Revista

O mundo visto por uma lente

Na era das câmeras digitais, dos smartphones e das redes sociais, clicar tudo e todos virou uma espécie de vício. Por meio da fotografia, a sociedade tem vivenciado uma revolução que vai muito além do simples ato de registrar um fato

postado em 15/07/2012 08:00

Na era das câmeras digitais, dos smartphones e das redes sociais, clicar tudo e todos virou uma espécie de vício. Por meio da fotografia, a sociedade tem vivenciado uma revolução que vai muito além do simples ato de registrar um fato;Você aperta o botão e nós fazemos o resto.; Esse era o slogan daquela que foi a mais importante fábrica de câmeras e filmes do mundo até o pedido de concordata este ano. A Kodak, criada por George Eastman em 1880, foi a primeira a apostar na popularização da fotografia. Mesmo investindo na propaganda que diz ser fácil fotografar, o processo, na verdade, era muito mais complexo e bem diferente do que vemos hoje com a consolidação da fotografia digital. Das revelações em laboratórios à impressão nos computadores, a fotografia digital conseguiu o que Eastman sonhou para a Kodak. Para se ter uma ideia, só em 2011 foram vendidas 144 milhões de câmeras digitais no mundo, segundo estimativa da consultoria GfK Retail & Technology. Desse total, 5,1 milhões só no Brasil.

O fato é que, se antes a fotografia era restrita a poucos, hoje o mundo se rendeu a cliques e flashes do cotidiano. O Brasil já se tornou o quarto maior consumidor do mundo de câmeras digitais, segundo pesquisa da fábrica japonesa Canon. Não à toa, uma das gigantes do mercado disse, em junho passado, que abrirá uma fábrica na Zona Franca de Manaus. A única sede da marca fora de território asiático deve concorrer com outros peixes grandes que investem no país. A Nikon é um desses ; outra empresa japonesa que abriu uma sede no país em abril do ano passado.

Os smartphones também têm parte na disseminação dessa febre pelo registro diário e instantâneo. A cada minuto, 29 smartphones são vendidos no Brasil. A estimativa é da empresa de pesquisa IDC, que calculou 15,4 milhões de aparelhos vendidos até o fim do ano. Outra vantagem é que, recentemente, os smartphones também puderam participar da maior rede social de fotos do mundo. Há dois meses, o Instagram deixou de ser um aplicativo exclusivo da Apple para ganhar usuários de outros celulares inteligentes. De acordo com dados da própria rede, antes dos usuários de Androids ; sistema operacional de smartphones que não são da Apple ; participarem do Instagram, eram 30 milhões de usuários. Depois que eles entraram, o número passou para 50 milhões e, a cada semana, 5 milhões querem compartilhar fotos e ;curtir; os registros de amigos e pessoas de todo o mundo.

Para os usuários da rede, o barato de fotografar no Instagram é poder experimentar efeitos visuais que nada mais são que antigos recursos de câmeras analógicas. Artigo vintage, as analógicas se tornaram referência para que aplicativos como o Instagram ;copiassem; os efeitos de Polaroids, Laikas ou Lomos ; câmeras consagradas de décadas passadas. Para o professor da Faculdade de Comunicação da UnB Marcelo Feijó, essa é uma grande qualidade do aplicativo. ;Ele arejou a linguagem fotográfica. De certa forma, e paradoxalmente, esse aplicativo agregou à fotografia contemporânea o passado, graças à possibilidade de experimentação de lentes. Você fotografa à moda de antigamente, chamando atenção para como a fotografia era feita há anos;, observa o fotógrafo.

Na era das câmeras digitais, dos smartphones e das redes sociais, clicar tudo e todos virou uma espécie de vício. Por meio da fotografia, a sociedade tem vivenciado uma revolução que vai muito além do simples ato de registrar um fatoEstaríamos, segundo Feijó, sendo alfabetizados na linguagem visual. O fotógrafo Kazuo Okubo, dono de uma galeria de fotos, concorda. Há décadas no mercado de foto publicitária, ele também aposta no aplicativo como forma de experimentação da fotografia. Tanto que, assim que o Instagram foi lançado, Kazuo começou a clicar e a compartilhar olhares com seguidores de diversas partes do país e do mundo. ;Hoje, observo que muita gente que no começo não entendia o que estava fazendo corre atrás de referências profissionais para aprimorar o olhar sobre como e o que fotografar;, observa.

