as coisas da empresa apenas por telefone. Antes do acidente, Luiza me dizia que estava com saudades de Manaus e, em agosto de 2006, fomos nós três para Manaus. Ainda passamos por Pernambuco e depois São Paulo. Foram poucos dias e muitas viagens durante essas férias. Algo que jamais planejaríamos porque nem era período de recesso da escola da Luiza. Depois do acidente, pensei: "Meu Deus;Será que essa foi a despedida?" A imagem de Manaus que ficou para Luiza foi dela sentada no colo de Rolf, no escritório dele. O mais incrível é que agora, depois de cinco anos e pouco, fui na sala dele. Meu irmão está lá na empresa. Ele é meu braço direito, "meus olhos". Não mexeu em nada na sala. Foi muito triste e feliz ao mesmo tempo entrar lá. Não sei te explicar a mistura de sentimentos. Triste porque na sala havia três caixas com coisas dele. Quer dizer, depois de tanto esforço para montar a empresa, sobravam apenas três caixas do meu marido. Em contrapartida, no mural dele, atrás da mesa, havia aqueles bilhetinhos, desenhos que a Luisa fez quando esteve em Manaus em 2006. Trabalhos que ela fazia na escola e mandava para ele. Tudo estava lá na parede. Meu irmão me perguntou se eu queria que ele deixasse as fotos em cima da mesa e os desenhos na parede. Falei que ele podia tirar as fotos da mesa, sem problemas. Agora os bilhetinhos, pedi para deixá-los lá.

Há pouco mais de um mês, autoridades americanas se recusaram a punir os pilotos do Legacy alegando que, pela legislação dos Estados Unidos, o processo já prescreveu. Como você e outros familiares da associação receberam essa notícia?
A condenação de quatro anos e quatro meses, está em segunda instância para que a condenação seja a perda do brevê e os serviços prestados sejam na verdade prisão nos Estados Unidos, por dois motivos: porque o Brasil não tem tratado de extradição com os EUA e segundo porque até fazer com que eles voltem para o Brasil para cumprir a pena levaria muito tempo. Eles podem alegar "n" motivos, mas temos provas que agiram de forma criminosa. Por isso eles foram condenados e o processo continua andando. Estamos confiantes quanto a posição da Anac, que deve entregar um dossiê dentro de 60 dias. No dia 17, durante a visita de Hillary Clinton ao Brasil, o ministro das Relações Exteriores Antônio de Aguiar Patriota disse que irá colocar o assunto em pauta. Ele foi o primeiro, na época ainda como secretário, a cobrar uma atitude dos Estados Unidos quanto ao crime cometido pelos pilotos. Por tudo que ocorreu, por causa do desrespeito dos EUA mediante uma decisão brasileira o caso está sendo analisando não como nosso, mas como caso de soberania nacional. Ou seja, esse já não é mais um caso de 154 famílias. Em setembro, completam seis anos do acidente. Claro que gostaria que isso tivesse sido encerrado. Eles (Lepore e Paladino) não deveriam continuar pilotos, mas se já esperei cinco anos e meio, espero mais três meses, quatro meses; O que sinto é uma agonia misturada à ansiedade para que esses pilotos paguem por esses crime. Para que mesmo de uma forma incompleta possamos dar continuidade a nossa vida. Precisamos concluir isso, senão a sensação de vazio fica latente.

E de onde você tira forças para trabalhar todos os dias, cuidar da sua filha e brigar por justiça?
Essa força vem daquilo que te disse: do amor que eu tinha pelo meu marido. Vejo minha filha (abre a bolsa e mostra o desenho de um coração partido) e como ela sente falta do pai. Desde a morte do Rolf, ela começou a fazer terapia porque achava que ele tinha morrido por causa dela. Teve várias situações no dia a dia, como até pouco tempo atrás, em que ela não entendia a morte como algo definitivo. Tanto que ela ainda deixava o chinelo do pai na porta. Hoje ela já sabe que a morte é definitiva. Então, minha força para levantar e enfrentar essa batalha também vem daí: dessa dor que ela sente e que não posso tirar. Da minha dor e do amor que eu sentia por ele. Às vezes chega o final do dia e lembro de um ditado que minha mãe falava: "Quanto mais tu (sic) abaixa, mais o fundo da tua calça aparece" (risos). Então, não baixo a guarda. Ainda não tive tempo de parar, chorar, gritar, espernear. Tem gente que me acha forte, mas não sou. É que se chorar resolvesse alguma coisa, estaria tudo pronto, resolvido e, infelizmente, a vida está me mostrando que tu (sic) precisa brigar muito para provar, às vezes, o óbvio.

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