Entre o acordar e o deitar-se, há acontecimentos que fogem ao nosso controle ; como perder as chaves no mesmo dia em que você deveria chegar mais cedo em casa ou esbarrar na livraria com um ex-namorado e se entregar a uma tarde de recordações. No contar de 24 horas, essas e outras histórias não são filmadas, divulgadas ou mesmo relatadas. Permanecem ; quer dizer ;, permaneciam em segredo até serem colecionadas pela artista plástica paulista Estela Mazzi, 24 anos. Trabalho de conclusão de curso que gerou o livro Maria, lançado neste mês pelo Prólogo Selo Editorial, ele traz relatos de mulheres que não posam para revistas de moda nem expõem suas fragilidades em rede nacional. São vozes que, do anonimato, contam situações e revelam desejos parecidos com os de tantas outras mulheres. "A maioria fala sobre a solidão. Algo que mal conseguimos traduzir, assim como o amor, e que todos sentimos", adianta Estela. Em entrevista à Revista, a autora conta como um projeto para a faculdade de artes plásticas ganhou asas nas redes sociais, uma "vaquinha coletiva" na internet e foi parar nas livrarias de todo o país.
Quando você teve a ideia de recolher esses depoimentos para escrever um livro?
Em 2011, estava no terceiro ano da faculdade e tinha que pensar no trabalho de conclusão. Conforme pesquisava, percebi que faria algo direcionado a ferramentas que nos ajudam nesse reconhecimento de si por meio da história do outro. Memórias e sentimentos com os quais podemos nos identificar. Foi aí que tive a ideia de chamar mulheres para contar como é um dia na vida delas. Minha curiosidade despertou esse projeto. Quando estou em um ônibus parado, por exemplo, imagino se aquela mulher no banco da frente está esperando uma ligação, se está indo encontrar alguém especial, se precisa de dinheiro para pagar uma conta ; coisas corriqueiras.
Seu objetivo era reunir quantos depoimentos?
Já tinha 65 textos, ou melhor, dias, entre narrativas e poemas. O projeto começou pequeno ; eu queria, no máximo, 20. Acho importante falar que minha pesquisa não é sobre o feminino, mas sobre esse olhar para o outro. Fiz esse recorte com mulheres porque sou uma e me reconheço melhor nelas. Somos um universo indecifrável e temos peculiaridades que ultrapassam a questão da idade. Por isso, reúno relatos de mulheres dos 16 aos 73 anos. Conforme elas me escreviam, ficava "viciada" em conversar com mais pessoas e saber como foi um dia na vida delas. Se a moça do telemarketing ligasse para minha casa, eu não desperdiçava a chance para lhe contar sobre meu projeto (risos).
Quem são essas mulheres?
Algumas conhecidas, outras não. São tias, amigas, pessoas que admiro ou que não tenho contato, como a psicanalista Maria Rita Kehl, que me deu o "não" mais educado e fofo que já recebi, uma vez que ela não tinha tempo para participar do projeto. No fim, a faixa de idade que predomina é dos 20 aos 30 anos, mas as profissões são diversas. Professoras, psicólogas, estudantes, profissionais da área de marketing, cantoras, artistas plásticas, aposentadas, médicas, estilistas e por aí vai. Tem um depoimento/dia meu também. Depois de pronto, o mais legal foi ler o que uma amiga escreveu para mim: "Você vai ficar famosa e eu vou ficar conhecida como a mãe que belisca, morde e beija o filho".
Do trabalho de conclusão à adaptação para um livro, como foi esse processo?
No começo de 2012, desenhei e escrevi o projeto. Tenho um caderno que me ajuda a traduzir o que vejo e sinto. Primeiro, fiz os desenhos (distribuídos ao longo das páginas) e, depois, uma lista com mulheres que gostaria de convidar para participar. Em seguida, vieram o blog, o site, a fanpage no Facebook; Agora, para conseguir fazer o livro, propus uma "vaquinha" (um site de crowndfunding) na internet. Precisava de R$ 15 mil. Entre diagramação, projeto gráfico, correio, revisão, divulgação, o projeto foi caro, mas essa ajuda na rede me ajudou a levantar dinheiro. Também tinha economias para investir. No fim, era gente dos quatro cantos do país e do mundo. Muitos colaboradores eram brasileiros que viviam em outros países. Até chegar ao valor, foram 18 dias e 200 colaborações. Depois, conheci pessoas, ou melhor "anjos", que me apresentaram à editora, que possibilitou comercializar o livro em livrarias de todo o país.
Agora, qual o próximo passo?
Tenho vontade de traduzir o livro para o inglês e colocar o PDF na rede. Se todo objetivo da pesquisa do livro é a identificação do leitor com o outro, faz sentido que isso rode e chegue, de fato, a outras pessoas ; e não só ao meu circuito de amigos e contatos. Mas, por enquanto, estou curtindo essa "cria". A melhor imagem disso é que coloco meus livros para dormir. E essa, com certeza, tem sido a melhor parte do meu dia.
Alguns trechos do livro(;) Um dia, quando assustada me vi diante da ruptura da solidão de ser apenas um ser, no hospital onde eu iria dar à luz pela primeira vez e me multiplicar, para sempre, na profusão de alegrias, medos, anseios, gratidão e benevolência, nesse dia, então, frio e úmido ; talvez para exigir de mim o calor que às vezes tenho que acumular para ceder à frieza dos outros dias ; então, nessa madrugada de quinta-feira, depois do esforço e do medo e da surpresa e do primeiro choro, eu vi: a enorme panela de alumínio industrial, com suas alças inalcançáveis, brilhando no escuro do quarto ao lado, separado do meu por uma parede de vidro.
(;) Acordo. Lembro do sonho que tive. Olho pro lado e desejo que ele estivesse ali. Faço uma promessa pra mim mesma de não falar seu nome. Uma promessa por dia, todo dia. Levanto e tomo café. A caminho do trabalho tento escolher uma música no iPod que não me traga lembrança dele. De tão difícil, decido escutar o barulho da cidade. Vejo casais na rua: sinto pena deles e raiva de mim. O contrário também. Enquanto trabalho, me distraio. De vez em quando penso em situações que envolvem nosso passado juntos... Fico triste, mas finjo que está tudo bem.
(;) Amarrei no meu braço uma fita de cetim vermelha e nem sei o porquê, mas ela ainda está aqui e parece querer ficar. Na música, um verso diz: "só um detalhe azul". Olho para o céu e da maneira mais cafona já imaginada vejo uma nuvem em forma de coração, que é cortado por um barulhento helicóptero preto. Nem os corações de nuvem têm sossego nessa vida.