Revista

Todo o lirismo da vida

Uma semana antes de completar 90 anos, Asta-Rose Alcaide recebeu a equipe da Revista em seu apartamento, na Asa Sul. Cercada de boas lembranças, mas com intenso apego ao presente, ela escreve um livro e se prepara para ser homenageada no 2º Festival de Ópera de Brasília

postado em 03/06/2012 08:00

Uma semana antes de completar 90 anos, Asta-Rose Alcaide recebeu a equipe da Revista em seu apartamento, na Asa Sul. Cercada de boas lembranças, mas com intenso apego ao presente, ela escreve um livro e se prepara para ser homenageada no 2º Festival de Ópera de Brasília

;Nunca esperei viver até os 90 anos. Calculava uns 72.; O erro de cálculo de Asta-Rose Jordan Alcaide, que completou suas nove décadas há exatos sete dias, não é culpa do acaso. A longevidade deriva do corpo moldado a sapatilhas, de um cardápio livre de gorduras e frituras, do álcool restrito aos brindes com os amigos, de um vocabulário isento de palavras negativas e de uma incessante atividade intelectual. O efeito positivo dos anos a mais, no entanto, não é colhido apenas pela mulher nascida quando o país respirava os ares da Semana de Arte Moderna. Há 37 anos, Brasília bebe do suculento caldo de cultura servido por Asta-Rose.

Não é à toa que ela é a grande homenageada do 2; Festival de Ópera de Brasília, que começou na última sexta-feira (veja programação nas páginas 10 e 11), tamanha a presença na cena artística brasiliense. Nem precisava de tal distinção. ;É um reconhecimento muito bonito, mas não acho necessário. Não me acho extraordinária pelo que fiz. Fui a pessoa que veio no momento certo com o conhecimento certo. Eu penso assim. E enquanto tiver saúde, vou trabalhando. Acho ótimo.;

Trabalhando é um modo de dizer. Asta-Rose fez mais. Durante alguns anos, organizou palestras sobre ópera. Educava os ouvidos brasilienses, colocando na vitrola do Hotel Nacional e, depois, na Sala Alberto Nepomuceno, os seus bolachões trazidos da Europa. Traduzia e explicava as óperas para um público sedento, mas curioso em relação às manifestações artísticas. Em 1977, fundou a Associação Ópera-Brasília e, ao longo dos anos, montou 18 espetáculos na capital. Pintou cenários, confeccionou e ensinou a fazer figurinos, produziu e divulgou peças. Conseguiu bolsas para cantores líricos da cidade estudarem na Itália, na Espanha, na Alemanha e nos Estados Unidos. Contribuiu também em projetos sociais e educativos, em especial com a então primeira-dama Ruth Cardoso. Foi diretora artística do Teatro Nacional e ajudou maestros na Orquestra Sinfônica de Brasília.

Para a cidade, foi uma sorte e tanto tê-la aqui. Ela, no entanto, considera um privilégio a possibilidade de interferir tão positivamente na vida cultural da cidade. ;Poder usar a experiência para o benefício de uma quantidade grande de pessoas, isso sim é uma grande satisfação.; Se a contribuição não foi pouca, tampouco é considerada suficiente. Tanto que ela não admite parar. Diante da pergunta ;como está a vida aos 90 anos?;, ela responde: ;Me sinto absolutamente com falta de trabalho;.

Aposentada (embora não parada) desde o fim de 2010 e, após uns meses de cama para tratar de uma fratura no fêmur ; ;sou especialista em quebrar ossos;, brinca ;, Asta-Rose sente-se pronta para encarar novos desafios. Estuda propostas e pensa em reeditar as palestras educativas sobre óperas. Com a ajuda de uma secretária, separa material para escrever um livro. Há dois editores interessados. Acervo não falta. Papéis, livros, quadros, fotografias, documentos, discos, partituras, troféus estão espalhados por estantes, quartos e paredes do apartamento onde mora, sozinha, na Asa Sul. São recortes do conhecimento acumulado e de histórias, saborosas histórias.

Asta-Rose nasceu em Joinville, Santa Catarina, e foi batizada com o nome da avó dinamarquesa (Asta é o diminutivo de Astrid). Educada com base nos rígidos princípios luteranos, logo cedo aprendeu com a mãe que, ao amanhecer, é preciso se arrumar para o resto do dia. Portanto, os cabelos perfeitamente cacheados e arrumados, a roupa impecável, a maquiagem cuidadosa ; que a identificam onde quer que vá ou fique ; não se tratam de vaidade. É uma questão de princípio mesmo. ;Chinelo, só era permitido no andar de cima, onde ficavam os quartos de dormir;, conta.