Luiz Humberto Pereira Martins, decano da UnB, e um dos fotógrafos mais importantes do Brasil, faz parte da geração do analógico e observa esse movimento veloz da fotografia e da disseminação de imagens com certa perplexidade. ;Acho que um lado bom desse momento está no ato de fotografar como um exercício contínuo. Só que não é bem assim: as pessoas vão fotografando de forma muito caótica e maluca, sem o menor cuidado, sem pensar na fotografia antes de fazê-la. Acredito que vivemos um momento de muita rapidez, de pouca permanência e reflexão;, pondera.

Para o bem ou para o ;caos;, o fato é que a fotografia em seus diferentes suportes está na mão de mais pessoas de diferente culturas e classes sociais. Todas registrando a sociedade e suas nuances em tempo real. Isso porque a imagem prevalece como linguagem universal. Professor do curso de pós-graduação em marketing e comunicação digital do Centro Universitário Iesb, Marcelo Tognozzi arrisca um palpite. ;Não consigo imaginar textos prevalecendo sobre fotos. Creio que a internet tende a ficar cada vez mais visual. Até o Twitter, que no início era só texto curto, abriu espaço para as fotos. O Facebook já tem um serviço de mensagem que funciona com vídeo em vez de textos. Portanto, não vejo outro futuro que não esteja ligado à imagem e ao compartilhamento cada vez maior.;

Compartilhar ou não?
Na era das câmeras digitais, dos smartphones e das redes sociais, clicar tudo e todos virou uma espécie de vício. Por meio da fotografia, a sociedade tem vivenciado uma revolução que vai muito além do simples ato de registrar um fatoTudo é fotografável? Mesmo que a resposta seja positiva, ela implica, na maioria das vezes, em uma inevitável consequência: a publicação da imagem. Seja em uma rede social ou em álbuns virtuais, o destino da maioria das fotos digitais é ser conferida por amigos, amigos dos amigos e até mesmo desconhecidos, que conseguem burlar a privacidade de muitos usuários e escancarar a intimidade dos outros. Há dois meses, a atriz Carolina Dieckman passou por essa saia justa ao ver fotos íntimas sendo disseminadas na internet. Outra atriz, a norte-americana Scarlett Johansson, também foi exposta à opinião pública porque um hacker conseguiu invadir a conta do celular da heroína de Os Vingadores e mostrá-la seminua para todo o mundo.

Esse tipo de ações piratas acontece porque, segundo o professor Marcelo Tognozzi, estamos na era do compartilhamento. ;Quando alguém faz parte de uma rede social e torna público ; ou melhor, compartilha ; dados sobre trabalho, interesses e família, de certa forma está abrindo mão da sua privacidade em relação a esses dados;, destaca.

Essa superexposição mostra que o conceito de privacidade mudou de uma década para cá, quando as redes sociais ainda não tinham o mesmo alcance. O Facebook, que desbancou a popularidade do Orkut, já soma 800 milhões de usuários, segundo dados publicados no respeitado site de tecnologia Mashable. Desse total, 50% entra na rede social todos os dias para conferir imagens, vídeos e textos. Só de fotos, são 250 milhões inseridas diariamente. O reflexo não podia ser outro: cada vez mais os chefes sabem o que o empregado faz no tempo livre, o marido descobre flertes da esposa, os amigos se dão conta de que não foram convidados para a mesma festa e a lista de mal entendidos não para por aí.

;Nos Estados Unidos, por exemplo, há cinco, 10 anos, quando alguém queria cair na gandaia total, tomar um porre, fumar todos os cigarros e transar sem restrições ia para Las Vegas. Hoje, o que acontece em Las Vegas está no Facebook, no Twitter, no Flickr, no You Tube, etc. Essa transparência acaba afetando a vida das pessoas em relação à questão da privacidade. Mas, o que é compartilhado pode ser considerado privado? Privado, hoje em dia, é aquilo que não é compartilhado nem está disponível em celulares, tablets, laptops, micros, entre outros;, define Tognozzi. No fim das contas, a disseminação da fotografia em diversos meios ainda não encontrou o caminho que o especialista denomina de bom senso.

Leia a íntegra desta matéria na edição n; 374 da Revista do Correio

Tags

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação