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O peso das emoções

Não é a fome física que atormenta os comedores compulsivos. Em geral, lacunas emocionais desencadeiam o vício pela comida. E não adianta só a dieta. É preciso cuidar da mente

postado em 18/11/2012 08:00

Não é a fome física que atormenta os comedores compulsivos. Em geral, lacunas emocionais desencadeiam o vício pela comida. E não adianta só a dieta. É preciso cuidar da mente Desde a infância, o significado da comida vai além de sua função nutricional. Os alimentos fazem parte de reuniões sociais, das comemorações e são lembranças para toda a vida. A associação afetiva com a comida faz com que muitos busquem nela um refúgio nos momentos de tristeza, de ansiedade ou de raiva. Apesar de comum, porém, o comportamento pode tornar-se perigoso quando recorrente e, nos casos mais graves, pode levar ao desenvolvimento do chamado transtorno da compulsão alimentar periódica (TCAP).

A correlação entre comida e emoções é química. "Do ponto de vista neurológico, sabe-se, atualmente, que aqueles circuitos responsáveis pelo comportamento alimentar estão relacionados com aqueles que modulam, por exemplo, as emoções", explica Celso Alves, psiquiatra do Programa de Atenção aos Transtornos Alimentares (Proata), da Universidade Federal de São Paulo. A compulsão pela comida, no entanto, também é determinada por fatores genéticos, psicológicos e sociais. Baixa autoestima, dificuldade de impor limites, pouca flexibilidade, raciocínio extremista e impulsividade são traços comuns dos comedores sem controle.

Há uma forte sobreposição entre compulsão alimentar e transtornos de ansiedade e depressão. Alguns dados indicam que pelo menos a metade dos compulsivos são também depressivos, como explica Maria Angélica Nunes, psiquiatra do Grupo de Estudos e Assistência em Transtornos Alimentares (Geata). A associação de transtornos cria um ciclo vicioso e dificulta a cura. O compulsivo sente-se insatisfeito com o próprio corpo e busca uma compensação na comida, o que o faz sentir-se culpado. "A sensação de perda do controle alimentar pode desencadear um episódio depressivo, o qual, por sua vez, é um gatilho para novos episódios de compulsão alimentar", explica Celso Alves.

A doença se caracteriza basicamente pelo hábito de ingerir grandes quantidades de alimentos em um curto período de tempo. Durante esses episódios, as pessoas comem mais rápido do que o habitual e sentem vergonha e culpa no fim. "Alguns portadores de compulsão alimentar relatam que a sensação é a de que não são eles que fazem aquilo. É como se estivessem dissociados", afirma Celso Alves. Uma vez que o ataque começa, muitos só conseguem parar quando não há mais comida.

O sinal de alerta está na frequência com a qual se recorre a alimentos para lidar com frustrações e à intensidade dessa necessidade. "As compensações prazerosas, pela alimentação ; ou por outros meios, como comprar, jogar, se exercitar ou fazer sexo ;, podem até ser consideradas aceitáveis. Porém, a recorrência delas é que o torna o comportamento patológico", esclarece o psiquiatra Alexandre Pinto de Azevedo, coordenador do Grupo de Estudos em Comer Compulsivo e Obesidade (Grecco), do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina, da Universidade de São Paulo.

O vício pela comida se torna muitas vezes tão frequente que o indivíduo não é mais capaz de diferenciar quando sente fome ou apenas vontade de comer alguma coisa. Apesar de haver uma preferência por alimentos ricos em carboidratos, como pães e doces, muitos querem apenas livrar-se da ansiedade. "As pessoas com compulsão alimentar, com frequência, relatam não sentir fome, mas uma necessidade intensa de comer, de colocar algo na boca numa tentativa de atingir algum alívio emocional ou quando estão entediadas", afirma o psiquiatra Celso Alves.

A relação com a alimentação e o desenvolvimento de hábitos saudáveis começa na infância. As memórias infantis e os padrões estabelecidos nessa fase ecoam na maturidade. "Nossas escolhas alimentares enquanto adultos também são influenciadas pela memória afetiva que desenvolvemos quando crianças. Aprendemos a saborear e escolher os alimentos não só por motivos racionais", esclarece Alexandre Pinto Azevedo. No caso dos comedores compulsivos, a relação se torna ainda mais primitiva e no momento dos episódios de excesso alimentar, a memória afetiva-alimentar comanda as escolhas.

Hora de decidir e mudar

O servidor público Maurício Guedes, 34 anos, chegou a pesar quase 150kg. Além do incômodo com o excesso de peso, descobriu que tinha esteatose hepática, um acúmulo de gordura nas células do fígado, que pode levar à cirrose hepática.

Maurício cogitou se submeter a cirurgia bariátrica, mas descartou a possibilidade por acreditar que, mais do que transformar o corpo, era necessário cuidar da mente. Ele buscou muitas formas de alcançar ao peso ideal, mas a dificuldade em mudar os hábitos impedia a manutenção do resultado. "A pessoa emagrece e sente que deve ser recompensada. E qual a recompensa? Comer mais. É a ideia de que, agora, você pode comer o que você quiser porque já emagreceu. E volta tudo de novo", opina. Com o objetivo de mudar o estilo de vida e melhorar a saúde, ele começou o tratamento no Centro Terapêutico Dr. Máximo Ravenna (veja quadro). De junho a outubro, foram 35kg a menos e a meta é perder mais 15 até o fim da terapia. Para Maurício, o grupo terapêutico é essencial para fortalecer o compromisso com o tratamento. "Você vê as pessoas na mesma situação, entra em sintonia e se sente responsável pelo grupo", afirma.

Não foi fácil. Antes, os momentos de lazer contavam sempre com a presença da comida. Quando ia chamar os amigos para sair, a escolha era um bom restaurante. Hoje, ele busca o prazer em outras atividades, como leitura, teatro e shows. Se come fora, não sai da dieta. "Não tenho a mesma compulsão. Quando você começa uma reeducação alimentar, se sente muito bem com seu estado físico e começa a ter disposição para outras coisas."


Você é um comedor compulsivo?

O CCA desenvolveu uma série de perguntas para ajudar a descobrir se é momento de pedir ajuda. Membros do grupo responderam afirmativamente à maioria das questões. Não é um teste decisivo, é apenas um mode de orientar a identificação de comedores compulsivos.

01. Você come quando não está com fome?

02. Você faz "farras alimentares" continuamente, sem razão aparente?

03. Você sente culpa e remorso depois de comer compulsivamente?

04. Você gasta muito tempo comendo ou pensando em comida?

05. Você espera com prazer e antecipação pelo momento em que pode comer sozinho?

06. Você planeja com antecedência essas comilanças secretas?

07. Você come sensatamente em companhia de outras pessoas, compensando depois, quando está sozinho?

08. Seu peso está afetando seu modo de viver?

09. Você tentou fazer dieta por uma semana (ou mais), somente para abandoná-la perto de sua meta?

10. Você fica ressentido quando outras pessoas lhe dizem para "usar um pouco de força de vontade" para parar de comer demais?

11. Apesar das evidências em contrário, você continuou a afirmar que poderia fazer dieta "por si mesmo", quando quisesse?

12. Você anseia desesperadamente por comer em um determinado momento, dia ou noite, fora das horas das refeições?

13. Você come para fugir de aborrecimentos ou dificuldades?

14. Você já esteve em tratamento por obesidade ou problemas relacionados a alimentação?

15. Seu comportamento alimentar faz você ou outras pessoas infelizes?

Entenda o método Ravenna

Inicialmente, são cortados os carboidratos refinados da dieta. E, em pequenas medidas, são permitidos alimentos de baixo índice glicêmico, entre proteínas, frutas, verduras e laticínios. Para aliviar a vontade de comer doce, o paciente pode tomar refrigerante zero e comer gelatina, em quantidades permitidas pelo nutricionista.

Os carboidratos refinados, como o açúcar, causam a compulsão alimentar. Quanto mais são ingeridos, mais vontade de comer se tem. Eles disparam a secreção de insulina, que aumenta a sensação de fome.

Trata-se de uma dieta de baixas calorias, numa quantidade abaixo do que o corpo necessita por dia, o que leva o organismo a queimar a sua própria reserva de gordura. Isso possibilita um emagrecimento rápido, além de disparar uma mensagem de saciedade ao cérebro, o que torna a dieta menos sofrível.

As refeições são fracionadas. No almoço e jantar, por exemplo, primeiro é servido um caldo quente que tem a função de frear a ansiedade com que a pessoa chega à mesa. Depois, é servida uma salada verde e, a seguir, o prato principal, que inclui uma proteína e um acompanhamento. A sobremesa pode ser uma fruta ou uma gelatina, e um café.

Os grupos de apoio são mediados por terapeutas, entre psicólogos e psicanalistas. São momentos em que não se fala de comida e sim de vida. O mais importante é que o paciente se aproprie do conceito de limite e que ele deseje trocar a comida por uma nova e positiva expectativa diante da vida.

Exercícios físicos orientados são indicados durante o tratamento. Depois que se atinge o peso ideal, aos poucos, alimentos integrais e outros tipos de carboidratos vão sendo reinseridos ao cardápio.

Fonte: Centro Terapêutico Máximo Ravenna



Digerindo as frustrações

Segundo a psiquiatra Maria Angélica Nunes, o transtorno é uma "expressão do emocional no comportamento alimentar". Por isso, é necessário descobrir os fatores psicológicos que desencadeiam o quadro compulsivo. "A ideia é entender por que a pessoa reage assim e tentar mudar o pensamento automatizado", explica a médica. Nesse momento, é preciso que o paciente entenda o que é o transtorno, quais os gatilhos que levam a esse comportamento e como interromper o ciclo de desorganização alimentar.

Durante o tratamento terapêutico, são estabelecidos novos mecanismos para lidar com as frustrações. Nessa fase, é feita uma reconstrução da autoimagem, a partir da identificação das próprias qualidades, das emoções e de como lidar com elas. Junto à terapia, é necessário também orientação nutricional e, em alguns casos, o uso de medicamentos de controle do impulso alimentar.

O TCAP é uma doença crônica, o que significa que a pessoa pode manter-se bem por um tempo e eventualmente voltar a ter o comportamento compulsivo. Segundo Maria Angélica, cerca de metade dos pacientes, após o tratamento, ficam totalmente assintomáticos; cerca de 25% permanecem com resquícios e 25% não conseguem se curar.

Com o objetivo de ajudar as pessoas a abandonarem maus hábitos alimentares, surgiu o Comedores Compulsivos Anônimos (CCA). A organização começou em 1960, em Los Angeles, nos Estados Unidos. O programa é inspirado nos Alcoólicos Anônimos e segue o mesmo programa de 12 passos, só que com adaptações. O objetivo não é buscar as causas que desencadeiam o comportamento compulsivo, mas compartilhar experiências e alcançar a abstinência do comer compulsivo. Apesar de não ser uma instituição religiosa, a recuperação é centrada nos pilares espiritual, emocional e físico. "A compulsão pela comida é como qualquer outra. É como a pessoa que bebe exageradamente e que usa drogas. A comida descontrolada para nós é como uma droga", afirma Laís (nome fictício), membro do grupo. Para ela, as reuniões são importantes para que o comedor compulsivo não se sinta sozinho, já que normalmente ele se isola para comer em excesso.

Fernanda (nome fictício), também membro do CCA, afirma que familiares e amigos não conseguem entender que a sua relação com a comida é diferente da de uma pessoa normal. Ela conta que é comum o estranhamento quando fala de sua compulsão. Ela sofre com transtornos alimentares há mais de 15 anos. "Admiti para mim, há muito tempo, que tenho problema com a comida."

Ela tentou acompanhamento com psicólogos, mas não deu certo. Há seis meses, procurou o CCA. A jovem tem bulimia e alterna períodos de alimentação saudável com episódios de excesso alimentar. Esteve acima do peso desde a pré-adolescência, e desde essa época sofre com o efeito sanfona. "Minha vida é um inferno em relação à comida", confessa. Em festas, já passou por situações em que tentou provocar vômito e, depois, se sentiu frustrada e envergonhada. Quando a vontade bate, a preferência é por alimentos ricos em carboidratos, como pães e doces. Depois dos ataques, vêm o arrependimento e a culpa. "Me sinto um lixo", confessa.

É comum que comedores compulsivos prefiram alimentos específicos, especialmente doces e carboidratos em geral. Por isso, durante a reunião, evita-se falar de comidas, para não desencadear compulsão em outros membros. Muitas vezes, um simples comentário pode atiçar o desejo. "Fantasiava muito. Ficava horas deitada na cama pensando em como seria comer, sentindo o gosto da comida", conta Lia (nome fictício), em tratamento, há 15 anos, no CCA.

A relação conturbada da moça com a comida começou cedo. "Aos 5 anos já era obesa. Acho que já nasci compulsiva", conta. Seus pais também eram obesos e ela repetia o comportamento que via dentro de casa. Oferecer comida era um gesto de carinho da mãe. Muitas vezes, quando estava triste, ganhava algum alimento com a justificativa de que ele a faria sentir-se melhor. Nas primeiras reuniões no CCA, ela respondeu afirmativamente a 12 da 15 perguntas que caracterizam o diagnóstico de comedor compulsivo, mas não se convenceu por completo. "Fiquei muito tempo negando a doença", conta.

Sentimentos como raiva, ressentimento e medo motivam os ataques de Lia. "Eu nem vejo. Já comi coisas em uma noite, em um momento de compulsão, que eu acho que deveria ter comido em um mês. Isso me marcou muito", confessa. Hoje, a estratégia é evitar a primeira mordida. Muitas vezes, amigas cozinham pratos e ligam para convidá-la, mas ela evita. No início da compulsão, não conseguia ficar longe dos doces. Depois do diagnóstico de diabetes, cortou o açúcar da dieta e, após anos de tratamento, afirma que nem se lembra mais do gosto das guloseimas preferidas, como doce de leite, doces com ovos e goiabada.


PONTO A PONTO COM MÁXIMO RAVENNA

Por Flávia Duarte

Não é a fome física que atormenta os comedores compulsivos. Em geral, lacunas emocionais desencadeiam o vício pela comida. E não adianta só a dieta. É preciso cuidar da mente Mulheres lindas, homens esbeltos, gente com a aparência saudável comemoram o feito de terem perdido 30, 40 e até 70kg em alguns meses. Quem os vê não imagina como podem ter sido tão gordos um dia. A maioria dos pacientes do psiquiatra argentino Máximo Ravenna compartilha casos de excessos. Tudo entre eles é exagerado: comem demais, precisam perder dezenas de quilos e para isso contam com uma força de vontade acima da média.

O método acaba de chegar a Brasília, onde o médico abre as portas da sua terceira clínica no país. Em um bate-papo com a Revista, Máximo Ravenna considerou que, mais importante do que cortar as calorias, para emagrecer é preciso de livrar do vício de comer e isso só se faz equilibrando as emoções.

O médico desenvolveu essa proposta há 20 anos e tem clínicas na Argentina, no Paraguai, no Uruguai e na Espanha. Há pouco anos, abriu a primeira unidade no Brasil, em Salvador. A proposta é fazer com que obesos percam peso em pouco tempo e, o mais importante, consigam manter o resultado pelo resto da vida.

Além da dieta específica, acompanhada por nutricionista, o método Ravenna inclui grupos terapêuticos. Ali, os pacientes trocam experiências, dividem as conquistas e amenizam a dor das recaídas. Para o médico, isso faz uma grande diferença.

Comer menos funciona?

Muitas dietas tradicionais não funcionam porque é muito difícil que só a nutricionista ofereça um tratamento integral. É preciso trabalhar a parte física, a parte emocional, a parte comportamental. A nutricionista pode ensinar a comer, oferecendo medidas, passando dietas e informando as calorias, mas o paciente obeso não é só um ignorante nutricional, mas é também um ignorante emocional. É uma luta desigual contra a obesidade. Se a pessoa tem uma tendência compulsiva, ela pode até frear o desejo pelo chocolate, mas vai encontrar outro alimento para substituí-lo. O problema é a pessoa e não é só o tipo de comida. É preciso pensar que tipo de personalidade compensatória ela tem. Minha formação nem é para trabalhar com nutrição. Me aborrece essa coisa de dizer o que tem que ter na alimentação.

Cabeça gorda

O compulsivo está sempre pedindo algo. O paladar tem memória. É muito descontrole. Em todos lados, você tem alguma coisa para comer e a tendência sempre vai ser escolher o mais gostoso. E o mais gostoso escolhe você. Quando a pessoa se lança na comida, não importa se tem, ou não, minerais ou se vai fazer bem para seu cabelo, por exemplo. É bom e ela quer comer mais. A química da indústria alimentícia estimula a busca por prazeres rápidos, não somente por causa de problemas emocionais, mas porque a pessoa gosta de ter prazer. É uma tentação, mas você tem que escolher resistir.

O que é bom engorda

A indústria alimentícia manipula o sabor dos alimentos . Algo que é bom fica tão saboroso que você não consegue parar de comer. Talvez você nem tivesse fome, talvez você nem quisesse a primeira bolacha ou o chocolate, mas você só para quando finaliza o pacote.

O método

Trabalho mais o mental. Já me acusaram de ser duro, de agressivo, mas isso nunca. Sou firme. É um transtorno de comportamento, então é preciso buscar seu lado fraco para romper o vínculo com a comida. Para seguir o tratamento, é preciso ter meta, energia e um acompanhamento humano. Vou te oferecer uma dieta de saciedade e dar um novo estímulo ao cérebro. Se a pessoa não tem fome, ela pode abrir a cabeça e refletir "por que estou fora da medida há tanto tempo?"

Novo cardápio

O método oferece uma dieta, mas a questão não é só as calorias, mas a quantidade de nutrientes. Não adianta comer poucas calorias que não valem nada, como chocolate ou pão. O importante é que as pessoas não tenham fome e que possam perder peso com entusiasmo. Não dá para perder um quilo por mês. Uma pessoa gorda tem que baixar entre 8 e 10kg por mês, caso contrário, não aguenta muito tempo. Muita gente quer a coisa fácil: tomar remédio e comer de tudo. É preciso comer menos e ir ao grupo.

Controle das emoções

Quando uma pessoa conta sua triste história para explicar de compulsão, tenho a tendência a cortá-la. A mim, interessa que não fique presa ao passado e que use isso como um trampolim. Sempre digo: "Olhem o presente pelo para-brisas e o passado pelo espelho retrovisor".

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