Aos 15 anos, já havia pegado os livros de piano da única irmã e aprendido sozinha a tocar. Foi estudar em São Paulo, sabendo o que queria da vida: ser bailarina e estudar línguas, especialmente as germânicas e inglesas. Aos 17 anos, falava quatro idiomas ; hoje, é fluente em seis ; e pertencia a um corpo de baile. Talvez tivesse seguido o script traçado por ela própria, não fosse um fortuito encontro no Teatro Municipal de São Paulo. Lá, conheceu o português Tomás Alcaide, 22 anos mais velho, divorciado, que já era um famoso e reconhecido tenor, e que veio ao Brasil com um grupo de artistas europeus fugidos da guerra. Era também um galã, como dá para ver nas inúmeras fotos penduradas na parede da sala. ;Foi uma coisa imediata;, resume.

Uma semana antes de completar 90 anos, Asta-Rose Alcaide recebeu a equipe da Revista em seu apartamento, na Asa Sul. Cercada de boas lembranças, mas com intenso apego ao presente, ela escreve um livro e se prepara para ser homenageada no 2º Festival de Ópera de BrasíliaNão se desgrudaram a partir daí. Pouco mais de um ano depois, ela ganhava o sobrenome luso e partia com o amado rumo a Buenos Aires, na Argentina, onde ele cumpriria contrato de um ano e meio. ;Ele nunca gostou dessas bandas;, diz, para justificar a loucura de atravessar o Atlântico rumo a Lisboa, em meio às batalhas da Segunda Guerra Mundial. Ali, ficaram.
Durante 26 anos, o casal não apenas viveu a vida. Juntos, os dois a investigaram. Viajaram, leram, cantaram, tocaram, estudaram, frequentaram teatros, museus, cinemas; Com ele, Asta-Rose aprendeu tudo sobre óperas. ;Meu marido era sensacional, um grande artista, mas também uma pessoa extraordinária, muito inteligente, agradável. Nós combinávamos perfeitamente e havia muita admiração mútua.; Tomás morreu em 1967 e não houve outro. ;Tinha sido tão especial a nossa vida; Também sempre fui muito independente, então era difícil para os homens aceitarem isso.;

No ano passado, a viúva voltou a Lisboa para cremar os ossos do marido, levar as cinzas para Extremoz, cidade natal de Tomás, e depositar a urna aos pés de uma estátua erguida em sua homenagem. O nome dela está grafado junto ao monumento garboso do marido vestido de um dos personagens da Ópera Rigoletto. Em agosto, Asta-Rose vai novamente a Lisboa para uma exposição sobre os 10 maiores cantores portugueses de todos os tempos. Tomás ocupa lugar de destaque entre eles. Portugal não o esquece. Nem Asta-Rose. Na ópera preferida dela, do alemão Richard Wagner, Isolda morre de tristeza pela morte do amado Tristão, mas deixou essa parte só para a ficção e continuou vivendo (bem) a vida.

De volta ao Brasil
Uma semana antes de completar 90 anos, Asta-Rose Alcaide recebeu a equipe da Revista em seu apartamento, na Asa Sul. Cercada de boas lembranças, mas com intenso apego ao presente, ela escreve um livro e se prepara para ser homenageada no 2º Festival de Ópera de Brasília

Alguns anos após a morte do marido, Asta-Rose recebeu um convite da Embaixada dos Estados Unidos, onde trabalhava em Lisboa, para assumir a área de cultura da representação americana em Brasília. Encontrou uma capital muito diferente daquela onde havia pisado em 1962, movida pela curiosidade de conhecer uma cidade em construção. A terrível primeira impressão deu lugar ao encanto. ;Era uma cidade muito agradável, tinha um charme; Eu pegava meu carrinho, ia aos jantares nas embaixadas, frequentava todos os lugares, nunca tive um aborrecimento, nunca ninguém se meteu comigo. Se eu via uma mulher mais velha ou alguém com uma criança, eu parava e dava carona. Era super seguro. Também não tinha roubo nem gente safada.;

Hoje, ela lamenta a insegurança, o trânsito violento e a imagem da cidade comprometida pelas falcatruas políticas. Cidadã honorária desde 2009, não deixa de ser crítica à Câmara Legislativa e defende que as manifestações artísticas estejam sempre livres das influências políticas e partidárias. Os problemas da cidade, agora uma metrópole, no entanto, não interferem no amor por Brasília. ;Hoje é minha terra. Gosto muito daqui porque eu fui capaz e tive a oportunidade de realizar muitas coisas. Também conheci muitas pessoas, brasileiros e estrangeiros;, conta.

