Jornal Correio Braziliense

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Confete em preto e branco

Mesmo quando Brasília era só uma obra no meio do barro vermelho, os foliões encontravam motivos para festejar ardentemente. Conheça os principais lances desse (samba-) enredo

Muitos vão negar, mas Brasília tem uma bela história de folia. A desconfiança em relação ao potencial carnavalesco da capital vem de longe. Experimente ler um exemplar de jornal dos anos 1970, por exemplo ; é certo que encontrará alguém louvando bailes da década anterior. Polêmicas à parte, fato é que uma visita aos arquivos mostra que o samba sempre rolou solto por estas paragens. Entre estacas, sacos de cimento e infinitos quilômetros de terra batida, reluziam sob o sol do planalto as fantasias quase sempre improvisadas dos novos brasilienses. O então inacabado Teatro Nacional, a avenida W3 Sul ; centro comercial e social da época ;, a Rodoviária do Plano Piloto e mesmo a descida que hoje desemboca no Hotel Nacional foram, durante muitos anos, a passarela de foliões órfãos dos carnavais de suas terras natais.

Não podia ser diferente. Quando a capital do país foi transferida do Rio de Janeiro para o coração do país, trouxe na bagagem o samba. Dos pagodes de fim de semana nos fundos de quintal de funcionários públicos, engenheiros e autoridades cariocas, nasceram os primeiros blocos, de onde depois sairiam também escolas de samba. ;Sempre fui mangueirense doente. Quando vim pra cá e fundei a Aruc, virei metade Mangueira, metade Cruzeiro. Quando podia, saía pela Aruc aqui, e descia para o Rio para desfilar pela Mangueira no dia seguinte;, recorda dona Ivoone Araújo, 82 anos, primeira moradora do Cruzeiro ; na época ainda Bairro do Gavião ; e uma das fundadoras de uma das mais tradicionais escolas de samba da capital, a Associação Recreativa Cultural Unidos do Cruzeiro, Aruc, em 1961.

Enquanto o povo se reunia no início da W3 Sul para ver desfilar as escolas de samba mais competitivas da época ; Alvorada em Ritmo, da Asa Sul, e a própria Aruc ;, clubes e hotéis ainda inacabados organizavam nada modestos bailes reservados à sociedade aqui recém-chegada. Políticos, empresários e novos ricos amanheciam em camarotes regados a uísque e lança-perfume nos salões do Iate Clube, do Brasília Palace e do Hotel Nacional, responsáveis pelas mais caras e famosas festas da capital, com direito até a celebridades de Hollywood caindo no samba.

Os anos ficaram para trás e o carnaval na cidade hoje em quase nada lembra os antigos bailes. A Aruc segue campeã, mas as grandes rivais dos primeiros anos ficaram pelo caminho. A W3 já não é mais sambódromo, tampouco existem folias pelo Eixão. No Iate, as festas continuam, mas o salão de outrora hoje é galpão de barcos ; e os camarotes deram lugar a depósitos. No Hotel Nacional, as últimas lembranças dos carnavais se foram junto com os antigos donos e funcionários, e o incêndio que destruiu o Brasília Palace em 1978 acabou apagando boa parte da memória de suas requintadas festas. Quem conta suas histórias, agora, são antigos foliões, saudosos dos bons carnavais que aqui passaram. ;Não existe mais carnaval em Brasília;, concordam. Não deixam de ter razão. Os carnavais que conheceram são apenas páginas da história da cidade.


Alô, povão cruzeirense!
A Aruc, tradicional escola de samba do Cruzeiro, conta 31 títulos do carnaval brasiliense, contra cinco do segundo lugar, a Acadêmicos da Asa Norte. Tem 52 anos de história ; é a mais antiga a desfilar atualmente ; e, este ano, pisa na avenida batendo recorde em número de componentes desde a sua criação: 1,5 mil. Quem conhece a escola cruzeirense de números, mal imagina o passado bem mais mirrado que sua história guarda. Os primeiros batuques começaram na antiga Quadra 16, Casa 3, do então Bairro do Gavião, reduto de cariocas transferidos da antiga para a nova capital. Era a casa de dona Ivoone Araújo, primeira moradora do bairro. ;Não tinha ninguém. Vim com a missão de entregar as chaves para os que aqui fossem chegando;, lembra a carioca, ainda com a cadência típica do sotaque da sua terra natal, que deixou há 54 anos.

Como prometido, os novos moradores chegaram. Com eles, a saudade das rodas de samba, das escolas do coração e dos blocos de rua que deixaram para trás. ;Sempre fui do carnaval. No Rio, além de sair na Mangueira, no chão mesmo, desfilava nos blocos 107 e Coração das Meninas. Cheguei aqui e não tinha nada. Não existia carnaval;, conta a pioneira. A vontade da folia falou mais alto e a casa de dona Ivoone virou uma espécie de filial do Rio de Janeiro. Ali, reuniam-se os poucos cariocas do Gavião para batucadas de fim de semana. Não mais que 20 pessoas, na recordação de dona Ivoone.

;A princípio, a ideia era criar um bloco, mas acabamos criando uma escola de samba mesmo;, conta a carioca. A criação oficial se deu na casa de um vizinho, frequentador dos seus sambas de quintal. ;Aos vinte e um de outubro do ano de mil novecentos e sessenta e um, às 16 horas, na residência do Sr. Paulo Costa, sito à quadra quatorze, casa ;11; no mencionado bairro;, diz a ata da reunião. Estava criada a Associação Recreativa Unidos do Cruzeiro e instituído seu presidente, vice, secretários e demais fiscais.

Começavam então os preparativos para a estreia da escola do Cruzeiro no carnaval brasiliense. Brasil Moreno e Alvorada em Ritmo, hoje já extintas, eram as favoritas ao título. Dona Ivoone mobilizou a recém-criada comunidade para botar a Aruc na avenida. As primeiras purpurinas para a confecção das fantasias foram pagas no crediário. Pouco mais de dois meses separavam a Aruc do desfile. ;Nos reuníamos depois do expediente, nos fins de semana, nas madrugadas. O trabalho não parava;, lembra a cruzeirense.
ma Leão.

Leia esta matéria na íntegra na edição n; 404 da Revista do Correio.