Vários se tornaram seus amigos. Alguns a visitam; muitos a encontram nos teatros e salas de exposição. Além de atuar nos bastidores da cena cultural brasiliense, Asta-Rose sempre foi uma consumidora voraz de arte. Talvez essa vivência tenha enxotado o fantasma da solidão. Praticamente todos os parentes já morreram. Também não teve filhos. ;Nunca engravidei e naquela época não havia tantos recursos;;, diz, sem demonstrar qualquer lamento.

Aliás, Asta-Rose não lamenta nem o destino, nem a passagem do tempo. Apenas reflete sobre ele. Sentada confortavelmente em sua poltrona, diz que sempre procurou acompanhar a passagem dos anos e extrair deles os ensinamentos. Por isso, os 90 anos não metem medo. ;Sempre tive uma coisa na cabeça: a gente deve viver conforme a idade que tem. Não vou achar que estou ótima e sair correndo, fazendo loucura. Tem que viver o presente, sem querer forçar nada, fazer o que pode, o que tem talento, nunca com a ideia de fazer o que fazia há 20 anos.; Ela descarta o pensamento de muitos de sua geração, que gostam de achar que ;antigamente era melhor;. ;Era só diferente. Nunca pensei que ia ver tsunamis, esses grandes terremotos. A gente vivia em outro mundo. Mas nunca deixei de acompanhar as transformações. Sempre pensei assim: vamos ver o que acontece.;

A tecnologia também não chegou a ser um susto. Usa muito a internet, sobretudo para trabalhar. Já as redes sociais; ;Vivem me convidando para entrar, fazer um perfil, mas eu não tenho tempo para isso. Quando quero falar com os amigos, eu ligo e falo.; Também faz parte da rotina ouvir ópera e música clássica, além de fazer seus exercícios matinais. Continua a se interessar em aprofundar-se nos assuntos.

Religião é um deles. Estudou várias, durante longo tempo, com marido. Foi criada sob os preceitos luteranos, conviveu com a família católica do marido. ;Santinhos não me dizem nada;, confessa, sem deixar de admirar a imagem de Nossa Senhora Aparecida, em uma das estantes. Impressionou-se com o espiritismo ao assistir a uma sessão com Chico Xavier e até achou que fazia mais sentido. Nenhuma, no entanto, a deixou 100% convencida. ;Alguma direção há neste mundo, não sei qual, não consigo chegar lá, saber exatamente, mas existe uma força maior ou tudo seria um caos. Já me aconteceu também de eu rezar muito e ter uma resposta, e acho extraordinário ver aquelas pessoas andando, com os pés esfolados, é sinal de que alcançaram uma graça. É muito da nossa cabeça.;

Dos mistérios que estuda, um lhe intriga especialmente: a EQM ou Experiência Quase Morte, um fenômeno que experimentou aos 27 anos. ;Estava com meu marido e um casal de amigos no cinema e, de repente, desmaiei. Mas ouvia tudo, estava lúcida. Via o desespero do meu marido chamando médico. Mas comecei a ver um túnel de luz fortíssima, com sombras que pareciam gente e a certa altura alguém me perguntou se queria seguir ou voltar a ser viva. Tive vontade de ir, mas optei por ficar;, conta pela primeira vez.

Durante anos, Asta-Rose ficou com isso na cabeça e, bem mais tarde, ouviu relatos parecidos de pessoas que passaram pela mesma experiência. Ainda hoje, lê artigos sobre o fenômeno. ;Aquilo me deu um descanso extraordinário. Fiquei até com uma pena de não ter ido (risos); Então a ideia da morte não me faz medo, não me deixa aflita. Só me preocupo para onde vão todas essas coisas, porque não tenho herdeiros. Estou aqui arrumando os livros, muitas coisas (de Tomás) já foram para Portugal, outras estou vendo o que fazer. Mas quero que fiquem com pessoas que se interessem.; Asta-Rose sabe bem o valor ; não apenas material ; que tem suas relíquias. Afinal, elas sempre foram excelentes companhias: ;Vivo bem comigo, não tenho nenhuma sensação de estar sozinha, vivo muito bem comigo. Vivi coisas boas, outras difíceis, mas isso é parte da vida, e vale a pena;.

Programação
2; Festival de Ópera de Brasília: 25 de maio a 24 de junho. Todos os espetáculos têm classificação indicativa livre. Entrada franca por ordem de chegada. Informações: (61) 3325-6256.
La Boheme ; 25, 26 e 27 de maio, na Sala Villa-Lobos do Teatro Nacional
Cavalleria Rusticana ; 8, 9 e 10 de junho, na Sala Villa-Lobos.
Carmen ; 21, 22 , 23 e 24 de junho, na Sala Villa-Lobos.
Todas as Óperas são gratuitas e a entrada do público será feita por ordem de chegada.
Horários: às sextas e sábados, os espetáculos são às 20h; aos domingos, às 17h

Tags

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação